O western pode ser considerado um dos maiores fenômenos no que diz respeito aos gêneros cinematográficos. Este tipo de filme dominou as produções de Hollywood por aproximadamente quarenta anos (dos anos 20 aos anos 60). O western, por conseguinte, era o gênero cinematográfico mais consumido ao redor de todo o mundo: como algo tão específico e tão particular da historiografia e da cultura norte-americana teve a capacidade de disseminar-se em tão larga escala? Como os espectadores identificavam-se com as histórias de heróis, bandidos e mocinhas naquele ambiente tão árido e inóspito?
Acredito que um dos maiores motivos para essa adesão completa do gênero se deu por conta, principalmente, das questões mitológicas que circundam estas personagens – e, consequentemente, de seus arquétipos e de suas caracterizações, de certa maneira, universais. Peguemos o exemplo do maior ator da história do gênero: John Wayne. A figura de Wayne é quase indissociável de suas personagens, houve uma osmose quase que completa entre a estrela e sua contraparte, isto é, o seu papel. John Wayne é um herói; e John Wayne é John Wayne em qualquer filme em que esteja estrelando, não importa se é Genghis Khan ou Nathan Brittles. Tenho a ideia que o star-system teve um papel importantíssimo para o desenvolvimento do western (sem contar o aspecto mais óbvio, que foi a adesão de grandes realizadores ao gênero, como John Ford e Howard Hawks).
O que acontece, então, quando o western e todos os padrões que dominaram Hollywood durante quarenta anos estão em claro processo de mudança? O que acontece quando um filme faz um retrato da queda de um gênero, e não só: da queda de toda uma filosofia de se fazer cinema, justamente representada pela mudança do paradigma do sistema de estúdios hollywoodiano?
Falarei aqui de um filme realizado por John Huston em 1961, chamado The Misfits. Escrito por Arthur Miller, o filme conta a história da relação de um grupo cowboys em Reno, Nevada, com uma mulher da cidade. Trata-se de uma revisitação do gênero western, tanto pelo local cuja história se desenrola (os westerns, como é óbvio, geralmente ocorrem no oeste dos Estados Unidos), quanto pela cronologia da história (a narrativa do filme é contemporânea a sua realização, ao contrário da maioria dos outros filmes do gênero, que se passam no século 19). Assim, o seu pano de fundo narrativo é justamente a inadaptação das personagens ao tempo em que elas estão destinadas a viver. O saudosismo é algo que percorre todo o filme. Todas as suas personagens têm um ideal de construção de caráter que é inalcançável, justamente por este ideal não pertencer ao tempo em que vivem.
Estas características são ainda mais evidentes tendo em vista os atores escolhidos para interpretar os protagonistas, havendo uma adequação completa do casting com a realidade das personagens. Assim como quando vejo qualquer filme com o John Wayne e vejo na tela materializado o próprio John Wayne, à frente do personagem que interpreta (numa dinâmica que ultrapassa a ficção), também não consigo separar, em The Misfits, Marilyn Monroe e Clark Gable de suas respectivas personagens, em um filme que, curiosamente, marca também o papel derradeiro de ambos, falecidos pouco tempo após o fim das filmagens. Ao contrário dos filmes da Hollywood clássica, que apostam em uma montagem orgânica para sensibilizar o espectador em relação à história, The Misfits faz o caminho oposto, parecendo querer a todo o momento expor a condição de existir enquanto cinema e, junto a isso, expor a condição íntima de seus intérpretes.
O filme conta a história de Roslyn Tabor (Monroe), uma mulher com seus 30 anos, recém-divorciada, que, na cidade de Reno, ao ir beber um copo com sua amiga Isabelle (Thelma Ritter), conhece dois homens: Gay Langland (Gable), um velho cowboy, e Guido (Elli Wallach), um ex-piloto de guerra e atual caminhoneiro. Numa proposta absurda, chamam-na para conhecer o interior de Nevada e todos vão passar um tempo na casa abandonada de Guido, que o homem deixou justamente após a morte de sua esposa. Arrebatado pelo seu falecimento, Guido deixa a casa antes de sua construção ser efetivamente terminada. Então, vemos grande parte do filme desenrolar-se nesta casa incompleta, sempre em construção.
