Dramaturgia de “Barão Olavo, o Horrível”

Em “Barão Olavo, o horrível”, filme de 1970 de Júlio Bressane, percebe-se uma construção dramatúrgica distinta de outras obras do realizador, ainda que esta jamais se complete em um sentido convencional, mantendo sempre um aspecto lúdico, autorreferente e mesmo banal. A partir de um núcleo dramático bem definido, sob o peso das relações e da divisão de funções entre os seus personagens, o filme guarda a tensão de um conflito que pode a qualquer momento se configurar e aos poucos revela a lógica das suas movimentações pelos cerceamentos deste universo diegético.

Dono do casarão neocolonial e de todas as terras nas quais a narrativa se passa, detentor de um poder que submete todas as outras personagens às suas intenções, Barão Olavo (Rodolfo Arena) é uma figura abjeta, que come a sujeira dos pés e a terra do jardim com uma colher. É abjeto, principalmente, pelo aspecto mais “horrível” que aqui se desenvolve: a sua necrofilia, que acompanha uma série de mortes de jovens mulheres que ocorre na região, explicitadas já em uma de suas primeiras cenas, em que todos os personagens se encontram reunidos em um funeral.

Dentro de sua casa, há uma personagem interpretada por Isabella, cuja função dramática não é muito bem estabelecida – mas que é, possivelmente, a atual esposa do Barão. Outra personagem, Isabel (Helena Ignez) – da qual o Barão em determinado momento esclarece não ser o pai, mas ex-marido de sua mãe, já morta –, é sempre acompanhada de Ritinha, personagem de Lílian Lemmertz, que, seja como babá ou enfermeira, afirmam de maneira mais precisa o poder (econômico) do Barão, definindo com mais profundidade a organização social do pequeno núcleo de personagens. Ambas, temendo as mortes ao seu redor, se aproximam e estabelecem um relacionamento amoroso que continuará até o final e será determinante para as relações dramáticas que o filme deve traçar.

Há ainda o Padre, que também é coveiro e cuja função dramática principal é ajudar o Barão a dispor dos corpos para violá-los; e, principalmente, um personagem interpretado por Guará, que aparece somente em duas ou três cenas logo no início, alertando a todos, bem como ao espectador: “As coisas vão mal! Cuidado com o Barão!”. Enquanto os outros personagens apontam para um núcleo de relações sociais fechadas, Guará o expande para uma sociedade que está fora do âmbito desta casa. Sua presença tem, acima de todos os outros, um caráter mais fortemente teatral, como uma espécie de coro, no sentido de que através dele se projeta a existência de uma sociedade ao entorno do recorte dramatúrgico do filme, a quem ele alerta – bem como ao espectador – instituindo, desde um primeiro momento, o conflito dramático ao redor do Barão e o mal que ele representa.

Vemos apenas uma destas mortes ocorrer, a da personagem de Isabella, estrangulada na sala do casarão pelo Barão e que sugere que todas as outras possam ser também de sua autoria. Morte por estrangulamento, é preciso dizer, a morte mais física, mais “atuada”, mais gestual e que melhor valoriza as relações entre os seus atores – a mais adequada, portanto, ao filme que Bressane constrói. Se é lúdica a representação de Bressane, é importante dizer que ela não foge às relações materiais e se baseia, tão simplesmente, em sua máscara mais primordial: o ator, em sua mais imediata materialidade e expressão. Aqui cada um deles interpreta de maneira bastante distinta um do outro, sem compromissos definidos, implicando outro conflito, de caráter propriamente formal, que surge a partir destes próprios modelos distintos e da dinâmica que se configura em suas relações cênicas. O caráter lúdico que marca esta atuação se evidencia na cena em que o Padre repete por diversas vezes a frase “Eu sou o melhor ator do mundo”, como se quem o dissesse fosse o ator que o interpreta e não o seu personagem, dissociação presente por vezes no filme e que aponta também um gesto de distanciamento na sua representação.

Esta condição, essencial para compreender a natureza de “Barão Olavo”, se expressa também no que diz respeito à imagem do filme, em que, ainda que em certos momentos se imponha um rigor de composição, este compete com uma precariedade do registro que tende a escapar às suas tentativas de formalização. Em primeira instância, esta precariedade se dá na própria postura da câmera que, tantas vezes, possui movimentações irregulares, trepidantes; depois, é a própria inserção deslocada de algumas das falas e dos sons artificiais normalmente associados ao “filme de terror”, como os uivos e os barulhos de vento que, sem qualquer tipo de referencial diegético, parecem tomados de um banco de arquivos ordinário, confrontando e ironizando estes mesmos propósitos narrativos, reconhecendo a todo momento o gênero a que nem parece se esforçar muito para emular.

Este é também o caso da imagem tantas vezes reincidente do trem fantasma no parque de diversões, que, dissociada da diegese estabelecida ao redor do Barão, parece ter tão somente a função de evidenciar o próprio gênero a que (não) corresponde, presença que aponta novas relações e aprofunda as possibilidades de significação para além dos atores, em um gesto de distanciamento em relação à própria narrativa. Neste sentido, o filme ri de si mesmo também em momentos como quando o Barão, violando a personagem de Isabella morta no caixão, diz “Eu sou terrível, eu sou terrível!”, enquanto Isabel olha e ri, explicitando também a falta de moral, a abjeção aqui presente – no que é, possivelmente, uma apropriação desconcertante da música de Roberto Carlos (“Eu Sou Terrível”) e, ainda, uma uma brincadeira com seu próprio título em referência aos créditos iniciais, em que a palavra “Horror” se substitui por “Terror”, desde o princípio um destaque ao gênero que promete assumir.

Na estrutura que pouco a pouco se forma, se impõe a repetição de algumas cenas deslocadas cujo entendimento é enigmático a priori, tornando ambíguo e imprevisível o seu direcionamento a seguir, mas que, pouco a pouco, encontram o seu lugar, em um movimento de ordenação das relações dramáticas. Este é o caso das discussões entre o Barão e a personagem de Isabella, que resultam em seu estrangulamento e que continuam a se repetir mesmo após ele já ter ocorrido, e, principalmente, da cena da morte de Isabel. Subitamente, ela se mata a primeira vez, mas logo já está viva e outras cenas com ela se passam, ignorando completamente a significação desta imagem anterior e evidenciando o deslocamento desta imagem em relação à cronologia. Será somente mais tarde, depois que o Barão, em um princípio de ameaça, diz que a viu com Ritinha, que se verá Isabel pegar a faca com a qual, no plano seguinte, repetição deste outras vezes visto, irá se matar. Então, se desenvolverão mais dois ou três episódios ao redor de seu corpo, confirmando esta morte e dando prosseguimento a sua conclusão dramática.

Logo, o corpo de Isabel será mais um dos que o Padre irá roubar, sendo flagrado por Ritinha e confessando, então, esta descoberta ao Barão. No entanto, logo na cena seguinte, esta descoberta não atrapalhará os planos do Barão e, junto da mesma Ritinha, eles irão violar o corpo de Isabel, fechando o círculo de relações entre estes personagens centrais pela chave da abjeção e da completa ausência de moral. Bressane, entretanto, não escandaliza, pois mantém uma decisiva distância de registro momentos: quando Ritinha sobe na cama, avançando em direção ao corpo de Isabel, o Barão abre a sua capa, escondendo tudo o que se passa a seguir, enquanto a câmera de Bressane também faz uma panorâmica deixando a janela pela qual observava esta cena interior e voltando-se para o jardim, mantendo como sugestão tudo aquilo que se passa em off.

Assim, quando, depois de ter seu corpo violado pelo Barão e por Ritinha, Isabel sai pela porta da casa junto desta, em uma lenta caminhada pelo jardim, no qual se beijam e abraçam lançando olhares e sorrisos à câmera, existe uma nova e completa ruptura com o tom anterior, que, no entanto, é imediatamente contextualizada pelo contracampo com o primeiro plano do Barão, a observá-las. Ao que parece, não se trata mais de uma recuperação de um momento anterior, deslocado cronologicamente, mas de uma continuidade em que se configura uma espécie de ressurreição de Isabel, bem como, no prolongamento destes olhares, o reconhecimento do espectador, provocado neste plano de gestos e movimentos medidos, de uma suspensão absoluta – de uma transcendência que marca o ponto culminante de todo este filme e que aponta, em certa medida, a uma espécie de fantasmagoria de sua representação.

Então, inicia-se uma sequência que será o epílogo do filme e romperá, finalmente, com todo o sentido dramatúrgico que anteriormente se desenvolveu, devolvendo o seu registro mais imediato e material: desprovidos dos nexos anteriores, das relações enquadradas pelo ambiente bucólico do casarão, seus personagens parecem saltar, de alguma maneira, da diegese para as ruas do Rio de Janeiro. Na transposição deste universo ficcional à realidade ordinária, dão continuidade às mesmas ações que anteriormente as definiam, e Guará, mesmo agora utilizando roupas comuns, continua repetindo a única frase que dizia em momentos anteriores, “Cuidado com o Barão!”, como se todas estas novas pessoas que encontra também devessem ser alertadas e a ameaça do Barão permanecesse, mesmo que sua figura se ausente destas imagens.

Matheus Zenom

Spetters: O baixo-materialismo de Paul Verhoeven

“Embora no interior do corpo o sangue corra em igual quantidade de cima para baixo e de baixo para cima, toma-se o partido do que se eleva, e a vida humana é erroneamente vista como uma elevação. A divisão do universo em inferno subterrâneo e em céu perfeitamente puro é uma concepção indelével, uma vez que a lama e as trevas são os princípios do mal, assim com a luz e o espaço celeste são os princípios do bem: com os pés na lama, mas a cabeça mais ou menos na luz, os homens imaginam obstinadamente um fluxo que os elevaria sem retorno ao espaço puro. A vida humana comporta de fato a fúria de saber que se trata de um movimento de vai-e-vem da sujeira ao ideal e do ideal à sujeira, fúria que é fácil fazer passar para um órgão tão baixo quanto o pé.” 

Georges Bataille em “Dedão do pé”, Documents (trad. João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes)

O título deste artigo não pretende iniciar um diálogo filosófico com o “baixo materialismo” de Georges Bataille, e sim, informado por este, caracterizar as especificidades do que considero, aqui, o baixo materialismo dos filmes de Paul Verhoeven, que acompanham indivíduos “com os pés na lama, mas a cabeça mais ou menos na luz” em seus diferentes “movimento[s] de vai-e-vem da sujeira ao ideal e do ideal à sujeira”. Começo, então, falando sobre Spetters, seu filme de 1980, produzido ainda na Holanda e no qual já estava circunscrito tudo que há de melhor em seu cinema. Disfarçado de coming of age, o filme é na verdade um drama complexo sobre as limitações humanas no sentido mais concreto possível, em suas dimensões econômicas, sociais e materiais – que serão desenvolvidas sob novas máscaras de representação em seus filmes feitos nos Estados Unidos.

O filme, a princípio, gira em torno de três amigos praticantes de motocross, Rien, Eef e Hans (imagem), que se interessam pela mesma garota, Fientje, uma vendedora de croquetes em um trailer de rua. O croquete com mostarda, aliás, uma comida de rua tipicamente holandesa, pauta as relações sociais que serão estabelecidas no filme: comida suja, gordurosa e de formato fálico, parece ditar o tom de Spetters como um todo. Há um momento em que Fientje fala: “meu pai me disse que a vida é como um croquete: quando você souber o que tem dentro você perderá seu apetite”. A frase funciona tanto como uma espécie de presságio para o futuro sombrio, imprevisível, com o qual esses personagens irão se deparar, como em seu sentido literal e imediato, quando a personagem revela, em um lixão, que recheia os croquetes com ração de cachorro (imagem). É daí que parte o cinema de Verhoeven: da sujeira, do croquete, da vendedora de um trailer, do motocross na lama.

(Da esquerda para a direita: Hans, Rien e Eef)

Mas há também o aspecto ridículo do croquete, que é motivo de piada ao longo de todo o filme. Há um momento, por exemplo, em que os jovens estão numa boate e vêem uma menina negra dançando: “elas fodem melhor”, um deles comenta. Um dos meninos vai atrás dela, que parou de dançar para comer croquetes com mostarda no bar. Ele oferece uma cerveja para a menina e ainda se gaba para os amigos “essa menina é fácil”. Começa, então, a acariciar sua perna, e ao adentrar ainda mais sua mão em sua coxa, retira os dedos sujos com uma massaroca amarela e olha assustado para a menina, que sorri e levanta sua saia, revelando um potinho de mostarda entre suas pernas (imagem), colocando-o de volta na mesa e se despedindo. Com todos seus amigos rindo e fazendo trocadilhos (que certamente devem ser mais engraçados em holandês), o menino passa a mostarda de seus dedos em um dos croquetes e come.

Essas gags não se limitam ao croquete e permeiam o filme como um todo, principalmente na maneira como este lida com a sexualidade de seus personagens. Mas diferente do coming of age convencional, os corpos nus e os genitais dos personagens aqui são de fato colocados diante da câmera – não apenas os das mulheres – e essa descoberta adolescente, de maneira muito mais próxima da realidade do que costuma ser retratada no cinema, é, acima de tudo, ridícula. Há, por exemplo, um momento em que dois casais vão transar num prédio em construção: cada um vai para um canto, divididos por um pedaço de parede; o menino de um dos casais não consegue ficar ereto e a menina do outro descobre que está menstruada. O primeiro casal começa a ouvir os outros transando e decide fingir que também estão, fazendo sons de gemido; nisto, a câmera se movimenta para o outro lado da parede e revela que os outros dois também fingem (imagem). Em outro momento, acompanhamos uma cena de sexo em toda sua duração, que, no entanto, dura apenas alguns segundos. O tom cômico, entretanto, será aos poucos substituídos pelo trágico: se no início vemos jovens fingindo que estão transando, mais tarde veremos um estupro coletivo.

A cena mais emblemática, neste sentido, será aquela em que, de maneira patética (mas também, eventualmente, profética), os meninos decidem quem será merecedor de Fientje: eles medem seus pênis e aquele que for maior ganha o direito de conquistá-la. Uma decisão tomada da maneira mais concreta possível para aqueles que acreditam que Fientje deve ficar com quem lhe der maior prazer. Fientje, entretanto, não está em busca de prazer, mas de segurança financeira, e quem ganha a disputa de maior pênis é Hans, que, com sua moto caindo aos pedaços, é o pior motoqueiro entre os três – curiosamente, essa disputa entre pretendentes também parece algo antiquado, ainda mais quando a personagem está levando em conta os “dotes” de cada um.

Se, a princípio, essa preferência da personagem por aquele que tem mais dinheiro parece um clichê até mesmo machista, Fientje não é, entretanto, uma patricinha de Beverly Hills a procura de um sugar daddy, mas uma vendedora de croquetes, com pôsteres de John Travolta e Elvis Presley pendurados na parede do trailer onde vive e trabalha, junto com seu irmão; e o dinheiro, no filme, não é uma entidade abstrata, mas aparece, em espécie, em todas as transações (imagem). Quando um policial aparece e exige dos dois uma licença para o trailer – após uma caminhada melancólica de Fientje pela cidade, onde observa famílias felizes pelas janelas das casas –, Fientje o leva para dentro por alguns minutos e na cena seguinte apenas a vemos escovando os dentes. Sua perspectiva é apenas realista, por isso o primeiro garoto que escolhe não é Hans, mas Rien, que ganha a corrida de motocross: o mais promissor, que larga sua namorada por ela. Mas Fientje não simplesmente espera de mãos cruzadas pelo sucesso de Rien, ela arranja um contrato para ele com um investidor japonês e exige que todos sejam pagos pela participação que terão no canal de televisão – que permeia todo o filme, contrastando os fracassos dos personagens com o sucesso do atual campeão de motocross, Gerrit Witkamp (interpretado por Rutger Hauer).

Os meninos conhecem Fientje em meio a uma briga entre ela e alguns motoqueiros que não queriam pagar os croquetes que comeram; o irmão de Fientje, de prontidão, segura um dos caras em quem ela joga água fervendo. Outro motoqueiro se prepara para jogar um tijolo no trailer, mas Rien o tira de sua mão e dá para Fientje, que depois irá lhe presentear com o mesmo tijolo, embrulhado em papel de presente, no bar de seu pai, onde Rien o coloca junto a outros troféus ali expostos (imagem). O tijolo como um troféu, outro emblema do filme, como o croquete. Ainda que o filme tenha como base uma trama convencional, com a ascensão e a decadência de seus personagens, esta ascensão nunca é idealizada: seus personagens são imperfeitos e suas motivações são evidentes; tampouco a queda cai num sentimentalismo ou moralismo: o filme sempre mantém seus pés no chão, junto ao tijolo e o croquete.

