A primeira imagem de New Rose Hotel consiste em uma gravação aparentemente feita em vídeo, granulada e trêmula, que se alterna entre um casal que caminha pela rua e X (Willem Dafoe), que os observa, variando entre a atenção e a indiferença. Logo um feixe de luz se manifesta no plano, a imagem fica verde, rapidamente vemos alguém numa janela disparar um tiro e um homem que seguia o casal cair, sem que ambos percebam. Fim de cena, entram os créditos e tão logo o filme começa de fato. Completamente descontextualizada, essa primeira imagem, semelhante a uma de câmera de segurança, clama por uma revisão, algum esclarecimento que lhe situe num nível narrativo mínimo que seja. Tal revisão virá bem depois no filme, já com o espectador mais a par dos complicados meandros desta narrativa – tratava-se de uma conspiração interna da empresa Maas, na qual trabalha um cientista, Hiroshi (Yoshitaka Atano), sujeito essencial ao pontapé do desenvolvimento narrativo. Se a descrição e elucidação desse momento aqui são enigmáticas, é justamente porque assim muitas outras se colocarão pelo filme todo, já que a busca de Abel Ferrara não é a de esclarecer cada ponto dessa história; ela se apresenta, em partes se desenvolve, mas jamais se encerra por completo. A respeito do tal Hiroshi, Fox (Christopher Walken) chega a dizer: “He takes a whole field of science and he shatters every accepted concept and brings on a violent revision of an entire body of knowledge”. [1] Essa frase poderia muito bem ser tomada para falar de Ferrara e o nível ao qual eleva as operações e caminhos aqui, se simplesmente estivéssemos falando de cinema ao invés de ciência, já que, a partir de certo momento, esse mesmo método de revisão se radicaliza e passa a reorganizar o filme.

Poderíamos, então, dividir este filme em dois polos narrativos: um primeiro, conduzido com certa linearidade, desenvolvendo a trama que consiste na tentativa de X e Fox em concretizar a deserção de Hiroshi do laboratório no qual trabalha através da sedução por uma mulher (Sandii, uma prostituta interpretada por Asia Argento), instruída por X. A personagem de Walken, grande organizador do plano que ambos almejam concretizar, tem um único medo: de que X, em meio ao “treinamento”, se apaixone de verdade pela mulher. O colega diz que não, garante ser extremamente adequado ao trabalho e que não havia risco algum de envolvimento. O que se sucede, no entanto, é justamente o contrário. Sempre em contato intenso com Sandii – o que não deixa de ser parte do seu trabalho, ainda que feito de modo bastante exagerado – ele parece cada vez mais profundamente atrelado à mulher, verdadeiramente emocionado ao ponto de que, no curso da missão dela – seduzir e convencer o cientista japonês – é capaz de reclamar do envolvimento da mesma com o homem, como se ambos tivessem de fato qualquer laço amoroso concreto; de toda forma, até certo ponto Sandii nos parece tão interessada no relacionamento quanto ele. Se para nós aquilo tudo é a princípio apresentado como amor, um romance encontrado em meio ao caos, aos espaços tão profanos que eles mesmos penetram com facilidade (bordéis, como aquele onde se conhecem), para Fox não se trata de nada disso. “You’re not in love, you’re in lust” [2], diz ele ao colega, quando este lhe revela a intenção de fugir com a garota após a deserção do alvo, fato possivelmente danoso à sequência da operação. Quando esse plano, outrora triunfante, se mostra como um fracasso (abordaremos como mais à frente), Abel Ferrara encaminha o filme a um segundo polo, que obedece à ordem da abstração, de uma melancolia limitada ao universo da mente de Dafoe, mas cujas repercussões reverberam pelo corpo do filme, redefinindo-o por inteiro.