Na casa, todos bebem e dançam em uma cena longuíssima em que a tensão sexual entre Roslyn e os dois homens se desenvolve. Ela, porém, acaba por ficar com Gay, a personagem de Gable, e, por mais absurdo que seja, ambos passam a viver na tal casa em construção de Guido. Há uma elipse temporal e, quando voltamos ao universo do casal, vemos uma rotina completamente estabelecida. Ambos estão felizes. Porém, quando Guido e Isabelle voltam para visitá-los, a vontade de Gay de caçar cavalos selvagens aumenta; afinal, esta é uma das coisas que mais gosta de fazer na vida e a personagem de Gable já havia comentado algumas vezes sobre este desejo anteriormente: além da glória de capturar os tais misfits (atividade que talvez lhe fizesse lembrar de seus dias de glória), a venda dos cavalos selvagens também seria uma maneira de subsistência. Para isso, Guido e Gay devem achar um terceiro elemento para caçar com os dois e, assim, vão a um rodeio encontrando no caminho Perce Howland (interpretado por Montgomery Clift), que eventualmente os acompanha na caça.
É importante deixar claro que, com a inclusão deste terceiro elemento masculino no filme, é estabelecido mais um vértice de desejo pela personagem de Monroe. Roslyn, uma pessoa extremamente sensível, não suporta ver violência contra animais (a primeira discussão de Gay e Roslyn se dá porque o cowboy quer matar um coelho que devora a pequena horta na casa) e, ao longo do rodeio, fica extremamente triste com todas as circunstâncias. No dia seguinte, quando os três homens vão caçar os cavalos selvagens (os misfits, como Gable afirma num determinado momento), Roslyn os acompanha e é neste momento em que o choque cultural da mulher da cidade com os cowboys decadentes se dá por completo.
Ao longo do filme, há um plano que evidencia estes aspectos e é completamente desestabilizante, por sua extrema simplicidade. Após Roslyn e Gay estarem vivendo juntos durante algum tempo, Guido e Isabelle vão visitá-los e então Roslyn começa a mostrar os arredores a Guido, mostrando-lhe as mudanças que havia efetuado na casa. É neste momento em que entramos no quarto de Roslyn e Gay e avistamos uma porta de um armário aberta, com fotos de Marilyn Monroe no auge da fama (fotos que, na diegese do filme, se devem ao fato de Roslyn ter sido uma stripper). Há, neste momento, uma tensão entre Guido, curioso para ver as fotografias, e Roslyn (ou Marilyn?), que permanece envergonhada por estar “sendo observada”. Guido tenta diversas vezes abrir o armário para ver as fotografias, sempre com Roslyn impedindo-o. A mulher permanece toda a cena com um sorriso amarelo, como se estivesse querendo esconder o seu incômodo com as investidas de Guido. Depois de algum tempo, Roslyn finalmente faz com que Guido desista. O homem sai do quarto. Então, o momento mais aterrador deste plano acontece: por uma questão de fotogramas, vemos a mudança de expressão de felicidade do rosto de Roslyn para um desespero quase que completo.
A personagem de Roslyn parece ter vergonha do seu passado, justamente por tentar fechar a porta do armário inúmeras vezes em contraponto às investidas de Guido. Ou será que a personagem sente vergonha da realidade, ou seja, que Roslyn sente vergonha de Marilyn? Ou ainda: Roslyn sentiria saudades de seu tempo como stripper ou é Marilyn que sente saudades de seu tempo como musa absoluta? O filme cria, aqui, uma vinculação direta com a realidade, em uma variação fraturada do que o star-system fazia ao vincular os papéis às suas estrelas.