Logo antes de seu ponto de virada dramática, Fientje e Rien estão comemorando seu sucesso que alcançaram juntos, no alto de uma torre com vista para a cidade, na qual ela usa um casaco de pele caro que ele comprou. Na cena seguinte estão na cama, onde Fientje enuncia sua fala profética sobre a vida ser como um croquete. A próxima cena definirá os rumos dos personagens de maneira definitiva e é, novamente, um tanto patética. Eef, um dos meninos, trabalha em um posto de gasolina, quando Rien e Hans, passam de moto por ele: Rien com sua nova moto Honda, presenteada pelos investidores japoneses, Hans com sua moto sucateada (imagem). Eef ainda brinca com Rien:“não caia de cara”, ele diz, e então volta a atender a família burguesa – o pai, que está pagando Eef, usa um terno e fuma um cachimbo – que enche o carro de gasolina. As crianças da família insistem para o pai comprar laranjas, o que a mãe aprova: “estamos de férias”, ela diz. Eef presenteia a família com as laranjas, sem cobrá-los. No plano seguinte acompanhamos Rien e Hans saindo de uma estrada de terra e entrando na estrada principal, onde já podemos ver o carro da família burguesa (imagem). Dentro do carro, as crianças brigam pelas laranjas e o pai acaba jogando o saco pela janela. As laranjas batem na cara de Rien, que perde o controle da moto e cai com suas costas batendo em um pino de concreto. Hans tenta levantá-lo, mas suas pernas não respondem. O filme corta para dentro do trailer de croquetes, saindo dos rostos de John Travolta e Olivia Newton-John em um pôster de Grease, para mostrar Fientje apreensiva, rasgando uma revista que mostrava um horóscopo; tanto a promessa de amor hollywoodiana quanto a promessa de futuro astrológica são mentiras – e esse tipo de contraste entre uma imagem ideal e a realidade concreta, frequentemente suja e vulgar, será continuamente explorado por Verhoeven em seus filmes feitos nos EUA.

Fientje logo termina o namoro com Rien, cuja vida a partir de então será aquilo que tira o apetite do croquete. Quando volta do hospital, a cidade lhe recebe com o humilhante presente de uma cadeira de rodas motorizada (imagem), irônico para quem tinha acabado de ganhar uma moto Honda. Rien torna-se rancoroso, e não sem motivos; ele não pode mais andar de moto, não pode mais andar, não pode mais transar.

Há uma cena emblemática em que sua ex-namorada o leva, com a promessa da salvação, a um culto evangélico, em uma grande barraca de pano com luzes penduradas, insistindo para que ele vá até o pastor. O pastor começa seu suplício a Deus, com suas mãos sobre a cabeça de Rien, sob a expectativa crescente de todos ao redor. Corta-se para um plano próximo do rosto de sua ex-namorada, cheio de expectativa, enquanto esta acompanha a cabeça de Rien entrando em quadro, subindo cada vez mais (imagem), enquanto as luzes fora de quadro balançam formando halos oscilantes na imagem, instaurando uma atmosfera milagrosa. Quando a cabeça de Rien já está no topo do quadro e seu rosto também extasia com o aparente milagre, ele cai de novo em sua cadeira, primeiro em choque e depois em um riso desesperado, num plano que volta a se abrir. Não há redenção possível e, numa cena absolutamente soturna, o menino lentamente se direciona em sua cadeira de rodas para o meio de uma grande rodovia escura, esperando o momento de empurrar a pequena alavanca que controla sua cadeira de rodas motorizada e ser atropelado por um caminhão.

A cena do culto acontece, justamente, logo após os rumos de Eef, segundo pretendente de Fientje, começarem a se estabelecer: ele finalmente se assume gay para seu pai, um religioso ferrenho que lhe espanca ao ouvir a notícia. Ao longo do filme, observamos o personagem assaltar diversos casais gays na rua e mesmo incentivar seus amigos a ir atrás de um casal para agredir e pintar a boca de um dos meninos de batom. Sua própria homossexualidade é indicada em diferentes momentos pelo fato de que não consegue (ou evita) transar com meninas em toda chance que lhe aparece, ou mesmo por como observa suas vítimas por tempo demais antes de roubá-las. Até que em uma cena, após assaltar um velho exibicionista, um grupo de homens, liderados pelo irmão de Fientje, o persegue até um canto de obras – mesmo local onde Eef já havia assaltado um casal – e o estupra. Depois, enquanto está se vestindo, o irmão de Fientje lhe recomenda que simplesmente admita sua homosexualidade e se afaste de Fientje, após dizer saber que Eef gostou do estupro; os dois ainda começam a ter um caso depois.

Toda a trajetória de Eef é, certamente, aquilo que há de mais polêmico no filme, tendo causado um alvoroço na Holanda na época e sendo um dos motivos de Verhoeven ter ido aos Estados Unidos. A cena do estupro – e o fato de indicar não apenas que Eef gostou, mas de que foi o que lhe fez se assumir gay – é certamente um excesso do filme, mas não deve ser interpretada como uma declaração de valores. Mais do que uma tentativa de simplesmente polemizar, me parece uma tentativa de Verhoeven de tornar o filme de difícil digestão, de complexificar seus personagens, humanizá-los, para que sejam imperfeitos e ambíguos – algo semelhante ao que fará em “Flesh + Blood” (1985), onde a protagonista, na Idade Média, passa pela mesma situação, e a princípio chega mesmo a fingir que gosta do estupro, aparentemente para se proteger e lutar de volta, fingimento que aos poucos se tornará ambíguo.

Para Fientje, acaba sobrando Hans, que, como ela mesma deixa claro, não tem nada a lhe oferecer: “sem dinheiro, sem futuro”, “volte quando tiver algo a oferecer”, ela lhe diz após uma declaração do menino. Hans, que a princípio parecia não ser bom no motocross por conta de sua moto fajuta, continua ruim quando Rien lhe presenteia a sua Honda, tanto que o canal de televisão chega a fazer um programa cômico com ele, contrastando suas quedas com as manobras de Gerrit Witkamp. No final do filme, enquanto Rien se mata na rodovia, todos comemoram uma vitória de Witkamp no bar de seu pai, até estas quedas serem exibidas na televisão, começando um tumulto (com os mesmos motoqueiros da briga no trailer, no início do filme) que acaba destruindo o bar, cena catártica que parece expurgar tudo aquilo que foi comedido no suicídio de Rien, do qual ainda não sabem. Mas Hans, que na medição de pênis no início do filme foi quem se provou mais merecedor de conquistar Fientje, acaba conseguindo, e os dois são os únicos a receber um final feliz, em que Fientje garante sua segurança financeira incentivando-o a abrirem um bar juntos, sobre as ruínas do bar destruído.

A cena final do filme acompanha o irmão de Fientje indo embora da cidade na chuva, de carro, com seu trailer atrelado. Primeiro passa por Eef, no posto de gasolina, e o convida para ir junto, o que ele nega, afirmando que um dia enfrentará seu pai, que interrompe a cena passando pelos dois de trator. O irmão de Fientje oferece dinheiro a Eef e segue adiante, se despedindo também de sua irmã e Hans, que estão preparando o novo bar – a essa altura o tempo já abriu, há algumas poças de chuva na cidade. Ao seguir a estrada, a ex-namorada de Rien atravessa a rua em sua frente, correndo para pegar um ônibus que vai para Roterdã. O ônibus segue em uma direção, enquanto o trailer atravessa em outra (imagem). O plano final acompanha mais um pouco o trailer entrando na rodovia e, então, a câmera se distancia para um grande plano geral, revelando as diferentes rodovias se entrelaçando e acompanhando o tráfego mesmo após o trailer sair completamente de quadro, como se enfim abandonássemos aqueles personagens e voltássemos para o mundo real onde tantos outros carros, trailers e ônibus daquelas rodovias podem conter histórias como estas.

Os veículos, afinal, são o motor da narrativa, demarcando as funções sociais dessa rede de personagens e caracterizando-os de maneira tanto concreta quanto metafórica. A começar, evidentemente, pelas motos, símbolo de juventude, rebeldia, e mesmo de uma masculinidade – mais particularmente do motocross, um esporte sujo, praticado na lama. O filme começa acompanhando Eef saindo de moto da fazenda onde mora para o trabalho e sendo atrasado pelo lento trator de seu pai que está em seu caminho (imagem). A cena, ao mesmo tempo em que apresenta um evidente contraste entre campo e cidade, um modo de vida antigo e moderno, já introduz a distância entre gerações que será particularmente relevante no caso de Eef, com seu pai conservador. Sua moto sai, então, da pequena estradinha de terra da fazenda e entra na rodovia, junto com um ônibus – o mesmo que aparece no final do filme, com destino à Roterdã. Acompanhamos, então, Rien, saindo do bar de seu pai e pegando sua moto, se despedindo de sua mãe que lava o carro. Rien segue a estradinha de tijolos da cidade e o acompanhamos num salto com a moto, antes de cruzar com outro ônibus (talvez o mesmo) que atravessa a cidade. É a vez de Hans ser apresentado, e já somos introduzidos ao personagem tentando iniciar sua moto velha na porta de casa enquanto seu pai ri e então o ajuda empurrando-o até a estradinha de tijolos. No próximo plano já temos os três juntos de moto na estrada de terra.

Quando Fientje parte para o segundo pretendente, Eef, vai atrás dele de carro em seu trabalho de frentista de posto de gasolina – novamente, não por acaso. Os dois dão uma volta em seu carro, até chegarem a um caminho bloqueado; Eef, ao tentar manobrar, acaba atolando o carro num declive, e só consegue tirá-lo dali com ajuda do trator de seu pai, que o puxa com um cabo de reboque (imagem). A cena parece carregada de sentido simbólicos, desde a incapacidade de Eef de “ir até o fim” com o carro – que associamos a seu desinteresse sexual por mulheres – até a submissão a seu pai, com seu trator bruto. A cena é análoga àquela que precede o encontro sexual entre Fientje e Hans, quando ele, de moto, a encontra num lixão, de carro – o qual não consegue dar a partida. Hans, com sua moto surrada e roupa suja de lama, acaba levando o carro com o cabo de reboque até a cidade (imagem).

Não por acaso, nenhum dos meninos segue andando de moto no final, e Gerrit Witkamp continua invicto, desfilando pela cidade em seu conversível branco. Os veículos funcionam, no filme, não como uma extensão das capacidades dos personagens, mas como evidência de suas limitações físicas e condições financeiras, como carcaças mecânicas às quais estão submetidos e mesmo aprisionados, seja Fientje a seu trailer, Eef ao trator de seu pai, Hans a sua moto fajuta ou Rien a sua cadeira de rodas motorizada; essas máquinas grosseiras apenas reforçam o que há de mais humano e frágil nos personagens, que podem ser esmagados como mosquitos por um caminhão.

Paula Mermelstein

Algumas considerações sobre “Cuidado Madame”

“Cuidado Madame” (1970) é um filme que sugere muito mais perguntas do que respostas, em que jamais se pode ter certezas absolutas, prezando acima de tudo pela inquietação. Seu comprometimento se dá com a ausência de comprometimento mesmo – e seus questionamentos voltam-se à própria natureza da comunicação que se está por fazer. “Por fazer”, e jamais completa, encerrada, ainda que um forte de coerência lhe esteja presente, garantindo-lhe uma abertura interpretativa que fundamenta esta mesma comunicação. Este filme de Júlio Bressane comunica, deve-se bem dizer, mas o faz principalmente por aquilo que não está ali evidente, cuja ausência é a principal marca de desígnio daquilo que se manifesta, tantas vezes, apenas pela sua sugestão. É no que está fora que ele se baseia, da ficção que está fora do registro e do registro que está fora da ficção. É pela abstração que este chega à concretude e pela concretude que ele chega à ficção.

Assim, “Cuidado Madame” dispõe seus elementos dramáticos, dispersos em meio ao fluxo de sua apresentação, sem jamais articular-se em uma dramaturgia propriamente dita, em uma ordem de progressão que introduza as suas problemáticas de uma maneira linear ao seu espectador. Mais do que uma progressão, deve-se dizer, o filme confia em um acúmulo, em um sentido que passa a se estabelecer somente a medida que se tem uma apreensão mais completa de sua unidade. Desta maneira, o que temos? Duas atrizes, Helena Ignez e Maria Gladys, representando empregadas domésticas, em uma caracterização tipificada que se volta ao puro jogo lúdico da atuação. Quais são as suas ações? Uma série de assassinatos em cumplicidade, em meio a diversas perambulações, passeios, conversas que a câmera observa à distância e que o registro de som deixa mesmo de apreender por completo. O que as ameaça? A polícia, certamente, que, no entanto, deixa de ameaçar, manifestando-se somente em sua ausência de ação, em sua presença somente superficial, como instituição de poder que não o cumpre, sem figuras de representação, sem indivíduos. E onde isto se dá? Copacabana, é claro, no ano de 1970, com toda a sua representação se desenvolvendo em um espaço bastante restrito, de três ou quatro ruas, a partir dos elementos materiais que ali se articulam nas ações desenvolvidas por suas duas personagens. 

Neste filme, nada se “quer dizer”, mas, simplesmente, “diz aquilo que é”, a partir de uma absoluta abertura às possibilidades contingentes de intervenção da realidade que se associa à uma “ficção pura”, em que o peso dramático das ações e a “moral realista”, frequentemente, não intervém, por um artifício que despreza a conotação moral da realidade elementar desta morte, quando o seu interesse se volta simplesmente à caricatura da histeria agônica da morte, em um jogo lúdico de atuação. “Ficção pura” que se afigura como um elemento fundamental, uma vez que não se parte de uma narrativa, de um roteiro a seguir, mas sim do pretexto destes assassinatos, em torno do qual se articulam suas cenas. No entanto, é importante dizer que, tal como o filme o aborda, não trata de uma espetacularização deste assassinato, mas de um olhar crítico justamente ao fetiche de mostrá-lo, às tentações de se representar esta violência em sua realidade material. É pelo caráter negativo da sua mostração, pela ausência do ato implícito na tela, que no limite ele é capaz de mimetizá-lo pela repetição de uma mesma imagem do corpo já morto e estirado, resultado de uma ação passada que não se viu e nem se verá, disposta por uma repetição e fixação insistente, pelo escrutínio da câmera sobre a sua superfície, como a atestar que nesta personagem a vida já não mais existe. Ao expressar a ameaça contra estas personagens e os crimes que vêm cometendo, Bressane limita-se a mostrar somente os carros da polícia parados e vazios, sendo a sua imagem a da sua própria ausência de indivíduos e a sua aparência suficiente para apontar a inércia deste poder que jamais se cumpre e que permite que estes crimes continuem a ocorrer.

Aqui, então, este aspecto material do filme constitui um elemento central, não apenas quanto à sua locação de filmagem, mas pelo que diz respeito às propriedades relativas ao trabalho cinematográfico em si, na duração dos seus planos, na insistência da procura pela ação, nas tentativas de recriação das cenas no interior de uma mesma continuidade filmada. A câmera, que se poderia considerar como uma de suas personagens principais, atuando de maneira extremamente alinhada às presenças físicas das atrizes, seja em um movimento a favor ou contrário, se dispõe frontalmente aos fenômenos, dispondo-se à eles, ao invés do contrário convencional, em um registro que a todo o momento procura pelo ordinário e não pelo particular, que sai em busca não daquilo que possui um interesse específico e pitoresco, mas pelo banal, pela vida cotidiana, abrindo margens enormes para a contingência. Pode-se dizer que esta contingência mesma é o motivo pelo qual o filme parece não perder jamais a qualidade de seus efeitos, jamais esgotar-se em seu próprio jogo, ao mesmo tempo em que este jogo exige também a participação ativa do espectador, que deve estabelecer as relações entre os elementos pelos quais assimila esta narrativa, jamais imposta ou dada, simplesmente, pelo realizador. Se, além disto, este filme é também um documento de uma época e de um lugar, isto se manifesta de tal modo que não se prende a este dado temporal específico, não se mostra dependente desta contextualização simplesmente, não se torna apenas passado, mas é como se, desde então, deste lugar e tempo, ele continuasse a comunicar, permanecendo até hoje em construção e jamais fechado em si mesmo, jamais resumido e muito menos reduzido a ser apenas um “dado histórico”.