Mas qual o caminho até a abstração? Como chegamos àquelas imagens angustiantes, espacialmente claustrofóbicas, mas completamente expansivas num âmbito mental do protagonista – e do próprio filme, pelas portas que se abrem – desolado numa cabine minúscula, que é o próprio “New Rose Hotel”? O caminho é essencialmente paradoxal, pela potência que o filme divide entre uma construção tanto excessiva, quanto elíptica. Por um lado, há um sem fim de imagens de uma natureza volátil (vídeo, principalmente, contrastando com o resto do filme) infestando o plano – e outras que, por muitas vezes, são excessivas mesmo pelo que mostram: momentos totalmente carregados de sexo envolvendo Argento e Dafoe. Indo e vindo sem vacilação, se fundindo como se fizessem parte de um fluxo único, trazem enorme fluidez ao filme. Não obstante essa fartura pictórica, o filme também incorpora o uso de elipses de modo muito importante ao seu desenvolvimento; não sabemos ao certo quanto tempo se passou entre os encontros de Sandii com X e tampouco temos uma cena sequer ou evidência concreta do que ocorre entre ela e Hiroshi; tudo nos vem, unicamente, através de informações que chegam aos ouvidos da personagem de Dafoe. Esse primeiro movimento narrativo, o polo ao qual antes me referi, parece então limitado ao olhar subjetivo de X, mas um olhar muitíssimo viciado, de modo que absorve para a exposição do filme em si o modo como ele próprio encara, percebe e sente as coisas, algo que tão logo se mostrará traiçoeiro quanto à “veracidade” dos acontecimentos.
Como se houvesse mesmo uma certa “hierarquia” das imagens no que tange à importância de cada núcleo ao filme, o de X e Sandii sempre nos aparece de maneira principal (de modo bem grosseiro, poderíamos dizer que são apresentadas e filmadas mais “tradicionalmente” em relação às outras imagens), enquanto a trama do cientista e das empresas corre em paralelo, de modo secundário. Não à toa, só nos vem em pedaços, pequenas informações que chegam por gravações de vídeos, fragmentos enigmáticos que, pouco a pouco, atingem um extremo, praticamente todo feito em elipse: se a sedução de Hiroshi por Sandii foi um sucesso, nem Fox, tampouco X, esperariam que ela seria capaz de traí-los, entregando-os à empresa Maas. Um vírus letal, foco da negociação que envolvia o cientista, é solto no mundo e começa a matar milhares. O “como” da traição, assim como o “porque” jamais ficam perfeitamente esclarecidos – algumas pistas são oferecidas, como a existência de um disquete achado na carteira de Sandii, possível receptáculo do vírus, mas sempre colocadas de modo insondável – tal como as circunstâncias pelas quais o vírus escapou; a única informação a ser retida desse evento é o fato de que Sandii os traiu.
Sendo assim, Fox e X resolvem fugir; porém, logo ficam encurralados e Fox se suicida para não ser pego pelos inimigos. A morte dele, que sempre representou o lado, digamos, mais lúcido da dupla, representa a morte da linearidade do filme como um todo. A partir daí, X foge para a cabine de um hotel cápsula e passa a rememorar os acontecimentos do filme, tal como lamentar a ausência e traição de Sandii. E é aí que New Rose Hotel revela seu aspecto revisionista: voltamos a diversos momentos que já tínhamos presenciado anteriormente, como o primeiro diálogo entre Sandii, Fox e X, no qual fecham o acordo, e, principalmente, as cenas de sexo e “amor” entre as personagens de Dafoe e Argento. Dessa vez, porém, tudo parece diferente. Não se trata mais da mesma entrega carnal que antes se demonstrara recíproca, tampouco de amor; Sandii agora nos aparece como completamente desinteressada, estando ali apenas a cumprir um papel (outro que não aquele acordado com os dois protagonistas), muito mais esperta do que a cena inicial no hotel dá a entender sobre uma prostituta a partir das falas de Fox. Não só ela age de outro modo como as situações todas parecem ter acontecido diferentemente do que imaginávamos, agora sendo aos poucos recuperadas por X, largado à própria insignificância e punido por seus excessos anteriores.