Em The Misfits há, como já dito, uma inadaptação completa das personagens com o ambiente que as rodeiam: inadaptação de Roslyn, uma mulher da cidade que relaciona-se pela primeira vez com o que pode ser chamado como a vida “simples” do campo (ou, também, pelo fato de ser a única mulher em um ambiente estritamente masculino); inadaptação de Gay, um cowboy que ainda acredita que há algo de belo em seu ofício, por mais que o fim de sua caça não seja nada nobre (o destino dos misfits que serão caçados pelos cowboys é virar ração para cães), por mais que haja pouco o que se caçar.
O personagem de Gable parece estar o tempo todo tentando enquadrar-se em um papel que não é mais seu: o paralelo com o ator é aqui, também, impossível de não ser feito, já que o tempo assola o rosto de Clark Gable em todos os momentos. Os primeiros planos do rosto do ator são assustadores, justamente pelo fato de conseguirmos ver todas as marcas da vida em sua pele. Há este desejo latente de Gay (ou de Gable?) de retornar ao passado ao longo de todo o filme, desejo que culmina na sequência dos cavalos, em que Gay, irritado com o fato de Perce soltar os cavalos por conta das reações de Roslyn, decide derrubar o maior dos cavalos do bando sozinho, usando suas próprias mãos. É no plano final desta árdua batalha que o espelhamento de Gable (ou Gay?) com o pobre cavalo derrubado é evidente: o “herói”, sem forças, deita-se por cima do animal caído: são dois desajustados, um por cima do outro. Mesmo que a luta tendo sido extremamente complicada, quando Gay finalmente consegue derrubar o cavalo, é como se o animal tivesse desistido de lutar – e, consequentemente, como Gay tivesse, também, desistido de tentar fazer parte de um tempo que não o dele. Da mesma forma, Gable é, ele próprio, uma estrela de cinema em decadência, uma estrela “caída”. Vemos em seu rosto que já não é mais um galã. É em The Misfits que encerra sua vida e sua carreira.
Além das quedas das estrelas de cinema e da falência do star-system, The Misfits fala também sobre as estrelas em seu sentido literal. Há pelo menos três momentos marcantes em que as estrelas tomam conta da tela. Em primeiro lugar, é Perce Howland que diz, atordoado após o rodeio, bêbado em um bar: “Oh, I feel funny… I feel like… What was in that injection they gave to me? I… I see the prettiest stars. I’ve never seen stars before. Have you ever seen stars before, Gay?”. Perce diz isto enquanto olha para Marilyn Monroe e, logo depois, dirige sua fala a Gay. É como se Perce estivesse falando deles mesmos, de Monroe e Gable, e dele próprio, Montgomery Clift. As estrelas tomam conta da visão de Perce naquele momento, no bar. Nossa visão, entretanto, está contaminada o filme todo com a presença destas tais estrelas caídas.
O segundo momento é já na parte final do filme, em que, antes de caçar os cavalos, os três homens e Roslyn sentam ao redor de uma fogueira, e Guido começa a falar das estrelas: “And the Milky Way goes over there… That star… That star is so far away… that by the time the light far reaches us here on Earth… Might not even be up there anymore…”. Este segundo momento liga-se imediatamente com o terceiro momento sobre estrelas, justamente quando o filme se encerra: reconciliados, Gay e Roslyn sentam-se um ao lado do outro na camionete. Gable, então, dirige-se a Marilyn e diz: “God bless you, girl”, e continua dirigindo o carro, até que coloca seu braço envolta do corpo de Roslyn. Ela, extasiada, vê os cavalos libertados. Dirige-se a Gay e fala que, ao contrário do que havia dito antes, aceita ter filhos dele. Depois de um breve momento de silêncio, segurando a mão de Gable, Marilyn diz: “How do you find your way back in the dark?”. Então, Gay responde: “Just hit for that big star, straight on”.
Este é o último plano de duas das maiores estrelas da história do cinema: ambas abraçadas, seguindo o caminho de volta para casa, seguindo uma grande estrela que “might not even be up there anymore…”.
Paulo Martins Filho