Assim é que a ficção surpreende como contraponto de um registro objetivo, documental, de um tempo e um lugar, pelo que é o caráter irreal da sua narrativa, das suas ações, dos seus eventos, da liberdade destas personagens, da caricatura, da ausência de moral. O filme, afinal, existe apenas a partir deste tensionamento entre a ficção e o documental, sem margens que os reparem, sempre realizando passagens sutilíssimas e inesperadas entre um e outro, sempre as atrizes ou a câmera procurando evadir-se, romper esta relação, para que no plano seguinte ela possa voltar a ser construída. Ou, no limite, que esta relação seja rompida e restabelecida no interior de um mesmo plano, como no plano do calçadão em que Ignez e Gladys somem em meio aos passantes na profundidade de campo, para retornar alguns minutos depois, gerando um momento de absoluta suspensão que se manifesta como a imagem decisiva de seus procedimentos estéticos e que representa muito bem uma retomada e um desdobramento daquilo que já estava presente no plano final de “O anjo nasceu”. Pois o documento nunca é simplesmente fundo aqui, mas sim um de seus objetos principais, uma vez que a performance de suas atrizes não pode ser dissociada desta relação direta com o espaço em que ela se dá, pois esta representação se constituição das interações, das relações que se constroem no interior destes espaços, do preenchimento do tempo mesmo, do vazio, do rolo do filme a ser emulsionado.

O filme revela o seu próprio dado material de produção, a sua própria feitura, posta em evidência, também pelas pessoas que se juntam ao redor da câmera, que passam a sua frente ou que interagem com suas atrizes demonstram as contingências de uma produção que não se dá em um circuito fechado aos estritos interesses do filme, mas imediatamente disposta e exposta à realidade ordinária, a um mundo indiferente a este filme que é feito, que não para para a sua realização, e que sobre ela intervém positivamente, revelando também a precariedade deste sistema de produção, a sua carência, a sua redução às menores estruturas possíveis. Assim, tantas vezes, há um aspecto de material bruto neste filme que revela a sua filmagem “ao vivo”, sem interrupções no rolo do filme, na repetição de takes em continuidade, em tentativas de movimentos de câmeras, na repetição de certas ações, sem que se interrompa a filmagem para iniciar logo depois uma nova tentativa. Veem-se, assim, as tentativas de se dar conta de uma determinada passagem, de um determinado objeto, cujo sucesso de apreensão deveria ser guardado pela montagem e utilizado na construção narrativa do filme e cujas sobras, em qualquer outra montagem convencional, seriam naturalmente descartadas, uma vez que este sucesso já realizaria suas intenções pretendidas. Aspecto material ao qual se contrapõem as cartelas que iniciam o filme, cuidadosamente ali dispostas, pela sua particularidade, seu preciosismo, sua delicadeza plástica, seja na tipografia como na transição entre os planos, que se contrapõe absolutamente à estética de todo o filme e se dispõe tal como uma moldura necessária para atribuir ao filme uma credibilidade, para encerrá-lo nos limites desta apresentação, garantindo-lhe uma credibilidade que toda sua materialidade filmada irá procurar renegar.

Se aqui não há uma decupagem estabelecida a priori e câmera e atrizes se encontram sob uma enorme liberdade de movimentação, jamais o filme se deixa prender a uma fixidez de relações estabelecidas de abordagem; ao contrário, o que se mostra, por fim, é uma extrema inteligência que se impõe a cada vez por suas variações, estabelecendo maneiras distintas de se apreender esta matéria narrativa que desenvolve. É quando esta câmera se dissocia das personagens em muitos destes planos, assumindo plenamente seu elogio ao plano geral, que de maneira mais evidente esta potência do registro documental se manifesta, em que o extra-fílmico adquire um lugar de destaque, como o principal motivo em que o filme se detém. É por estes planos que se vê também em que medida a mise-en-scène de “Cuidado Madame” está articulada a partir das pequenas ações realizadas pelas duas atrizes e a escolha da câmera de dissociar-se ou segui-las até o fim, tal como tantas vezes parte de outros objetos para encontrar estas personagens ou as deixa para se dispor a outros objetos. Existem, em realidade, diferentes percursos que se desenvolvem, diferentes caminhos pelos quais a câmera chega a abordá-las, por “improvisações” que enfatizam, antes de quaisquer propósitos dramáticos propriamente ditos, suas “variações sobre o tema”, apontando, para além das cenas cantadas e dançadas aí muito presentes, também um filme “musical” pela sua própria estrutura de sua representação.

Matheus Zenom

Notas sobre a especificidade no filme de auto-ficção

A imagem cinematográfica, assim como a fotográfica, pode ressaltar as especificidades de um objeto ou generalizá-lo. Filma-se aquele objeto, como essa caneca vermelha e metálica que tenho na minha mesa, ou um/o objeto, uma caneca. Aquela pessoa, o Matheus, ou uma pessoa, um homem. A natureza indicial do aparato cinematográfico torna seu olhar tão subjetivo quanto o nosso, sendo possível projetar em sua imagem a maior das abstrações e idealizações ou a maior aparência de neutralidade possível.

A ficção hollywoodiana, especialmente no passado, buscou, na maioria dos casos, este olhar mais genérico, abstrato, totalizante, por muitas vezes através de estereótipos, reforçando alguns já existentes ou até mesmo estabelecendo novos. Em prol da narração (muitas vezes de cunho moral), personagens são reduzidos à tipos, e não desviam muito de curvas esperadas. Outro dia vendo Human Desire (1954) de Fritz Lang fiquei pensando quem era de fato essa personagem de Gloria Grahame, de que maneira ela ria, sobre o que falava, do que gostava. Mas nada disso interessa ao filme, ela é simplesmente a esposa jovem e bela de um marido velho e ciumento. Não pretendo, com isso, criticar o filme ou Hollywood. Apesar de não considerar um dos melhores de Fritz Lang (talvez, sim, também por conta disso), acredito que há uma coerência clara entre o que o filme deseja e como esses personagens são construídos – também não apontaria esse aspecto como uma regra na filmografia de Fritz Lang, em um filme como The Secret Beyond the Door (1947), até mesmo por sua narrativa incomum, os personagens são mais complexos, mais específicos, ainda que caiam em alguns clichês da narrativa psicanalítica da moda da época.

Desde os anos 60, quando, entre outros fatores, a tecnologia de filmagem ficou mais leve possibilitando-se filmes mais “artesanais”, aquela camada grossa de ficção e universalização que pairava sob os clássicos de Hollywood parece ter se tornado não apenas mais fina, mas mais maleável. Nos anos finais da Hollywood clássica, essa camada ficcional parece ter passado por um período em que era utilizada quase como um comentário de si mesma. Em um filme como Vertigo (1958) observamos as diversas facetas dessa ficção dentro da própria ficção. Em um filme como Johnny Guitar (1954), vemos seus esteriótipos confrontados ao serem reconfigurados. Alguns anos mais tarde, saindo de Hollywood, em um filme de Jean-Luc Godard começamos a ver pessoas que entram e saem de suas camadas ficcionais, que vestem a ficção, que varia de tom como uma troca de roupa, e em um filme de Éric Rohmer vemos pessoas que quase não carregam uma camada ficcional. É a diferença do que vemos quando olhamos Marilyn Monroe em Gentlemen Prefer Blondes (1953), uma mulher (ou uma loira), e Marie Riviére em Rayon Vert (1986), aquela mulher (onde a personagem Delphine poderia muito bem se chamar Marie, enquanto Lorelei Lee é um nome costurado à persona da personagem de Marilyn). É claro que, talvez assistindo os filmes uma segunda ou terceira vez, podemos também ver Marilyn em suas especificidade, e Marie Riviére em sua universalidade, mas suas personagens são evidentemente construídas de formas muito distintas afinal o trabalho das atrizes é distinto, o modo de narrar é distinto. O filme de Howard Hawks não busca um naturalismo em seus diálogos rápidos, muito menos Marilyn em sua Lorelei de voz afinada e sexy; essa camada parece inclusive cair por um segundo quando Lorelei indica que apenas se faz de burra para os homens, o que poderia muito bem ser Marilyn dizendo o mesmo para todos seus espectadores – afirmando o óbvio, afinal, que era uma atriz performando papéis.

Até aqui falo de filmes que trabalham bem esses aspectos, que sabem quando estão lidando com um estereótipo ou com algo específico, com o artificial ou com o natural, com o ficcional ou com o documental (termos que, apesar de uma associação evidente, estão longe de ser sinônimos e que raramente se encontram em estado “puro” em um filme). Acredito que uma ignorância quanto a esses aspectos seja um dos grandes problemas do cinema das últimas décadas. Apesar de grande parte do “cinema de arte” ou “cinema de festivais” buscar, desde os anos 60, mostrar o específico, e mais ainda desde os anos 90, a retirar as camadas de artificialidade da imagem cinematográfica, não é o que na prática se observa. Agravada ainda com os discursos engessados que costumam cercar as pautas identitárias nos últimos anos, a especificidade no cinema contemporâneo parece funcionar, paradoxalmente, como um artifício para uma aparência mais “documental”, “realista”. Os planos são mais próximos, as câmeras balançam mais, os diálogos são menos formais e assim se “monta” uma realidade específica artificial – que portanto nada tem de realidade, tampouco de específica.

Este não é exatamente um apelo à especificidade. Acredito que por vezes o artifício seja um caminho muito mais interessante, seja em Hitchcock, De Palma, Verhoeven, Carpenter ou Tarantino, e um que talvez esteja vivendo uma crise ainda maior, os filmes propositalmente artificiais e interessantes hoje são ainda mais raros. Mas se o caminho escolhido for a especificidade, esta precisa ser trabalhada a partir da realidade, junto à feitura do filme. Quando não se observa o objeto filmado mas deseja-se falar sobre ele em um nível específico, íntimo, supostamente real, acaba-se aplicando a intimidade como uma fórmula, nem um pouco diferente dos roteiros hollywoodianos, com a exceção de que estes em geral não se pretendem buscar a realidade – além de que, no caso da Hollywood clássica, esses roteiros eram extremamente bem elaborados. A realidade específica adentrou no cinema contemporâneo mas apenas como tema, como substituta das grandes histórias.

No livro Vidas Imaginárias, de Marcel Schwob, ou em um filme de Werner Herzog, desde a história semi-original de Aguirre, passando por uma releitura como Nosferatu, até algo sem precedentes como Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans nos surpreendemos com a imprevisibilidade dessas vidas contadas, desses personagens que parecem soltos em um mundo que os determina, carregados para destinos arbitrários. Suas vidas não são necessariamente grandiosas mas são singulares, e como coloca Schwob, aí é que reside o nosso interesse: “A arte é contrária às ideais universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único. Não classifica; desclassifica. Pelo tanto que nos interessam, nossas ideais universais podem até ser similares àquelas vigentes no planeta Marte, e três linhas cruzadas formam um triângulo em qualquer ponto do universo.” – como explicitado anteriormente, diferente de Schwob não acredito que toda a arte seja contrária às ideias universais, mas acredito ser o caminho mais interessante a se percorrer em uma biografia, ainda mais em uma auto-biografia.

Em filmes recentes como “Call me by your name”, “Roma”, “Lady Bird”, nos quais supostamente estaríamos vendo histórias únicas, pessoais e íntimas, parecemos ver imagens feitas por algoritmos alimentados por “palavras-chave”. É curioso, assim, que as histórias supostamente tão distintas de um jovem se descobrindo gay na casa de campo dos pais nos anos 80 (Call me by your name), uma empregada de uma família rica mexicana nos anos 70 (Roma), e uma adolescente californiana nos seus últimos anos de escola no começo dos anos 2000 (Lady Bird), sejam tão previsíveis, tão próximas de tudo aquilo que já vimos. Esses filmes parecem não olhar para seu próprio conteúdo e trabalham a imagem como uma mera ideia perpassada, palavras soltas num roteiro. O que conta é meramente que o conteúdo generalizado esteja ali e não como mostrá-lo ou suas particularidades. A especificidade parece estar presente apenas no fato de que o roteiro, que é filmado como outro “filme de arte” (ou filme de Sundance) qualquer, é semi-auto-biográfico, o que na prática significa apenas que compartilham uma vaga semelhança com porções das vidas desses cineastas. O mesmo roteiro que em si contém os mesmos conflitos e turning points tradicionais, só que mal colocados e sem a força das grandes histórias.

É claro que nos exemplos de Schwob e Herzog, há uma busca por vidas extraordinárias enquanto nos outros casos buscam-se realidades íntimas e corriqueiras. Mas quando penso em exemplos da literatura contemporânea que seguiram uma corrente semelhante, a da “auto-ficção”, como Elena Ferrante e Karl Ove Knausgaard, ambos os quais priorizam a intimidade e vulnerabilidade, penso na importância da forma para ambos os autores. Esta com certeza é mais perceptível em Knausgaard, que discorre não linearmente sobre sua vida em relatos, paisagens e ensaios, mas não deixa de ser extremamente trabalhada em Ferrante, na forma límpida e ao mesmo tempo neutra e extremamente tenra que olha para seu passado (ou partes dele, como não sabemos ao certo quem é a autora).

Observo, então, dois filmes que também poderiam ser enquadrados nesse “gênero” da auto-ficção, ambos dos anos 90, Buffalo 66 de Vincent Gallo, e Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles de Chantal Akerman. Ambos semi auto-biográficos, ambos com formas narrativas tão específicas quanto suas histórias. Em Buffalo 66 temos, por exemplo, inserts de vídeos caseiros durante um diálogo da família na mesa de jantar, este filmado de uma maneira extremamente anti-naturalista, planos com a câmera centralizada em cada personagem de tal forma que não seria possível todos estarem ao mesmo tempo naquela mesa, e com um humor peculiar que consiste basicamente em evidenciar como os pais do personagem o tratam mal. Temos ainda momentos performáticos, como cenas de um musical, que irrompem de uma história que poderia estar em um thriller ou uma comédia mas acaba sendo um drama. Em Portrait d’une jeune fille temos uma boa parte do filme apenas de diálogos falados de forma rápida e seca, também anti-naturalista, enquanto os personagens andam pela cidade. Ao longo do filme também temos momentos mais musicais, incluindo uma longa cena de jovens dançando em uma festa, durante a qual as cartas são postas na mesa sem diálogos, apenas pela troca de casais dançando e troca de olhares, onde percebemos tanto o desejo coibido da protagonista por sua amiga quanto a improbabilidade de concretizá-lo.

Ambos são filmes únicos na História do cinema, em forma e em conteúdo, pois as duas coisas estão tão entrelaçadas que é difícil ver onde acaba uma e começa outra. É impossível imaginar suas histórias sem suas estruturas, tons e performances específicas. O anti-naturalismo e os momentos performáticos e musicais em ambos os filmes também evidenciam a possibilidade de uma abordagem específica sem a necessidade de uma naturalidade na representação, de um aspecto “documental”; a consciência, enfim, de que ainda que pessoal e específica, trata-se de uma representação.

Talvez a questão temporal seja de grande importância aqui, levando-se em conta que os dois filmes se passam na duração de um dia, enquanto os três exemplos anteriores abrangem semanas, meses ou anos. Talvez a condensação temporal exacerbe o conteúdo específico, afinal, o que há de mais específico do que um dia peculiar na vida de uma pessoa particular? Ou talvez esse efeito de condensação temporal funcione por desestruturar a estruturada esperada da biografia. Ao invés de escolher os “melhores momentos” ou momentos que se encaixem de tal forma a contemplar um arco narrativo clássico, esses filmes se constroem de forma orgânica – o que não se resume ao improviso, essa forma orgânica pode ser prevista no roteiro – e pontual, como diz Schwob: “A arte do biógrafo consiste justamente na escolha. Não lhe cabe a preocupação de ser verdadeiro; ele deve criar em meio a um caos de traços humanos.”.

Se pegamos outros filmes próximos temporalmente, como Les Baisers de Secours (1989) de Philippe Garrel e L’eau Froide de Olivier Assayas, percebemos a diferença entre uma busca verdadeira por uma especificidade na tela e sua simulação. Em Les Baisers de Secours o protagonista, interpretado pelo próprio Garrel, deseja fazer um filme sobre sua vida, onde pretende buscar uma atriz para interpretar sua esposa, interpretada por Brigitte Sy, esposa de Garrel, que deseja interpretar a si própria e se incomoda com a situação. A realidade da produção entra em conflito com o próprio conflito ficcional do filme, uma vez que Brigitte Sy está, afinal, interpretando a si mesma – ainda que os personagens tenham outros nomes. O filme parece confirmar que é impossível se retratar um conteúdo pessoal, íntimo, específico, sem pensar em uma forma pessoal, íntima e específica e assim, não apenas constrói sua narrativa de forma orgânica à vida “biografada”, mas de forma ainda meta-linguística, semelhante àquela que será reelaborada por cineastas iranianos como Mohsen Makhmalbaf e Abbas Kiarostami.