Dentro desse contexto de revisitar imagens e momentos anteriores do filme, cabe um esclarecimento: se a princípio soa como a operação depalmiana por excelência, na qual nos debruçamos sobre a mesma imagem já vista e a investigamos à exaustão, buscando ali os traços chaves para elucidar algum raciocínio mais concreto, algo escamoteado nela – é o caso do filme no filme em Blow Out (1981), das semelhanças entre as mulheres em Body Double (1984)ou o princípio geral que rege um filme como Snake Eyes (1998) – aqui Ferrara busca uma diferenciação. Sua questão não é a da investigação da imagem em si, mas sim do ato nela contida. Nenhuma dessas cenas revisitadas serão exatamente iguais a como as vimos antes. A forma como é apresentada, ou seja, o enquadramento, a luz etc. até podem se repetir, mas a ação em si resguarda mares de diferença no que tange às motivações, posturas e atitudes das personagens. Mais além, o ir e vir nessas cenas, agora tomadas por algo próximo de um ponto de vista mais “objetivo” dos acontecimentos (se levarmos em conta que ele antes era completamente dominado pelo olhar de X, e agora parece mais “legítimo”, ao passo que embasa mais precisamente os desdobramentos concretos que tomam lugar na narrativa), jamais atestarão um fato, mas continuarão a provocar confusão, em mais um afastamento do procedimento de De Palma.
O princípio da revisão aqui se estabelece mediante a demanda que o filme todo precisa ser reorganizado e repensado para que possa fazer algum sentido. Se dentro da mesma ideia de “hierarquia” antes mencionada poderíamos imaginar essas imagens em película (das cenas entre X e Sandii) como mais confiáveis, mais seguras de representarem alguma verdade, tal tese logo cai por terra. O filme todo se coloca como a busca constante de meios que possam imbuir um mistério na imagem e, então, na ação. Perguntamo-nos: teria Sandii traído a dupla em Viena, sendo captada pela Maas (como Walken dá a entender), ou ela seria sempre parte de um plano maior? Em uma cena no hotel em Viena, a moça pega um gravador e faz um registro de modo mais reservado e misterioso – indicando, talvez, alguma operação dupla que já tomava lugar ali. Na revisão de sua postura e olhares no hotel após a primeira noite com X, o foco agora lançado sobre ela levanta a possibilidade de que já naquele momento ela estivesse a par da traição porvir. Enfim, seria possível rever este filme 100 vezes e a dúvida permaneceria. Há um plano, incrível em sua pretensa simplicidade, que mostra Sandii lançando um olhar enigmático pelo ambiente enquanto ouvimos a música [3] de sua apresentação junto da fala de X perguntando onde ela estava depois que o vírus escapou, recebendo como resposta “The girl has vanished. Vanished!” [4]. Ela então se levanta e deixa o plano. Composição relativamente simples, mas de rara felicidade, essa combinação de elementos desconexos (essencialmente, sons e imagens) pela narrativa dão luz à uma imagem fundamental: a do mistério inalcançável em forma de mulher.

Numa aproximação bastante natural com outro filme de Abel Ferrara, The Blackout (1997), poderíamos assumir algo a partir dos finais de ambos: para o diretor, não importa a dimensão do problema, pois seja ele estritamente pessoal (em The Blackout, Matthew Modine em crise, reorganizando sua vida a partir de memórias fragmentadas como um quebra-cabeças insolucionável e melancólico em meio a uma desilusão com um relacionamento) ou alçado à uma escala global (em New Rose Hotel, com o vírus que é espalhado pelo mundo em função da traição de Sandii e pela qual X se culpa), seu interesse sempre vai repousar num embate puramente interior e psicológico das personagens. Em ambos os homens há esse ímpeto quase megalomaníaco de sempre se colocar acima dos limites impostos nas atividades que exercem. Se auto-denominando como donos de seus mundos, tais “excessos” (que antes mencionei a respeito da personagem de Dafoe, e que certamente também valem para Modine) os encaminham a um total isolamento da realidade objetiva, ao ponto de que o final de cada filme, portanto, já não consegue mais lidar com esta realidade em qualquer nível concreto. É preciso, portanto, abstrair disso tudo, dando ao conflito e suas virtuais soluções outros direcionamentos: ao final de New Rose Hotel, nosso protagonista está desiludido, preso num cubículo de quarto e com o mundo lá fora a desabar, mas isso pouco importa. O que importa, o que fica de verdade, é a imagem da tatuagem na barriga de Sandii, produto do que pode ter sido o único momento de verdadeira intensidade recíproca que ambos compartilharam, a arma forte de sua sedução, a tal ponto de ser a única informação, dentre tantas outras importantes ditas por ela, que ele retém da primeira noite que passaram juntos, quando Fox lhe pergunta a respeito da garota. Se dentre tantas, houvesse uma imagem para perdurar na mente de X pelo resto de sua inócua vida, seria essa.
Davi Pedro Braga

Notas:
[1] “Ele pega todo um campo da ciência, destrói cada conceito e traz uma revisão violenta de todo um corpo de conhecimento” (Tradução minha, bem como os trechos seguintes que aparecerão pelo texto)
[2] “Você não está apaixonado, está na luxúria”
[3] “Don’t Kill Me”, composta por Abel Ferrara e Harper Simon.
[4] “A garota sumiu. Sumiu!”