À primeira vista Olivier Assayas pode parecer um grande precursor de um cinema mais íntimo e específico, mas o grão da película engana. Em L’eau Froide parecemos assistir a uma versão enfadonha de um coming of age americano. Como tantos coming of age, supostamente lida com a angústia de um casal de jovens ao demonstrar seus contextos familiares problemáticos, mais especificamente, aqui, as consequências que os dois sofrem após roubarem juntos um disco. De maneira que hoje é tão familiar, o filme parece dispor uma série de situações recorrentes do sub-gênero completamente esvaziadas de conteúdo. Nem a menina ou o menino tem um jeito particular de falar, andar ou se vestir, nem falam sobre nada meramente memorável. Até as múltiplas músicas que tocam no rádio são todas genéricas, “hits” dos anos 70, à exceção de Nico – talvez o momento em que a música de Nico toca seja o mais especial do filme, talvez apenas lembre um filme de Garrel. É curioso pensar que em coming of age clássicos como Rebel Without a Cause ou Sommaren med Monika, por mais pré-estabelecidos que sejam seus personagens, ainda conseguem passar uma angústia da juventude e uma presença concreta de seus espaços com muito mais intensidade e especificidade; tanto o personagem de James Dean quanto Monika se tornaram icônicos mas nasceram específicos – é difícil definir até que ponto dialogam com certos “tipos” do jovem americano ou sueco da década de 50 ou se não foram os próprios filmes que consolidaram estes estereótipos.

O filme ainda veste a roupa de “cinema de arte” com mais destreza do que os contemporâneos (ou talvez, novamente, o grão da película engane), mas possivelmente por isso mesmo consiga ser ainda mais incômodo. A câmera se movimenta de maneira aparentemente arbitrária pelas paredes, revelando seus personagens de forma oscilante, não como Tarkovsky que também filma paredes para revelar texturas e camadas ou como nos filmes de Hou Hsiao-Hsien, onde em seu interesse evidente pelos aspectos plásticos e sensíveis das cenas, o minimalismo da representação torna-se ao mesmo tempo um hiper-realismo destas. No caso de Assayas este movimento da câmera parece ser completamente dissociado da narrativa, como se uma ausência completa de ímpeto formal fosse revelar melhor um conteúdo, entretanto revela apenas a parede de relance, sem se atentar a esta, sem detalhes, sem drama, não há sequer um sentimento de vazio, seria impossível com os hits tocando no rádio. Me parece apenas uma maneira de manter a câmera em movimento, de fingir uma mise-en-scéne. A parede parece significar o mesmo que a folha em branco no final do filme – nada.

(Assayas, entretanto, pelo menos tenta e falha, enquanto Call me By Your Name, Roma e Lady Bird nem chegam a tentar criar algo novo, pois já contam com o sucesso garantido pela empatia de seus temas e pelo “atestado de qualidade” de seus diretores, devido a recorrência de seus nomes em festivais e premiações – e, no cinema de festivais, parece que basta colocar assuntos em cena para lidar com eles)

Paula Mermelstein

Apresentação


A Revista Limite parte de uma vontade nossa de praticar o ofício do ensaio e da crítica de arte com maior regularidade, estabelecendo um diálogo com seus leitores e contribuidores e, à medida do possível, criando um novo espaço de discussão. Uma revista de crítica e ensaio, como fazemos questão de apontar, por pensarmos que aqui deve haver tanto um comprometimento mais dedicado às analises de um objeto preciso quanto à reflexão tomada de uma maneira mais ampla e descompromissada.

É também uma revista “de arte” porque esperamos lidar com os objetos mais variados, não nos restringindo às análises de um único meio, embora a maior parte de nós esteja efetivamente mais envolvida com os propósitos cinematográficos. A revista parte de um desejo, assim, de se escrever de outra maneira, sobre outros objetos, a partir de outros conceitos que não são os comumente veiculados na crítica institucionalizada ou no meio acadêmico; não se pretende aqui estabelecer um contraponto, mas, justamente, outro ponto.

A revista será de periodicidade trimestral, o que permite que se tenha uma regularidade de comunicação com o leitor, para que este acompanhe o desenvolvimento das reflexões expostas, e que se conserve um frescor de uma escrita mais direta, sem maiores ambições quanto ao rigor bibliográfico que requer, por exemplo, um texto acadêmico, mas ainda mantendo o rigor necessário de análise. Estas reflexões, afinal, não pretendem resumir ou concluir qualquer questão, mas se dispõem como investigações, experiências e descobertas, podendo um texto ser retomado em edições posteriores e aprofundado ou mesmo reiterado, em um processo contínuo de formação da revista e daqueles que aqui escrevem.

Esta primeira edição conta com um número reduzido de textos – que se espera expandir nas próximas – heterogêneos em forma e conteúdo. Mais do que estabelecer quaisquer vínculos temáticos que definam as edições da revista, procuraremos aqui reforçar as individualidades de cada uma das contribuições, esperando que os seus pontos de afinidade argumentativa se tornem evidentes. Deixemos, então, que eles falem por si mesmos.

Paula Mermelstein e Matheus Zenom, editores

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O caráter histórico e reflexivo da linguagem

1 – Da experiência ao experimentalismo

O trabalho em cada gênero artístico, bem como em cada atividade humana, se dá sempre em um âmbito de conhecimento comum, que fundamenta suas possibilidades de comunicação. Existem sempre as “regras do jogo”, no interior das quais novos problemas poder ser encontrados, frequentemente exigindo que se descubram novas soluções. Surgem assim os novos campos, as novas experiências, as novas possibilidades reveladas – nunca simplesmente alheias àquilo que havia antes. O sujeito que descobre essas possibilidades, sim, pode-se dizer que está inventando uma “variação da roda”, mas nunca a roda em si mesma, porque o cinema antes já existia, bem como as casas, os carros, as máquinas, quase todo o tipo de ferramenta em geral. Ele não é capaz de inventar um “novo cinema”, senão uma variação, uma atualização ou uma ruptura com aquilo que havia antes – cujo precedente jamais é ignorável, uma vez que o seu referencial de comparação é essencial à definição das características particulares deste novo objeto criado.

O grande esforço de compreensão da contribuição de um sujeito em relação a este conhecimento, no cinema, na arte, e em todo lugar, deve se dar em relação aos parâmetros estabelecidos por uma tradição. O que se coloca propositalmente de fora de qualquer tradição e exige para si critérios de avaliação particulares, que define seus próprios parâmetros de crítica, é, no mínimo, suspeito, pois reivindica para si qualidades que mais ninguém pode ter, e que só fazem sentido no contexto específico que o sujeito forja para sua obra – criando um jogo em que só ele pode jogar e em que não se perde porque se é dono da bola. Em sua atitude deliberadamente conformista, se faz apenas o elogio da trincheira, daquilo que nenhum artista admira, que é a marginalização.

Neste sentido, a existência dos “festivais de cinema experimental”, particularizados em relação a todo o cinema restante, faz com que os filmes sejam recebidos através de valores forjados a partir de uma dissociação de toda uma tradição de cinema que é anterior. Frequentemente, o que se vê nestes cineastas é apenas uma “experiência” pré-planejada, manifestada pela repetição dos mesmos signos e procedimentos já conhecidos, na produção de simulacros de filmes “experimentais”– em que as ideias de cinema e de experimento são superficialmente compreendidas, muitas vezes. Assim se percebe o quanto esta produção guarda apenas alguns clichês estilísticos ou um vago sentido “poético”, que aspira à poesia enquanto efeito e não como linguagem, resultando este cinema experimental em um puro “experimentalismo”, em que a tentação de criar novas surpresas, novos efeitos, é maior do que o caráter de experiência que o filme mesmo comunica em continuidade à produção artística anterior de um mesmo sujeito e do cinema, em geral.

Este forjamento de efeitos não está muito distante do cinema que pensamos ser “convencional”, pois a mesma atitude está presente também naquilo que se pretende mais “autoral” no cinema narrativo, definido por uma malícia estilística alinhada às tendências “esteticistas” de seu contexto imediato na exposição de motivos conteudísticos ordinários, em uma pura exterioridade que jamais se volta ao interior de suas próprias relações. No fracasso de sua comunicação, motivado, em grande medida, pela negligência de fundamentos e precedentes históricos, se produz um lamento sem sentido, uma vez que o realizador (ou qualquer outro artista), sendo o único responsável por encontrar novas soluções para sua expressão, é “aquele que não tem direito de reclamar”, como já afirmava o jovem Truffaut

Se existe de fato uma semelhança entre a poesia e o cinema (ou qualquer outra arte), isto se dá justamente pelo aspecto “poético” com que se trabalha a linguagem, isto é, o entendimento por parte do sujeito dos aspectos que compõem a materialidade expressiva de seu meio e de seus objetos, movidos pela sua capacidade de articulação. O que também pode haver é, certamente, uma semelhança em relação à ligeireza da prática, quando se trata de um cinema despojado, realizado através de pequenas câmeras, sem equipes, por uma economia extrema de meios que se assemelha à liberdade, espontaneidade e contingência do trabalho de quem escreve seus poemas tendo apenas caneta e papel.

Entretanto, mesmo que a poesia moderna tenha se desprendido em grande medida das formas clássicas (desde, pelo menos, o verso livre com Whitman), jamais se criou uma dissociação para o que nela fosse “experimental”, ainda que poetas como Mallarmé, Cummings ou os concretistas se afastassem cada vez mais de qualquer lógica “prosaica” de exposição. É interessante lembrar o entendimento da proposição de Ferreira Gullar a propósito do “tensionamento da linguagem”, definido por ele como um esgarçamento do sentido original das palavras, expandindo suas possibilidades de comunicação, sob o pretexto da expressão de um novo objeto: em outras palavras, um deslocamento do significante em relação a um determinado significado, o que provoca um novo caráter de significação. Assim, se configura uma disputa de forças entre forma e conteúdo, onde se percebe a maneira como determinadas escolhas formais atuam na contenção de um determinado conteúdo que se pretende comunicar. Isto é, a síntese, a unidade do objeto artístico, através do próprio trabalho de lapidação formal, da sensibilidade às materialidades expressivas, do deslocamento das expectativas, que particulariza o novo sentido proposto, sendo responsável também pela descoberta de novas formas e a abertura a novas possibilidades de linguagem.

É por este mesmo trabalho de lapidação que o caráter do experimento se manifesta não apenas no “cinema experimental”, mas em qualquer outro cinema que não se aproprie deste rótulo, pois o que ele designa é uma inteligência que dirige seus elementos expressivos na descoberta de uma linguagem particular. Ao ignorar este caráter de tensionamento, o experimentalismo deixa de corresponder a uma tradição, de superá-la, de aumentá-la, pois é precisamente por apenas reproduzir procedimentos já conhecidos, reafirmando os critérios de seu contexto imediato, ignorando o desenvolvimento de um pensamento e guardando somente os seus efeitos superficiais, que ele não pode fazer parte desta tradição, limitando-se a associar-se a ela apenas pelo comentário, sem dar um passo adiante em um sentido distinto – o que leva, fatalmente, estes comentadores a estarem deslocados de qualquer experiência histórica.

2 – Da tradição à assimilação histórica

A “tradição”, ou “uma tradição”, não se refere a um conjunto de valores consolidados e inquestionáveis (gesto conservador que não faria avançar as formas artísticas),mas a um conjunto de obras que são, sim, referenciais, pelo seu caráter histórico, às novas produções, cujo diálogo estabelecido é justamente uma maneira de evitar a cristalização dessa tradição. É entre as brechas dos modelos já existentes, por certo caráter de correspondência e continuidade, que se pode criar algo novo e particular, que pode vir a se tornar histórico de acordo com o seu grau de inovação e particularidade. Isto implica, efetivamente, um conhecimento a propósito destas possibilidades de criação, uma noção básica dos resultados das experiências realizadas anteriormente e um comprometimento do sujeito com o próprio trabalho que desenvolve, consciente de que esta inovação acontece somente à medida que ela guarda em si certos aspectos das obras anteriores.

Quando pensamos nos primeiros anos de produção de Stan Brakhage, nome que se impõe com maior gravidade quando falamos a propósito da tradição do cinema experimental americano, os filmes realizados neste período se revelam decisivos para o entendimento desta questão. Se, a princípio, seus primeiros filmes refletem as experiências de James Broughton e Sidney Peterson –realizadores de dramalhetes de um caráter “lírico” e “lúdico”, distintos de uma produção convencional, mas limitados a pequenos teatros filmados, oferecendo muito pouco em potencial imagético, para além de alguns truques casuais –, será Maya Deren que mais decisivamente irá se impor como uma influência para os procedimentos presentes em Brakhage. Em Deren a linguagem constitui de maneira mais radical a narrativa em si, dependente de seus procedimentos de montagem, de sua articulação espacial e de sua fotografia, o que desloca a experimentação sobre a narrativa, não apenas dispondo o onirismo como um tema, mas manifestando-o agora diretamente no próprio caráter de sua linguagem. Nela, é somente através de uma forma nova que um conteúdo novo se expressa, desenvolvendo uma poética muito particular. Seu gesto é histórico, afinal, pois inaugura um novo domínio, uma nova tradição, que aprofunda de maneira muito mais grave e incisiva as possibilidades expressivas do “filme experimental”.

Assim, após sofrer a influência dos primeiros cineastas, Brakhage toma de Maya Deren uma lição que desenvolve em um sentido cada vez mais particular, partindo da assimilação de uma tradição anterior, sendo capaz de encontrar também, para si, novas abordagens que oferecerão um sentido dinâmico na expressividade do filme, na identificação das possibilidades presentes no interior de sua obra, pensando em novos caminhos que possam ser percorridos, cuja influência se afirmará em um cenário de efervescente interesse pelas possibilidades do cinema experimental.

Trazendo um exemplo mais próximo, da cinematografia brasileira e do cinema ficcional, pode-se dizer também que para que Glauber Rocha realizasse o seu díptico cangaceiro “Deus e o Diabo” e “O Dragão da Maldade”, foi antes necessário que ele tivesse assistido e assimilado os westerns hollywoodianos de John Ford ou os filmes pós-guerra de Rossellini, apreendendo do primeiro a construção narrativa, do segundo a materialidade do filme e de ambos o caráter histórico da representação. Sem eles, a inovação de Glauber Rocha não seria possível, pela que ela comporta de uma dramaturgia rigorosa, de uma teatralidade representacional, de uma pobreza de meios e uma contingência material que o cineasta é capaz de contornar em uma radicalidade formal, em uma nova expressão, absolutamente diferenciada das anteriores, que influencia grande parte do cinema moderno que se desenvolveria na Europa a partir de meados dos anos 60.

Se “a poesia é sempre, em certa medida, um contrário da poesia”, como diz Bataille sobre Baudelaire, esta negação implica, necessariamente, um conhecimento a propósito da poesia anterior, para que a ela se possa estabelecer uma oposição. Pois tal como a “anti-arte” jamais é o avesso da “arte” que antes existia, também o “anti-cinema” nunca pode ser o avesso do cinema, em si. O “anti” é sempre uma revolta contra os valores vigentes de seu contexto imediato, em uma tentativa de superação de suas limitações expressivas através do resgate de pensamentos, de atitudes passadas, de uma tradição que é revitalizada por esta contribuição, pela própria consciência estética que está implica em seu novo direcionamento.

Todo novo gesto de criação trata de um diálogo com a história, portanto, sempre por meio de um confronto, de uma relação dialética, e não simplesmente pela reprodução dos procedimentos estilísticos comuns, que cada vez mais se repetem sem qualquer tipo de consciência profunda em relação ao seu passado. Desta maneira, estes dois procedimentos se encontram, definidos pela assimilação que o sujeito faz do passado e a sua capacidade de elaborar uma nova articulação a partir desta tradição, complementando-se, sempre, um caráter histórico e um caráter reflexivo da linguagem.

Obviamente, a chave de acesso a estes processos históricos, ou a esta “tradição”, nunca é cronológica. Sempre é um objeto posterior que faz com que algo anterior se torne mais evidente: é sempre a repercussão do objeto que faz com que sua origem seja definida. Nada nasce “histórico”, mas se torna de acordo com as relações e influências que se desenvolvem a partir dele. Lumière, figura tão misteriosa e fundadora para o cinema como Homero é para a literatura, não era histórico até que se fizessem outros filmes e os primeiros movimentos de câmera, as primeiras entradas e saídas de quadro, ou mesmo as primeiras encenações as mais simples se tornassem evidentes nos seus filmes, de maneira que quando assistimos a um filme de Straub ou de Garrel, inevitavelmente voltamos a estes primeiros filmes.

Toda experiência se desenvolve a partir do conhecimento das experiências de uma geração anterior, redefinidas então novamente pelo caráter da contribuição particular de um sujeito. Logo, o valor desta experiência também supera este sujeito, para influenciar gerações futuras, para se tornar história. O caráter da experiência jamais está excluído do trabalho de qualquer artista comprometido com o jogo de sua criação, enquanto também persistir um olhar, uma atenção que lhe favoreça um gesto crítico ao interior de sua própria obra, na identificação de problemas e soluções em relação aos seus mecanismos expressivos.

3 – Da crítica à realização formal

A atividade crítica, ao tratar da assimilação e da exposição de determinadas obras cria, muitas vezes, o contexto necessário para que esta obra se destaque. Ao mesmo tempo, é esta atividade também tantas vezes responsável para que um determinado sujeito, ao se dedicar às obras de outros cineastas anteriores, tendo de apresentá-los de uma maneira rigorosa e consistente para esse público leitor, apreenda em maior medida as particularidades que definem o caráter expressivo destas obras, lhe conferindo uma maior consistência reflexiva em uma ocasião passagem da crítica à realização.

Neste sentido, é positivo precisar que o contexto em que a Nouvelle Vague se afirmou não se deu de uma hora pra outra. Ao longo de toda a década de 50, a atuação dos “jovens turcos” na Cahiers Du Cinéma criou um público e apresentou uma ideia de cinema pra esse público, de maneira que quando eles também puderam chegar a fazer os seus próprios filmes, também este público estivesse preparado para as ideias cinematográficas que, então, gostariam de propor. Se o conjunto dos resultados estéticos atingidos por esta geração é um dos mais notáveis dentro de um determinado período da história do cinema, e suas influências se fazem sentir até hoje, isto se deve a estes anos de aprendizado e preparação, não apenas uma preparação de seu público, mas sobretudo deles mesmos, pois desde o princípio a grande contribuição desta geração se deu no sentido de tornar evidente que o tamanho de um realizador não se mede pela dimensão dos projetos que assume, mas pelo caráter do pensamento que há por trás dos filmes que fazem. Assim, o “autorismo” de um determinado cineasta pode se definir não simplesmente pelos “traços estilísticos” de sua obra, mas pelo próprio “pensamento autoral” que define nos gestos de sua criação.

A filmografia do Godard nos anos 60 é extremamente representativa quanto a esta assimilação de uma tradição anterior, pela forma como basicamente tratou de se associar às tradições de gêneros diferentes em cada um dos filmes que fez. Ali está o filme o policial, o musical, a ficção cientifica, mas se superficialmente seus filmes guardam ainda este nexo com os gêneros cujos códigos convencionais o público já está habituado, Godard é capaz também de tensioná-los através dos interesses que movem, a cada vez, a formação de sua linguagem, na tentativa de encerrar os seus objetos de comunicação, dos quais os gêneros, em si, não funcionam senão como pretextos ou pontos de partida, afinal.

Aqui se deve apontar, entretanto, que não apenas a produção de “Acossado” se deu a partir de uma limitação de meios materiais muito grandes, mas em seu resultado final interveio também de maneira decisiva as exigências dos distribuidores para que o corte original de três horas de duração fosse reduzido pela metade, intervenção responsável pela composição pela qual conhecemos este filme hoje e sempre. O resultado absolutamente imprevisto, fora de qualquer intenção original do cineasta, fez com que Godard tivesse que se confrontar com as possibilidades surgidas desta alteração, explorando os seus efeitos estéticos nos filmes seguintes para muito além do jump-cut e movendo uma verdadeira e nova experimentação entre as relações de som e imagem.

Não é simples acaso, então, que mesmo Godard tornando-se um enorme cineasta, dotado de quaisquer permissividades que os produtores pudessem tolerar, jamais ele se disporia a realizar outro filme com mais de noventa minutos (pelo que esta duração implica mesmo a necessidade de uma concisão expressiva), nem mesmo de abrir mão, com raras exceções, de certa limitação de meios econômicos para suas produções, trabalhando ainda com baixos orçamentos. Pois é a partir destas limitações, desta economia financeira e material, que a sua economia estética pode surgir com maior expressividade, inspirando a invenção de novas soluções expressivas e se tornando mais imediatamente responsável pela constituição de uma nova linguagem.

A realização de “Acossado”, portanto, contém em si uma experiência decisiva para sua formação, não apenas pela maneira com que ali se aplica o seu gênio na
disposição dos elementos (formais e conteudísticos) do filme, mas exatamente por como este gênio se impõe à identificação de problemas e à busca de novas soluções. Sem estes problemas, e sem esta atitude impositiva sobre eles, Godard
não seria Godard, pois é a disposição à mudança, à inquietude, que lhe possibilita encontrar em um filme o problema a ser resolvido no próximo, quando “as circunstâncias, ou seja, a história”, como dizia Blanchot, “pronunciam esse fim que falta, e o artista, libertado por este desenlace, por um desfecho que lhe é imposto, pura e simplesmente, vai dar continuidade em outra parte ao inacabado”, seguindo uma consciência crítica voltada aos elementos de cada obra, no desenvolvimento de suas experiências anteriores.

A atitude do cineasta frente ao filme que faz, na continuidade de um projeto estético determinado, na formação e consolidação de uma linguagem particular, é semelhante à atitude frente ao texto crítico, quando o escritor observa as relações presentes no objeto criticado, o grau de sua composição, ao mesmo tempo em que busca, para o seu texto novas relações a partir destes elementos. Seu trabalho de criação impõe, acima de tudo, que este texto represente uma nova composição formal, definidora de sua autonomia e unidade fundamental. Esta forma é a imagem de suas relações, cuja coerência interior é determinante, também, da consistência de sua linguagem.

Matheus Zenom

“O Interior da Matéria” de Joaquim Cardozo e Roberto Burle Marx como uma Obra Poética, Crítica e Metacrítica

INTRODUÇÃO       

Faremos a seguir uma apreciação da produção autoral de Joaquim Cardozo tendo como objeto norteador seu quinto livro de poemas, O Interior da Matéria (1975). Para tanto precisaremos traçar um percurso que vai da edição princeps do livro até suas edições subsequentes. Tal como acontece com grande parte da obra Cardoziana, a edição primeira é alvo de grande especulação mercadológica, em parte por causa da escassez de volumes existentes, mas sobretudo devido ao teor estético ímpar que tal livro em específico possui.

O Interior da Matéria foi em sua configuração inicial uma obra de dois autores; nela constavam vinte desenhos de Roberto Burle Marx e vinte poemas de Joaquim Cardozo. Na ocasião primeira de publicação foram produzidos apenas 550 exemplares, todos autografados pelos dois e cinquenta acompanhados de litografias originais de Burle Marx. Como ambos os autores já faleceram, possuir uma obra autografada por ambos parece ser a justificativa utilizada por livreiros e consumidores para aumentar seu valor de mercado.

A hipótese aventada que será manipulada ao longo do texto é a de que os poemas produzidos por Cardozo nessa obra operam simultaneamente em três registros: O poético, o crítico e o metacrítico. Cada um desses registros terá um bloco dedicado para si. Antes disso, todavia, será preciso que tracemos um perfil autoral tanto de Cardozo, nosso autor mais específico, quanto de Burle Marx, nosso autor por ocasião.

JOAQUIM CARDOZO

A relação estabelecida entre poesia e pintura e as diversas leituras oriundas desse relacionar configuram uma das tradições interpretativas mais antigas da cultura dita ocidental. O esforço de compreensão da produção artística humana pelo próprio homem é constituído sempre pelas intuições daquele que interpreta, mas a possibilidade de qualquer interpretação particular é inevitavelmente determinada pelas circunstâncias históricas de pronunciamento.

Nos dias de hoje temos a impressão que podemos movimentar livremente o nosso passado, o que nos leva a crer que criamos uma situação de vale-tudo, onde qualquer reescrita da história pode ser uma legítima escrita histórica. Neste cenário onde o tempo se tornou uma variável independente e ao mesmo tempo tão facilmente manipulável, um dos papéis que uma crítica caudatária de recursos historiográficos pode exercer, talvez seja o de mostrar ao homem, possibilidades de modificação daquilo que em sua vida ele toma como dado.

Joaquim Cardozo parece ter sido um autor que compreendeu a importância da compreensão artística do mundo. Apesar do número crescente de estudos acerca de sua produção literária, ainda é escassa a análise de sua contribuição como crítico de arte. Seria espantosa essa penumbra se a própria figura autoral de Cardozo já não fosse escusa dos principais manuais literários. Não cabe a este trabalho aferir previamente à análise o valor da produção Cardoziana, mas é digno de nota que o autor esteve envolvido editorialmente com grandes nomes da arte Brasileira do século XX, ora como crítico colaborador — caso ocorrido em revistas como a Módulo e a Para Todos, ora como autor reconhecido — como por exemplo, sua menção na Antologia dos poetas brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946) de Manuel Bandeira.

Para falarmos de Joaquim Cardozo devemos operar um recorte. Tendo exercido diversos ofícios como por exemplo os de engenheiro estrutural, professor, crítico de arte, dramaturgo e poeta; torna-se imperativa a escolha de determinada esfera para que este trabalho crítico não se confunda com um exercício biográfico. Para tanto, falaremos aqui mais especificamente de uma parcela da produção escrita de Cardozo, na medida em que esta nos auxilia a desvelar elos com nosso objeto.

Desde seu primeiro texto registrado que temos notícia, intitulado “Astronomia Alegre” e publicado em 1913 no periódico O Arrabalde, podemos perceber que Joaquim Cardozo foi um autor atravessado por duas atitudes que se complementavam. São estas: O regozijo alcançável através da contemplação imanente das coisas; e um rigor conceitual que sempre retorna para o objeto contemplado, numa tentativa de racionalizar aquilo que se esconde em observações fugidias.

A facilidade com que manipulava, desde seus primeiros textos literários, conceitos das ciências que lhe foram contemporâneas, revelam-nos um caráter erudito que se esforça para conciliar, e até mesmo tornar indiferentes, o cotidiano e o estético. O resultado disso é a valorização do aspecto lúdico da realidade. Tal esforço fez-se notar ao longo de toda sua produção poética. Desde seu primeiro livro, Poemas (1947), Cardozo parece estar preocupado em cristalizar uma série de percepções intimistas da regionalidade sem, contudo, tentar introduzí-las a fórceps em uma universalidade artificial. Nas palavras do crítico José Guilherme Merquior (2013), os poemas de Cardozo representam a inserção do Nordeste na poesia dita Moderna. Tal comentário não entra em conflito com nossa leitura, pois aquilo que se convencionou chamar de moderno não foi meramente a importação de modelos, mas sim uma busca pela representação não romântica ou exótica do autóctone.

Os exercícios do autor em forma fixa, exemplarmente os Sonetos constantes em Signo Estrelado (1960), são um atestado de seu profundo conhecimento da tradição poética. O contraste que surge ao compararmos tais sonetos com os poemas contidos no Interior da Matéria — todos em verso livre, parece impossibilitar a aproximação destes com sua obra anterior, isto se torna ainda mais pungente se estivermos lendo O Interior da Matéria em sua reedição na coletânea Poesia Completa e Prosa (2007).

Publicada pela editora Nova Aguilar, a coletânea é a segunda que supostamente colige todos os poemas do autor, a primeira delas intitulada Poesias Completas (1971), por motivos cronológicos não contêm a obra completa de Cardozo, que publicou outros livros após o ano de 1971; entretanto é curioso notar que a segunda edição da Poesias Completas, publicada em 1979, não atualizou o número de livros e poemas da edição de 1971. Por tal motivo, o nosso objeto de estudo, O Interior da Matéria que data de 1975 só pode ser lido em sua edição princeps ou em sua republicação em Poesia Completa e Prosa. Esta última, todavia, opera uma modificação drástica na configuração inicial da obra, pois na coletânea não constam os vinte desenhos de Roberto Burle Marx. Tal fato seria menos grave se os desenhos fossem mero ornamento dos poemas, mas o caso é radicalmente outro. Existe uma nota no final de todo volume da edição princeps que atesta o seguinte:

Figura 1 – Especificidades da Publicação (Fonte: Acervo Pessoal)

Uma série de problemas surge com o conhecimento de tal nota. Em primeiro lugar é posta em cheque a validade de todas as coletâneas existentes da obra poética completa de Cardozo. A primeira que se propôs a tal objetivo, como já vimos, limita-se aos textos publicados até 1971; a segunda, que parecia ter suplementado as lacunas editoriais deixadas pela primeira, nos impõe uma compreensão dos poemas do Interior da Matéria como artefatos exclusivamente verbais. Talvez fosse lícita essa imposição se os artefatos visuais tivessem surgido como ilustrações posteriores aos versos, como ocorre por exemplo na peça de teatro Os Anjos e os Demônios de Deus (1973), onde oito serigrafias feitas por Fayga Ostrower acompanham o texto composto previamente por Cardozo. Mas no nosso objeto de estudo, os poemas não teriam existido se os desenhos de Burle Marx não tivessem lhe servido de motivo.

Tal compreensão nos leva a outro problema. A subtração da relação entre os poemas de Cardozo e suas respectivas inspirações visuais, subtrai do texto também sua dimensão crítica; expliquemos sucintamente algo que será explorado com mais profundidade na seção específica sobre o registro crítico dos poemas. Cardozo como já foi dito anteriormente, foi um autor que se envolveu também com a crítica de arte. Citemos por exemplo um de seus textos mais famosos enquanto crítico, chama-se ele “Um poeta Pernambucano: Manuel Bandeira”, este texto que versa sobre os três primeiros livros de um ainda jovem Manuel Bandeira, foi incluído no Livro do Nordeste, publicação organizada pelo então antropólogo Gilberto Freyre. Posteriormente Cardozo envolveu-se com a Para Todos, revista organizada pelos irmãos Jorge e James Amado. A passagem de Cardozo por tal revista é marcada, dentre outras coisas, pelo esforço de apreensão das novas modalidades e técnicas estéticas que surgiam. Este esforço que podemos num certo sentido chamar de racionalizante, é segundo a hipótese aventada, algo presente nos poemas do Interior da Matéria e como sugerido anteriormente, um aspecto autoral Cardoziano.

Ao destacarmos esse histórico crítico do autor, talvez finalmente se torne possível uma aproximação entre O Interior da Matéria e a obra poética anterior de Cardozo, pois se estas se afastam no que tange ao aspecto formal, elas se conciliam quanto a sua maneira de observar aquilo que se apresenta. Não que não houvessem versos livres nos livros anteriores ao Interior da Matéria, mas esta não era a modalidade preponderante e havia quase sempre um teor rímico que praticamente inexiste na totalidade do nosso objeto. Uma das propostas da tese que será testada é a de que ao nos voltarmos para os desenhos de Burle Marx, finalmente obtemos uma chave para a compreensão desses traços formais idiossincrásicos. Mas antes disso é preciso que se compreenda também de que forma O Interior da Matéria se insere na obra Burle-Marxiana.

ROBERTO BURLE MARX

Se para falarmos de Cardozo foi necessário operarmos um recorte, o mesmo recurso se faz necessário agora que nossa atenção se volta para o outro autor em pauta. Roberto Burle Marx foi acima de tudo um artista plástico, sua produção abrangeu áreas como a escultura e a pintura; mas seu reconhecimento internacional se deve, sobretudo, as suas intervenções enquanto paisagista. Para falarmos do papel que o artista exerce enquanto coautor do Interior da Matéria, curiosamente falaremos mais da sua biografia e de como, ao longo de sua vida se fez presente uma preocupação com o percurso do olhar, que para nós está em confluência com as contemplações críticas de Cardozo.

Existe uma anedota que explica de maneira quase mítica o despertar da percepção crítica desse artista. Segundo tal narrativa um ainda Jovem Burle Marx na ocasião de uma estadia de aproximadamente um ano e meio na alemanha, teria se deslumbrado ao visitar uma estufa de plantas ditas exóticas e entrar em contato com espécimes de sua terra natal, o Brasil. Aqui existe um curioso movimento que parece fazer eco com a tradição literária do exílio, pois é a partir do deslocamento geográfico do sujeito, que elementos autóctones adquirem um valor fantástico antes imperceptível.

De volta ao Brasil, Burle Marx aproximou-se de Lúcio Costa, arquiteto de suma importância que foi responsável pela introdução do ideário de Le Corbusier em nossa sociedade. Em 1932 Costa convida Burle Marx para projetar o jardim da residência dos Schwartz em Copacabana. De acordo com Leenhardt (2018) desde seus primeiros projetos Burle Marx tornou evidentes alguns aspectos que o consagraram, como por exemplo, a valorização da flora nacional — que há muito vinha sendo preterida em troca dos exemplares europeus, e a aplicação no âmbito do paisagismo das mais modernas técnicas oriundas das artes visuais europeias, como por exemplo, princípios cubistas de composição.

Diversos críticos da obra paisagista de Burle Marx apontam nele o surgimento de uma imposição das formas sobre o olhar do passeante sem precedentes na arte dos jardins, segundo Gilles Clément (2018), Burle Marx se inseriu numa corrente da sensibilidade pictórica na qual a obra pôs de lado a figura. Em outros termos, as produções de Burle Marx tensionavam o sentido tradicional de representação e o faziam de maneira tal que ressonâncias orgânicas surgiam dos seus modelos abstratos.

Tais tipos de juízo sobre a obra paisagista de Burle Marx nos interessam porque este trabalho se propõe a concatenar o esforço crítico racionalizante de Cardozo, com a produção pictórica de Burle Marx em sentido mais amplo. Pois sem o desenvolvimento desta última, os poemas jamais teriam vindo a ser. Comparemos a seguir um projeto de jardim, um esboço botânico e um desenho oriundo do Interior da Matéria.

Figura 2 – Estudos Preliminares para o Largo da Carioca, RJ, 1981. (Fonte: Motta, 1985)

Figura 3 – Desenhos Interpretativos da Espécie Pithecolobium Tortum Mart. (Fonte: Bardi, 1964)

Figura 4 – Desenho correspondente ao poema “Naves e Catedrais”. (Fonte : Acervo Pessoal)

Ainda que a diferença entre elas seja notável, as três figuras acima apresentam um fator em comum: A dinamicidade dos espaços representados. Através da superposição de pequenos planos surge em cada uma delas de modo distinto, uma contínua movimentação visual perceptível nas diferentes áreas de cada imagem. É como se cada campo existente, ao se articular com os demais campos presentes, tensionasse a totalidade do espaço gráfico.

A ordenação de tais figuras não foi arbitrária, é nítida uma gradação dinâmica entre as três. Na primeira, devido às imposições materiais que restringem a concepção de um logradouro, podemos perceber que esta é a figura mais estática; a segunda figura apesar de ter como motivo um objeto notadamente imóvel, foi representada pelo artista através de linhas fluidais; a terceira e última trata-se de um exercício de abstração onde as possibilidades prévias ao exercício artístico beiram o infinito, o resultado disso é um desenho que parece levar ao limite as realizações formais latentes nas obras determinadas por fatores pragmáticos.

Tendo em mente esta lacônica apresentação dos traços artísticos de Burle Marx, que nos foi propiciado pela menção de alguns fatos de sua biografia, falta ainda indicarmos, nos limites em que isso é possível, de que maneira O Interior da Matéria veio a ser no ano de 1975. Os comentários a seguir não terão a pretensão de constituírem uma crítica genética, para nós esse exercício especulativo tem como propósito apenas produzir sentidos que contribuam com as hipóteses centrais.

O INTERIOR DA MATÉRIA

A relação entre Cardozo e Burle Marx não surgiu devido ao nosso objeto. O Interior da Matéria é apenas um dos documentos que comprovam um elo existente pelo menos desde a década de 1930, período no qual ambos os autores fizeram parte da equipe do arquiteto Luiz Nunes, que criou sob orientação do governo Pernambucano a Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, órgão responsável por obras pioneiras no Recife. Tal convívio foi materializado em verso por Cardozo no poema “Terra do Mangue”, constante no livro Poemas e dedicado a Roberto Burle Marx. Não nos aprofundaremos aqui em tal artefato, mas cabe ser feito um comentário sucinto. O poema em questão parece expressar o contraste entre a paisagem com a qual os dois se depararam e as modificações que nela operaram com seus respectivos ofícios, modificações estas que apesar de severas não parecem ter obliterado aquilo que há de essencial em tal paisagem.

TERRA DO MANGUE

A terra do mangue é preta e morna

Mas a terra do mangue tem olhos e vê.

Vê as nuvens, o céu

Vê quando sobe a maré

Vê o progresso também

Olha os automóveis que correm no asfalto

Sente a poesia dos caminhões que passam para a aventura das estradas incertas e longas

…………………………………………….

As ondas do mar que vieram seguindo a noite

Desde lá de detrás dos horizontes

Estendem-se agora cansadas na areia

As sombras das árvores subiram do chão e agasalharam-se nos ramos

……………………………………………

Não há motivos, Margarida, para teres receios.

Olha através da porta do teu mocambo a sombra da noite imóvel:

Sob a perpétua luz das estrelas frias e impassíveis

A terra do mangue está dormindo.

Enfim, é chegada a hora de nossa análise, toda esta ampla seção preliminar que percorremos se apoia na crença de que comentar é, sobretudo, estabelecer o direito de um autor sobre um problema. Muitas foram as fraturas que surgiram ao longo da simples contextualização da obra; veremos agora que outras tramas advêm da nossa imersão em seu conteúdo. Lembremos que, o levantamento das questões concernentes à concretude de um volume não está de maneira alguma dissociado da apreciação de seus conteúdos formais, muito pelo contrário, compreender o livro enquanto artefato mercadológico é também compreender a crise do funcionamento do circuito literário e, por conseguinte, entender o papel que a literatura pode ocupar nos dias de hoje.

O REGISTRO POÉTICO

Para nós que estamos analisando um livro onde poemas foram escritos tendo desenhos como motivo, aquilo que estamos tentando chamar de registro poético configura-se como a dimensão autônoma do texto enquanto puro artefato verbal. Pensemos naqueles que ignorantes da especificidade da edição princeps, têm como primeiro contato a publicação dos poemas tal como constamna Poesia Completa e Prosa. Para este tipo de leitor, o exercício de apreciação dos versos será um tanto mais abstrato, pois isolados de seus motivos, os aspectos formais dos versos exigem do leitor uma imaginação pictórica de alta plasticidade.

Todavia não podemos, devido ao teor específico do nosso objeto, exigir uma necessidade que inexiste em poesia, que é a do poema vir acompanhado do seu motivo. Por isto nesta seção olharemos para um dos poemas do livro naquilo que ele possui de autossuficiente. O poema escolhido é o primeiro dos vinte que constam no livro. Neste momento tal decisão parecerá arbitrária, pois de fato, a justificação de sua escolha se dará somente ao longo do desenvolvimento das demais seções.

ESPAÇO FIBRADO

Sedimentações com retas paralelas

Sedimentações com vários pontos duplos

Clivagens, fraturas horizontais e verticais,

Pequenos espaços hachurados.

Fibras e fibragem dominando o espaço;

Fibras mais deslizantes e raras

Se movendo numa direção fluidal

Sugerem estruturas flutuantes.

 

— As clivagens se desligam, se desfazem

Flutuam em várias direções

Pairam serenas como o curso de um rio.

 

Flutuam … e dão ao conjunto um recuo

Tudo vai se agrupando, pouco a pouco

Fluindo; depois se atenuam para cores mais cinzentas;

Organizam um tecido mais raro e puro;

As fibras mais claras vão se adaptando

A uma teia de linhas mais suaves.

 

Há formas riscadas, há riscos quase nulos

Trazendo para o branco líquidos resolutos;

Há pontos se reproduzindo

Trazendo um campo novo;

Fazendo, no conjunto a marca simples

Da forma inicial inscrita e permanente

Nas dobras genuínas e lisas do papel.

A decisão entre começar uma análise pelos elementos mínimos, ou pelos elementos mais complexos, configura-se como uma das querelas mais duradouras da história do pensamento. Aqui optaremos por iniciar pela descrição lexical, pois a unidade mínima inicial de percepção deste poema nos parece ser a palavra. Em toda poesia o som de fato configura-se como um antecedente lógico, mas a compreensão da urdição sonora do poema está atrelada a uma acentuação, a um ritmo ou a uma rima que o saliente. Aqui este não parece ser o caso imediato, por isso, optamos pelas palavras.

Logo na primeira estrofe do poema há uma abundância de termos técnicos — o que retoma o caráter erudito do autor que já apontamos anteriormente, termos estes que possuem em comum a ideia de afastamento, divisão, mas também de proximidade; vejamos: Sedimentação é um processo de separação da matéria em sedimentos, onde a ação separadora é operada pela gravidade em meio aquoso ou aéreo. Clivagem é uma divisão igualitária, faz parte da mitose de um zigoto que produz células chamadas blastômeros que depois se reúnem num proto-embrião chamado mórula. Fratura é uma fragmentação desigual. Hachura é uma técnica de desenho que consiste na criação de tons e sombras a partir do uso de linhas paralelas próximas. Fibra é uma estrutura formada pela aglutinação de fios finos. Fibragem acreditamos ser o processo de constituição das fibras, portanto uma aglutinação de fios finos.

A justaposição desses elementos faz surgir das interrelações semânticas que eles estabelecem entre si um sentimento pulsante. Vejamos como isso acontece verso a verso. Nos dois primeiros versos os pontos e retas apresentados são contaminados pela ação gravitacional das sedimentações, fazendo surgir desta conjugação uma ideia de camadas onde os elementos mais densos, neste caso os pontos, afundam. No verso III, a coexistência das clivagens, que são divisões igualitárias, e das fraturas, que são fragmentações desiguais, confere aos elementos menos densos, as retas, uma distribuição complexa pelo espaço. Os versos IV, V, e V I descrevem os encontros e desencontros destas retas que passam a compor, a partir de sua distribuição complexa, tecidos fibrosos e texturas parecidas com hachuras. O verso VII descreve o movimento fluidal desta distribuição complexa, e o verso VIII é simbólico por representar um esforço racionalizante ainda mais abstrato do que a descrição metafórica até então operada. De acordo com a sugestão presente neste último verso da estrofe, o que surge assemelha-se a um número não determinado de estruturas, que pairam sobre a pulsação contínua do complexo movimentar dos elementos anteriormente descritos.

A segunda estrofe estabelece um diálogo com a primeira, mediado aqui pelo uso do travessão que como já dito, foi preterido na coletânea. Diálogo que não parece se opor, mas sim acrescentar novas imagens àquelas estipuladas pela primeira estrofe.

A terceira estrofe pode ser tomada como a continuação do movimento racionalizante presente no verso VIII, mas se isto não é imediatamente perceptível numa leitura branca, é pelo simples fato da pulsação presente no objeto descrito já ter operado reformulações no próprio objeto, que acabam impedindo uma simples retomada dos conceitos já usados. No verso XIV, é utilizada pela primeira vez no poema, a ideia de cor para descrever o que teria surgido a partir dos recuos e agrupamentos presentes nos versos XII e XIII. O contraste entre as cores cinzentas do verso XIV e as fibras claras do verso XVI, é também o contraste entre um tecido recuado, raro e escuro e um conjunto de linhas suaves, organizadas de maneira engenhosa, como uma teia.

A quarta e última estrofe traz consigo novos contrastes, desta vez eles se dão entre riscos constitutivos de formas, e riscos quase nulos que produzem na superfície branca em que se insere o poema, um branco resoluto. A ocorrência do termo resoluto num poema com uma dinâmica pulsante como este talvez seja um primeiro indicativo de repouso. Ao término desta estrofe nos deparamos com uma outra superfície branca, desta vez o papel. O papel é uma superfície bidimensional que contêm em potência inúmeras possibilidades de realização, mas com o avanço de toda criação artística, segundo Ostrower (1998), acumulam-se os fatos físicos, fazendo com que surja uma transição de formas possíveis para formas necessárias.

Espaço fibrado enquanto artefato puramente verbal denota um percurso que vai da descrição, passando pela tentativa de racionalização daquilo descrito, e por fim se chega na limitação dos elementos formais pulsantes por uma superfície física anterior. Se não soubéssemos que este poema foi escrito como comentário para um desenho, ainda assim seríamos capazes de perceber o jogo contínuo de tensões entre os diferentes campos que ele constrói verbalmente. Felizmente nosso caso não é esse, veremos agora de que maneira tal poema interage com o desenho que lhe serviu de inspiração.

O REGISTRO CRÍTICO

Como sugerido anteriormente, o registro crítico se trata da função que os poemas exercem quando são tomados como comentários críticos dos desenhos do livro. Segundo nossa hipótese, Cardozo se utilizou de versos para exercitar algo que já vinha fazendo como crítico de arte, pelo menos desde a publicação do já mencionado Livro do Nordeste. Mas antes de falarmos de que maneira o poema que escolhemos age criticamente sobre o desenho que lhe corresponde, é preciso que tracemos um esboço sintético do percurso do autor enquanto crítico de arte.

Na coletânea Poesia Completa e Prosa encontram-se reunidos trinta textos nos quais Cardozo executou críticas de arte e literatura. Destes trinta, dois serão descritos a seguir. São eles ambos textos da década de 1950, período em que Cardozo contribuiu ativamente com a revista literária Para Todos.

O primeiro desses textos se chama “Carolus na Petite Galerie”. Nele Cardozo nos coloca diante do conjunto de recursos e conceitos que animam a pintura dita abstrata no ano de 1956. Segundo o autor, esta tendência da pintura teria se afastado dos príncipios estabelecidos por vanguardistas da primeira metade do século XX, como Mondrian, Kandinsky e Paul Klee; para então aproximar-se de uma exploração realista de texturas que remeteriam ao campo da microbotânica e às estruturas elementares da matéria. “Carolus na Petite Galerie” é interessante pois tenta num esforço racionalizante descrever as novas modalidades expressivas que surgiam, mas para nós a sua verdadeira riqueza se encontra na aproximação que Cardozo faz entre o abstrato e a interioridade da matéria — ali representada através de texturas e estruturas elementares.

Exploremos um pouco mais o texto comentado acima. Tal como apontado por Ostrower (1998) existe uma semelhança generosa entre quadros que seguiram princípios de composição cubista, e imagens de elementos mínimos dos compostos orgânicos e inorgânicos. Ilustraremos isso aqui através de uma pintura de Georges Braque, uma fotografia microscópica de cristais de colesterol e um desenho do Interior da Matéria.

Figura 5 — Georges Braque, Basílica de Sacré Coeur (1910). (Fonte : Ostrower, 1998)

Figura 6 — Cholesterol Crystals Synovial Fluid Polarized Light (Fonte: Wikimedia [1])
Figura 7 — Desenho correspondente ao poema “As Sombras Manchadas”. (Fonte: Acervo Pessoal)

A colocação destas imagens nesta seção não tem como objetivo mitigar a fronteira entre ciência e arte. Nosso intuito é simplesmente o de apontar para algo que Ostrower (1998) chama de visões paralelas de espaço e tempo. Se a filosofia grega está expressa também na estrutura da coluna que sustenta o templo, uma vanguarda como o cubismo pode e deve ser interpretada a partir do seu contexto histórico, contexto este que atravessa todo e qualquer campo do saber, inclusive o estético e o científico.

Entretanto os desenhos de Burle Marx estão separados da pintura de Braque por um intervalo de mais de 50 anos, ainda que existam ecos composicionais entre eles, há uma diferença importante entre os dois artefatos. A pintura de Braque que data de 1910 foi concebida antes do advento do microscópio eletrônico, já o desenho de Burle Marx, de 1975, foi produzido num período em que o homem já conseguia observar aquilo que o cubismo supostamente sugeria de maneira inconsciente: A tensão dinâmica da matéria que resulta das superposições de seus elementos estruturantes.

O segundo texto de Cardozo a ser manipulado é intitulado “O Poema Visual ou de Livre Leitura”. Neste texto de 1957 o autor explora as possibilidades ainda incertas de construção de um poema que seja passível de ser apreendido tal como uma obra visual. Para tanto, se faz necessária uma distinção categórica entre o que seria uma obra visual e um poema. Cardozo se utiliza então de uma definição de Franz Roh que qualifica a pintura como uma arte visual de apreensão instantânea, ou ainda, simultânea; no outro lado da balança estariam a literatura e a música que são essencialmente artes temporais, apreendidas de maneira sucessiva. Cardozo, todavia, não se satisfez com estas definições, por isso ele protesta alegando que as artes visuais também podem ser apreendidas sucessivamente. A principal diferença entre estas e a literatura, estaria fundamentalmente nas múltiplas possibilidades que surgem a partir do momento em que precisamos percorrer uma pintura com os olhos. A literatura, por outro lado, conta com uma ordem pré-estabelecida que serve como guia prévio do nosso percorrer.

O que complementa nossa tese neste texto comentado acima, é a forma como Cardozo descreve a multiplicidade de percursos possíveis que coexistem numa obra de arte visual. Se somarmos esta preocupação Cardoziana com o percurso do olhar, e a imposição das formas que Burle Marx compõe, o resultado será o surgimento de uma terceira tensão, não mais do puro desenho, ou do puro poema, mas da relação que se estabelece entre os dois.

Podemos enfim nos aproximar com segurança dos artefatos visuais e verbais do livro, tal como eles foram concebidos, juntos. Repetiremos aqui o poema “Espaço Fibrado” para que dessa vez sua leitura seja acompanhada do desenho que ele precede na organização interna do livro, mas sucede no tempo lógico.

ESPAÇO FIBRADO

Sedimentações com retas paralelas

Sedimentações com vários pontos duplos

Clivagens, fraturas horizontais e verticais,

Pequenos espaços hachurados.

Fibras e fibragem dominando o espaço;

Fibras mais deslizantes e raras

Se movendo numa direção fluidal

Sugerem estruturas flutuantes.

  

— As clivagens se desligam, se desfazem

Flutuam em várias direções

Pairam serenas como o curso de um rio.

  

Flutuam … e dão ao conjunto um recuo

Tudo vai se agrupando, pouco a pouco

Fluindo; depois se atenuam para cores mais cinzentas;

Organizam um tecido mais raro e puro;

As fibras mais claras vão se adaptando

A uma teia de linhas mais suaves.

  

Há formas riscadas, há riscos quase nulos

Trazendo para o branco líquidos resolutos;

Há pontos se reproduzindo

Trazendo um campo novo;

Fazendo, no conjunto a marca simples

Da forma inicial inscrita e permanente

Nas dobras genuínas e lisas do papel.

Figura 8 — Desenho correspondente ao poema “Espaço Fibrado”. (Fonte: Acervo Pessoal)


Eis a justificativa da escolha por este em detrimento dos outros dezenove poemas: “Espaço Fibrado” é uma síntese de tudo que viemos expondo até aqui. Nele podemos encontrar versificados os dois aspectos autorais Cardozianos: A contemplação imanente do objeto e o subsequente esforço que adequa o uso dos conceitos aos objetos particulares que os suscitam, e não o contrário, onde os objetos servem de justificativa para a aplicação de ideias universalizantes prévias. Dito de outro modo, há neste poema um caráter extremamente lúdico, que concilia a racionalização com a pura experiência sensorial.

Vejamos agora como e de que maneiras o poema estabelece elos com o desenho que lhe serviu de motivo. Para tanto, voltaremos aos versos, pois este é um trabalho que apesar da necessária especulação pictórica, se pretende uma crítica literária. Desta vez não serão as palavras nosso elemento destacado, dirigiremos agora nosso foco para os aspectos sonoros mais elementares.

Dos vinte e quatro versos, apenas em dois deles não ocorre utilização de palavras com fonemas nasais. A hipótese aventada é a de uma transferência de sentido semântico entre os nomes e os verbos no gerúndio, como por exemplo em pontos, pequenos, movendo. Dito de outro modo, a ideia de ação em execução estaria presente não apenas nos verbos, mas também nos demais elementos nasais. Com isto, podemos cogitar que o poeta conseguiu transpor o percurso contemplativo que confere movimento no tempo ao desenho, para o poema que a ele se refere. Tal hipótese é corroborada pela leitura que fizemos do poema enquanto artefato verbal autossuficiente, pois ainda que não tivéssemos acesso ao desenho, o poema por si só é expressivo de um movimento pulsante e fluidal.

Atentemo-nos agora para as palavras em que ocorrem vogais abertas, é curioso notar que apenas uma delas é um verbo. Isto sugere uma rigidez existencial dos elementos onde existe esse predomínio fonético. Se pontos e horizontais suscitam o movimento fluidal, retas e paralelas proporcionam ao leitor a ideia de algo em via de resolução.

A crítica que Cardozo faz, poeticamente, ao desenho pode ser expressa da seguinte maneira: O desenho de Burle Marx é representativo desta tendência da arte que lhes foi contemporânea de apreender, através de novas modalidades e técnicas — como por exemplo o movimento tensional produzido por campos dinâmicos superpostos, os caóticos deslocamentos e encontros que ocorrem nas estruturas elementares da matéria. Olhando para o desenho de Burle Marx podemos perceber que os pontos, além de constituintes obrigatórios das retas, exercem também uma função contaminadora dos espaços vazios que são produzidos pelas retas, retas estas que já não se movem tanto, que se encontraram uma única vez ou que jamais se encontrarão. Assim o ponto que é sempre tomado como uma identidade inicial mínima que contém todas as determinações posteriores, acaba se tornando um elemento plástico capaz de produzir incontáveis outros campos. Se a obra possui um limite material, no caso do poema, o último verso, no caso do desenho, a superfície, o que o ponto de Burle Marx faz é implodir essa dinâmica tautológica do objeto fazendo com que todo novo percurso pelo significante produza um novo significado.

O REGISTRO METACRÍTICO

Para findarmos este trabalho falaremos enfim do registro que aqui escolhemos chamar de metacrítico. Em outros termos, especularemos sobre como o poema Cardoziano incide sobre o próprio fazer poético. De que forma ele se insere na tradição e de que forma ele a atualiza.

No passado as poéticas exerciam o cargo de cristalizar um conjunto de formas, métricas e normas do que poderia ser chamado de poesia. A poesia possuía assim uma identidade, um dever-ser que a tornava mais facilmente reconhecível. O passar dos anos parece ter impossibilitado o surgimento de novas poéticas, pois a quantidade de modelos existentes hoje é analogamente tão ampla quanto a quantidade de mercadorias que produzimos.

Entretanto em todo modelo histórico o sujeito criador se utiliza das normas, das relações limites estipuladas, para delas extrair atritos, relações contraditórias que suscitam fraturas nos elos entre significados e significantes, fazendo com que o processo de constituição da mensagem articule o próprio formato em uso.

Os poemas de O Interior da Matéria não são exceções a este caso, neles está presente uma exploração mais livre por parte de um autor que dominava as formas clássicas com todo o rigor que elas exigem. Se no livro ele optou por essa fluidez, foi devido à necessidade de adequação ao objeto que lhe serviu de motivo. De acordo com Siscar (2010) a poesia em si, e não apenas a moderna, exige continuamente a reinvenção de sua urgência, de seu sentido como necessidade do presente. Se Cardozo tivesse aplicado uma das formas clássicas para descrever desenhos que estavam explorando modelos recém-inaugurados de representação, o livro não teria metade da potência que possui, os poemas seriam talvez mero ornamento dos desenhos.

A relação estabelecida entre poesia e pintura é assim atualizada de uma maneira ainda pouco explorada pela historiografia da arte. Pois O Interior da Matéria é ao mesmo tempo, um livro de poemas, um livro de desenhos, um livro de poemas sobre desenhos e um livro de desenhos-poemas que amplia com sua existência as incontáveis possibilidades existentes de produção artística.

Yael Carvalho Torres

BIBLIOGRAFIA

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BARDI, P. M. The Tropical Gardens of Burle Marx. New York: Van Nostrand Reinhold, 1964. 155 p. il.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3ª ed. São Paulo: Humanitas, 1996.

CARDOZO, Joaquim. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

______. O Interior da Matéria. Rio de Janeiro: Fontana, 1975.

______. Poesias Completas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

______. Poesia Completa e Prosa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar e Massangana, 2007.

______. Poesia Completa e Prosa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar e Massangana, 2010.

CICERO, Antonio. Forma e Sentido: Poesia Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012.

CORREIA, Éverton Barbosa. Joaquim Cardozo, leitor de Manuel Bandeira. Guavira Letras, v. 1, n. 11, 2015.

LEENHARDT, Jacques. Nos jardins de Burle Marx. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LIMA, Manoel Ricardo de. A forma-formante – ensaios com Joaquim Cardozo. Florianópolis: Ed. UFSC, 2014  

MERQUIOR, José Guilherme. Razão do Poema. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

MOTTA, F. L. Roberto Burle Marx e a nova visão da paisagem. São Paulo: Nobel, 1985. 255 p. il.

OSTROWER, Fayga. A Sensibilidade do intelecto: visões paralelas de espaço e tempo na arte e na ciência: a beleza essencial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

SISCAR, Marcos. Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. São Paulo: Editora Unicamp, 2010.


[1]   Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cholesterol_Crystals_Synovial_Fluid_Polarized_Light.jpg

Ilusionismo anti-ilusionista

Com ele envolve tanto a coisa / que quase a enovela / e quase, a enovelando, / se perde, enovelado nela.

João Cabral de Melo Neto, “O Sim contra o Sim”.

A princípio, tudo se trata de representação. Em “The Girl Chewing Gum” (1976) de John Smith, a câmera acompanha as pessoas que passam nas duas calçadas de uma mesma rua, os movimentos do tráfego urbano, o voo dos pássaros, enquanto, em voz off, um realizador articula todas estas entradas e saídas de quadro, cuidadosamente planejadas, indicadas com antecedência, prevendo as suas coincidências, suas sobreposições, suas continuidades. Vê-se aqui, assim, não simplesmente o resultado de uma filmagem, mas o documento desta filmagem em si, apresentando-se, sucessivamente, uma variedade de ações desempenhadas por estes figurantes à medida que o curso natural desta vida prosaica representada discorre.

No entanto, conforme esta figuração cênica permanece, torna-se evidente que o direcionamento da movimentação na rua não se dá no contexto mimético de uma ação dramática desempenhada por um ator principal. Ao contrário, aqui a pura figuração vai ganhando cada vez mais destaque, tornando-se a própria finalidade do registro, enquanto as ordens do diretor permanecem. Aos poucos, este personagem fora de quadro se envolve em seu próprio jogo, perdendo a sua objetividade, em um deslocamento de sua função de diretor, para tornar-se um narrador, já não tratando mais de ordenar aqueles que estão à frente da câmera, na produção desta imagem, mas voltando-se efetivamente para o espectador, consciente da imagem em si,submetida à irreverência constante de sua abordagem.

A partir do domínio deste “diretor-narrador” sobre pessoas, carros, pássaros ou prédios frente à câmera, também se dispõe um recurso de particularização pelo qual este sujeito é capaz de atribuir sobre estes elementos uma projeção ficcional, particularização responsável por assinalar, dentre outros passantes, esta própria “garota mascando chiclete” como uma de suas “personagens” transitórias – recurso levado ao limite quando se aponta um homem que acabou de roubar um posto dos correios, descrevendo como, nos bolsos de seu casaco, suas mãos suam apreensivamente, pelo medo que sente de que “a mulher à janela” do outro lado da rua possa reconhecê-lo para a polícia. Este deslocamento se completa, então, quando ele diz que “pode-se ouvir, ainda, o som da sirene de alarme”, exatamente quando já este ruído contínuo e uniforme, presente desde o princípio do filme, mas despercebido até que este comentário o sugerisse, quando já não estivesse mais presente ali, em um silêncio absoluto.

Ao longo de dez minutos este plano se mantém, seguindo esta estrutura determinada pela compressão do espaço fílmico através do zoom, que torna tudo mais próximo e relacionado, sob uma restrição que possibilita maior agudeza aos seus efeitos de entrada e saída. Sua propriedade de contenção é a potência para que todas essas apresentações evoluam, pois a exclusão a priori de seus personagens no interior do quadro, introduzindo-se somente a partir da fala deste diretor, é o que dá credibilidade a todas as suas orientações.

Entretanto, as ordens deste diretor aos objetos na tela apontam que, sob esta lógica de representação, não são os zooms ou os movimentos panorâmicos os responsáveis por agir sobre estas aparências na configuração das imagens, mas os objetos em si, que se afastam ou se aproximam, sobem ou abaixam, se deslocam para a esquerda ou para a direita, como se toda e qualquer atividade fosse resultado de suas ações e a própria ideia da câmera (e sua movimentação) não existisse, o que mais imediatamente caracteriza o princípio de inversão reivindicado por este filme.

“Onisciente” pelas suas descrições e “onipotente” pelas suas ordens, este “diretor-narrador” é também “onipresente” quando aponta a sua localização em um “grande campo aberto com enormes torres de energia”, espaço completamente distinto do manifestado na imagem e que se revela somente no plano a seguir, em que um lento movimento circular o descreve. Aí, então, retorna a sirene, e se estabelece uma continuidade dos ruídos urbanos do plano anterior, enquanto esperamos também ali descobrir alguns de seus elementos, a serem revelados por este movimento – o que jamais acontece. Quando esta volta se completa e percebemos a natureza de seu deslocamento sonoro, o filme termina, sem dispor propriamente uma finalidade a este gesto, para além do caráter de sua expressão. No entanto, é esta mesma falta de coerência e finalidade que garantem uma abertura ao próprio sentido lúdico do filme em questão, em sua desestabilização.

A introdução deste segundo plano provoca não apenas o conflito entre a imagem do campo e o intenso ritmo urbano anterior, mas o próprio movimento panorâmico programado se opõe à espontaneidade de todo outro registro, cujos movimentos se davam simplesmente por adequação ao objeto disposto frente à câmera. Desta maneira, se a princípio toda esta inversão continha em si um tratamento irônico latente, uma gravidade absoluta se introduz a partir deste movimento, que responde criticamente a toda economia material do plano anterior, de duração correspondente a um rolo inteiro de filme. É pela polidez mesma que caracteriza este acréscimo que se efetiva uma mudança de tom absolutamente consciente e programada, em que a violência e o peso dramático de seu movimento surgem como para provar que, por trás da irreverência, há uma gravidade e um compromisso muito maior do que se possa fazer parecer.

A inversão definitiva de “The Girl Chewing Gum” é que, ao contrário de um cinema que se produz sob o cerceamento da realidade prosaica para representar esta mesma realidade através do artifício, o filme de John Smith parte diretamente das aparências desta realidade para conduzi-las ao artifício do que seria uma enorme produção (do outro modo dissimulada), com centenas de figurantes e automóveis, pombos perfeitamente treinados e sincronizados, prédios que se mexem… Assim é que este pequeno filme, de meios tão simples, se dispõe sob um “ilusionismo anti-ilusionista”, pelo caráter de seu pensamento formal, em um trabalho ágil, despojado, a partir das disponibilidades materiais de sua produção, de um cinema que não se faz por projetos, mas pelo interesse espontâneo e pontual do sujeito por certas manifestações, pelo desafio de sua expressão. Afinal, se o “diretor” do modelo de produção parodiado é, pelas suas potências “divinas”, uma espécie de “criador”, nada mais coerente do que pensar que, intuído neste procedimento de inversão, o principal objeto de “The Girl Chewing Gum” se revela o próprio gesto criativo e suas possibilidades de desestabilização.

Matheus Zenom

Do monstro à monstruosidade: “Targets” de Peter Bodganovich

Não é coincidência que Targets (1968) abra com uma cena de outro filme, The Terror (1963), também estrelado por seu protagonista Byron Orlak (Boris Karloff). Isso porque a ideia aqui é, a todo momento, flutuar entre a realidade e o cinema, partindo da figura metalinguística de Karloff para construir uma atmosfera tensa e violenta.

A história segue ele, um ator desacreditado de seu potencial e relevância, Sammy Michaels (Peter Bogdanovich) um diretor em uma desilusão criativa e Bobby (Tim O’Kelly), um rapaz comum do subúrbio americano que, após subitamente se sentir estagnado na vida, desenvolve uma vontade incessante de matar. A pequena crise pessoal é o que os três têm de comum, e a veterana estrela de cinema funciona como um ponto de partida para os desdobramentos da narrativa: é ele quem deixa Sammy inseguro, demorando a ler o roteiro que o novato preparou e quebrar o acordo para um próximo filme, e também parece ser o 1º estímulo que o vilão Bobby tem para iniciar seu doentio jogo de assassinatos.

Se o nome de Orlak lembra muito o de seu intérprete, é justamente por essa intenção da obra de confundir a vida de um com o outro. Toda a carreira de Karloff é incorporada a sua representação ficcional – a cena de Terror que abre o filme consiste de sua morte em tela (e do resgate de outra personagem do filme em questão por um então novato Jack Nicholson, ator expoente dos anos vindouros do cinema norte-americano), dizendo muito sobre o estado de espírito do personagem durante o filme todo: uma espécie de morte e desgaste para com a indústria cinematográfica e sua própria carreira, fazendo da ranzinzice a característica principal de seu personagem. A caracterização ficcional não é necessariamente precisa ao momento que vivia o ator fora de tela, mas com certeza carrega um quê de metalinguagem, principalmente considerando a iminente explosão da Nova Hollywood nos anos seguintes, o que aos poucos configurou um fim de linha para algumas das figuras consagradas do período clássico do cinema norte-americano.

Na cena que começa com um plano-ponto-de-vista deslocalizado de uma arma mirando em Orlak, sugerindo sua morte, para logo revelar que Bobby estava na verdade testando o rifle em uma loja, temos a menção visual a uma novidade no cinema: o vilão, agora o atirador, está incorporado na figura do homem estadunidense médio, cujo acesso a armas é tão fácil quanto fazer compras numa loja de conveniência. O plano com o iconográfico monstro da Era de Ouro de Hollywood na mira parece uma passagem de bastão agressiva para uma nova fase do cinema, na qual o perigo não é mais fisicamente explícito e anunciado, traço primordial da carreira de Karloff, mas sim internalizado e imprevisível.

Portanto, a incerteza é a natureza formal do que o diretor busca ao filmar Bobby. Sempre que o vemos em cena, suas ações são acompanhadas de um esvaziamento sonoro tenso, fotografadas em um tom soturno que pouco nos revela sobre suas possíveis intenções. Ao se convencer de que seus pensamentos assassinos (“ideias divertidas”, como ele mesmo diz) sejam válidos, resolve matar a mãe e esposa. Neste momento, impressiona não somente a construção rítmica, que intercala planos curtíssimos entre a arma, ele e sua cônjuge, criando a iminência de um banho de sangue (prenunciado no início da sequência, quando ele escreve uma carta de confissão em letras vermelhas, que enquadram DIE. – morrer, do inglês), mas a maneira com que ele lida com o ato. Sua assustadora indiferença é vista em um plano-sequência silencioso, no qual fica evidente uma meticulosidade digna de psicopata para tratar dos corpos que espalhara.

Ainda apoiado na questão auto-referente, o filme explora de maneira mais suave a interação entre Orlak e Sammy. Se a relação de Karloff com seu personagem é metalinguística, o mesmo ocorre com o inseguro cineasta. Bogdanovich também parece interpretar uma versão mais exagerada de si próprio: a do movie brat, diretor entusiasta do cinema clássico com o qual cresceu. Com direito a trecho do filme de Howard Hawks The Criminal Code, outra obra em que Karloff atuou, tem lugar uma dinâmica de mestre e aprendiz, ambos desiludidos com a indústria à sua maneira, que se sustenta em pequenas homenagens ao ator (como no genial momento em que ele finge tomar um susto com si mesmo no espelho) e rapidamente resolve os anseios dos dois.

Ao antecipar seu grande encerramento, o filme então eleva a violência a enésima potência. Assumida a personalidade assassina, Bobby vai a um terreno de construções, e, em uma situação que remete a um videogame contemporâneo, passa a atirar nos carros que passam pela estrada, sem medo das consequências, como se aquilo fosse uma atividade recorrente e a estrada não fosse nada mais do que um estande de tiro pessoal. Quando foge da polícia, é quase irônico que o local mais conveniente a se esconder seja em um estacionamento de cinema drive-in, o mesmo que o personagem de Karloff faria uma aparição horas mais tarde. Lá estão enfileirados carros iguais aos que ele há pouco havia usado de alvo. A configuração espacial agora é mais favorável para o assassino: veículos estacionados, com zero poder de fuga a nova onda de assassinatos que ele promove ao se esconder no local mais inesperado possível: a própria tela do filme.

As vítimas se multiplicam e o caos só é contido quando Orlak chega ao local. Seu confronto com Bobby, que parece referenciar a própria cena do filme de Howard Hawks mostrada anteriormente, é marcante por transportar para a diegese do filme o sentimento de confusão entre cinema e realidade que guia a obra: o assassino, agora encurralado, passa a ser confrontado por duas figuras do ator ao mesmo tempo, a da vida real e a da tela de cinema, sem conseguir distinguir o que é realidade e o que é ficção. Numa espécie de evidência da fragilidade psicológica e até física daqueles que estabelecem uma relação vital com armas de fogo, o personagem de Karloff impede o assassino apenas com tapas. É um encerramento que não apenas restabelece a moral do ator, mas também faz da narrativa cíclica: é Orlak a 1ª vítima em potencial de Bobby, e é justamente ele o incumbido de pará-lo. Do plano final, uma visão ampla do derradeiro drive-in, sobra apenas o carro do assassino e as vagas vazias que, fossem seus antigos ocupantes vítimas ou não, se organizam na composição de um verdadeiro cemitério no local.

Targets, para além de um thriller por si só interessantíssimo, trabalha a questão auto referencial do cinema de modo a estampar na película um manifesto de seu tempo. Realizado dentro da engenhosa safra de produção independente de Roger Corman, o longa toca em elementos relativos não só ao cinema, mas também à vida real: o perigo que as armas de fogo e seu fácil acesso passariam a representar para a sociedade norte-americana. Se algum outro filme chegou a abordar o assunto antes da estreia de Bogdanovich na direção, provavelmente o fez sem a violência frontal aqui presente e que marcaria os vindouros filmes da Nova Hollywood.

Davi Braga

Flesh and Crash

The marvelous is the eruption of contradiction in the real

Louis Aragon 

Quando observamos os quadros de Peter Paul Rubens, nos vemos diante de uma fusão de corpos, cavalos, tecidos, espadas, até mesmo hipopótamos. Esses estão entrelaçados de tal forma a aparentar um grande organismo de diferentes materiais. Um organismo em luta violenta consigo mesmo, talvez precisamente devido à fusão de elementos de materiais tão distintos, mas que ainda assim constitui uma unidade. Algo semelhante pode ser percebido na obra de Francis Bacon, em que a matéria do(s) corpo(s) também parece em luta consigo mesma, como que capturada no meio de uma transformação.

Peter Paul Rubens, Massacre dos inocentes (1611-12)
Francis Bacon, Three studies for a crucifixion, 1962

Em ambos os casos nos sentimos diante de um organismo vivo, que carrega ao mesmo tempo o frescor violento da vida e a inércia da matéria inanimada, a presença da morte – “É como se a própria pintura, o quadro concebido agora como uma única entidade que encara (facing entity) instantaneamente apreensível, olha para o espectador por um único par de olhos” (“It’s as if the painting itself, the tableau conceived now as a single instantaneously apprehensible facing entity, gazes at the beholder through a single pair of eyes” em“Manet’s Modernism” de Michael Fried). Em ambos a pintura é matéria, como a carne (ou flesh, um termo mais amplo), torcível e maleável como o corpo. A carne carrega, afinal, essa dualidade, entre o homem e o objeto, o animado e o inanimado, a vida e a morte – ressaltada ainda mais em sua representação através da pintura, que registra a vida em objeto, em pigmento, transformando-a (e, idealmente, até mesmo eternizando-a) em matéria morta.

É curioso, nesse sentido, que David Cronenberg utilize um meio de expressão tão intangível como o cinema para representar a carne, que parece ser o tema central de sua obra, mas acredito que seja precisamente nessa dualidade que reside seu interesse. Cronenberg busca a carne no sexo, na violência, na deformação, na transformação, sempre em relação com a tela, com a telepatia, teletransporte, com a máquina, com a tecnologia, com o cinema. Ele parece sempre buscar contaminar essa intangibilidade com a matéria, experimentando misturas como um alquimista ou um deus maligno, criando suas criaturas e máquinas de fusão.

Seu grande objetivo em Crash (1996) parece ser o da fusão entre homem e máquina, o que já havia prescrito em A Mosca (1986), na cena final onde a mosca-humana é fundida com a máquina teletransportadora. Evidentemente que esses mesmos temas já estavam circunscritos no livro Crash de J.G. Ballard, do qual adapta o filme, mas Cronenberg os trabalha na própria forma do filme. Enquanto o livro de Ballard parece funcionar mais como uma alegoria distópica, Cronenberg incorpora o fetichismo do livro através do cinema, uma arte fundamentalmente fetichista.

Fusão entre homem, mosca e máquina em A Mosca (1986)

Crash é filmado e atuado como pelos olhos de um carro, um carro antropomorfizado, mas ainda uma máquina. A fusão de corpos e máquinas é encenada, e a composição desse organismo é capturada pela máquina cinematográfica. Cronenberg combina seu olhar humano ao olhar mecânico da câmera, não apenas literalmente (como faz, afinal, qualquer filme), mas formalmente, na frieza sutil e adoradora com que filma esses organismos. Há um olhar humano e voyeur por trás da fluidez do olhar da câmera, mas o que vemos é uma sobreposição dessas duas camadas, uma fusão desses dois olhares. O calor humano e a frieza da máquina, o desejo e o distanciamento.

Cena de Crash (1996)

Na relação entre homem e máquina e, mais especificamente, diante de acidentes de carro, é inevitável lembrar de Andy Warhol e suas séries de car crashes. As composições de Warhol são limpas em comparação às de Rubens e Bacon. A repetição de imagens é intermitente, cada imagem mantém sua integridade, não se misturam, não se contaminam. O fetiche, o corpo e a violência estão ali, em cada imagem de acidente, já fundidos, mas afinal não foi Warhol que as produziu. É no que Warhol (re)produz, entretanto, que observa-se a tal fusão entre homem e máquina, em seu modus operandi. Assim como Cronenberg filma o desejo pelo olhar frio dos automóveis, Warhol reproduz essa obsessão por imagens violentas através do gesto maquínico da repetição de silkscreens – é possível em ambos, também, associar o fetiche sexual ou o fetiche pela imagem com o fetiche pela mercadoria, sendo o carro seu símbolo, principalmente no cinema (de “Christine, o carro assassino” de John Carpenter à “Weekend” de Godard). 

 Andy Warhol, Orange Car Crash Fourteen Times, 1963

Suas obras sempre carregam essa dualidade entre homem e máquina, sensação e mecanização, sentimentalismo e automatismo. Há uma adoração e afetação inegáveis em suas imagens (por exemplo em sua escolha destas, que está longe de ser arbitrária), mas sua maneira de processá-las é pragmática. Entre o humano e o desumano, Warhol adora – mesmo no sentido religioso, visto que o artista cresceu diante de ícones do cristianismo ortodoxo – tanto pessoas (Marilyn, Liz Taylor, Jackie Kennedy) quanto objetos (Campbell, Brillo), e todos passam pelo mesmo tipo de processamento ao mesmo tempo maquínico e obsessivo – “podemos ler as imagens de Death in America como referenciais e simulacrais, conectadas e desconectadas, afetivas e não afetivas, críticas e complacentes?” (“Can we read the Death in America images as referential and simulacral, connected and disconnected, affective and affectless, critical and complacent?”), como coloca Hal Foster em seu texto “Death in America“. Todos se tornam imagem, todos são engolidos pela fotografia e digeridos por sua máquina de silkscreen, todos tornam-se imateriais, todos tornam-se inanimados. 

A própria persona de Andy Warhol já é fruto dessa fusão, como um autômato. Hal Foster afirma que sua leitura de Warhol é surrealista ao associá-lo ao que chama de realismo traumático. E de fato, Warhol é o sonho surrealista em pessoa, ou em objeto. A fusão onírica e maquínica trabalhada pelo surrealismo no início do século XX é tão integrada à figura de Warhol que chega mesmo a torná-lo assustador – ou inquietante, unheimlich de Freud. Nesse sentido, talvez seja mais preciso dizer que Warhol é o pesadelo surrealista. Afinal, como Foster coloca em “Compulsive Beauty”, o automatismo idealizado por Breton, caracterizado mesmo como uma prática transcendental, saiu pela culatra revelando seu aspecto repetitivo e mecânico, que apontava mais para a morte do que para a liberdade – por isso Foster prefere um tipo de surrealismo que estaria mais para o “sub-realismo” de Bataille do que um sur-realismo de Breton, como comenta em “O retorno do real”. Warhol é, assim, verdadeiramente surrealista, uma contradição ambulante.

Em uma era dominada pelo abstracionismo, Warhol reduz o trabalho formal ao gesto mínimo e deixa o conteúdo escancarar seu poder. Curiosamente essa redução não é tão diferente daquela do Expressionismo abstrato, afinal o dropping de Pollock também pode ser compreendido como pura repetição, assim como as tendências monocromáticas de Rothko, Barnett Newman ou Ad Reinhardt – como se, da mesma maneira que o surrealismo de Breton buscava a sublimação mas acabava numa repetição mórbida, o Expressionismo abstrato ao buscar o gesto artístico também apenas evidenciasse seu aspecto automático. Mas em Warhol a imagem retorna, como assombração, seja nos fantasmas de Marilyn, nos acidentes, na viúva Kennedy ou na soberania inanimada do design das sopas Campbell, e retorna através desse gesto mínimo, automático e mórbido.

Andy Warhol, Marilyn Diptych, 1962

A imagem retorna com glamour e decadência, frescor e putrefação, evidenciando a relação intrínseca entre atração da mercadoria e a inércia do objeto, a idolatria voyeurística diante das celebridades e a violência sensacionalista cotidiana, que revela a fragilidade de seus corpos frente à grandeza de suas imagens. Ou ainda, de forma mais ampla, entre a imagem e a morte. Essa relação particular entre a idolatria pelas celebridades e sua morte também existe em Crash, nas encenações de acidentes de estrelas de cinema como James Dean e Jane Mansfield. Como colecionadores, o grupo de personagens fetichistas reencena acidentes históricos com esses deuses de carne e osso que são as celebridades. Em momentos como esse é difícil acreditar que Crash não tenha sido escrito para o cinema, pois se encaixa perfeitamente com seus mecanismos, do voyeurismo à encenação, ou talvez apenas evidencie as aproximações entre o cinema e o sexo. O mesmo pode ser dito sobre a aproximação entre o acidente de carro e o sexo. A repetição, a intensidade crescente e a liberação ou choque finais (o orgasmo ou a batida), são comuns às duas práticas, e o filme trabalha com variações entre os temas dessa pequena linha narrativa, diferentes carros, diferentes casais, como se estivesse experimentando essas diferentes misturas.

Cena de Crash (1996)

Se Warhol é uma contradição ambulante, com seus pólos opostos em constante luta mas, como suas imagens, intermitentes, isolados, a fusão nos filmes de Cronenberg é mais suja, mais orgânica, composta dessas variações de misturas. Em Crash, os carros tornam-se mais humanos, com a fragilidade de suas partes, e os humanos mais maquínicos, com membros amputados e substituídos por versões robotizadas. Algo semelhante ocorre em A Mosca, onde a transformação do protagonista, um cientista, em mosca, é gradual, como se cada fase fosse em si um experimento ao mesmo tempo visual-carnal, e psicológico-filosófico. O cientista que começa o filme se apaixonando por uma mulher, não apenas se transforma fisicamente em uma mosca mas começa a pensar como uma, sua moral torna-se a moral desumana de uma mosca, a do instinto de sobrevivência, e com isso torna-se assustador tanto por fora quanto por dentro. A catarse de ambos os incidentes é tanto física, uma questão de matéria e materiais, de carne e lataria, quanto moral e simbólica. 

Ilustrações da transformação em A Mosca, por Chris Walas

Essa ideia de fusão é elaborada por Noel Carrol em sua “Philosophy of Horror“, onde entende que para que um monstro cause repulsa uma das possibilidades é de que se constitua de uma fusão, “na construção de criaturas que transgridem distinções categóricas como dentro/fora, vivo/morto, inseto/humano, carne/máquina, e assim por diante.”. Deste modo tanto a mosca, quanto as combinações humano-carro de Crash são constituídos de fusões, o que implica tanto em deformações/alterações físicas quanto morais: o lado humano e afetuoso do cientista x instintivo da mosca, o lado humano e sensual dos personagens de Crash x mortal e maquínico dos carros. Mesmo a persona de Warhol pode ser incluída nesse esquema, ainda que de modo algum fosse monstruosa, era uma construção do artista propositalmente enigmática – suas contradições se apresentavam mesmo em sua forma física, através de suas excentricidades, desde sua preocupação obsessiva com estar em boa forma até sua peruca icônica, colocando o lado humano e empático de Warhol e suas obras em constante contradição o lado cínico e complacente.

Essas contradições entre a máquina e carne, incorporadas formalmente nos trabalhos de Cronenberg e Warhol, podem também ser percebidas como dispositivos narrativos de distanciamento e aproximação. A mostração é interrompida ou freada por esses mecanismos de distanciamento em Crash e Car crashes. O conceito de mostração no cinema, de André Gaudreault, é mesmo colocado em termos de uma “fusão de dois modos fundamentais de comunicação narrativa: a mostração e a narração.”. Essa oscilação entre distanciamento e aproximação, narração e mostração, também pode ser pensada em termos de “alto”(“high”) e baixo (“low”), como aqueles que Rosalind Krauss coloca a respeito da arte de Warhol: “alto óptico versus baixo carnal” (“optical “high” versus carnal “low””). Assim como a obra de Warhol oscila entre esses dois mundos, óptico e carnal, alta e baixa cultura, também podemos contrapor os bonecos bonitos e metálicos de Crash contra a mosca bizarra e degradada de A Mosca.

Cena de Crash (1996)

Tanto em Warhol quanto em Cronenberg é o conteúdo que retorna para nos assombrar ainda que fundido a uma forma que é incorporada no tema; seus silkscreens e filmes são tanto sobre corpos e máquinas quanto corporais e maquínicos. Ambos, assim como os surrealistas, trabalham com as potências artísticas e críticas, mesmo dialéticas, dessas fusões contraditórias, seja na aproximação entre objeto inanimado e a carne orgânica ou entre a forma artística e a máquina, entre tantas outras.

Cena de Crash (1996)
Andy Warhol, Silver Car Crash, 1963

Paula Mermelstein

Bibliografia:

FOSTER, Hal. Compulsive Beauty. Cambridge: The MIT Press, 1997.

FOSTER, Hal. O Retorno do Real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

FOSTER, Hal. Death in America. In: Andy Warhol (October Files). MICHELSON, Annette (Org.). Cambridge: The MIT Press, 2001.

FRIED, Michael. Manet’s Modernism. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

KRAUSS, Rosalind. Carnal Knowledge. In: Andy Warhol (October Files). MICHELSON, Annette (Org.). Cambridge: The MIT Press, 2001.