“Rue Fontaine” (1984)

O cinema, quando esvaziado de toda dramaturgia anedótica e psicológica (grau de perfectibilidade do filme), pode dar conta da ascensão sob a agressão perpétua, passa o estágio da fala aos confins da angústia e da ironia reflexiva. A revelação que atinge o autor após a explosão da necessidade da expressão não pode ser filmada por ele senão em um estado de sonambulismo perpétuo”

Phillipe Garrel, “Manifesto por um cinema violento”

Garrel disse, uma vez, em uma tirada à maneira de Godard, que era apenas um funcionário da Kodak que tinha a responsabilidade de tomar as películas virgens e devolvê-las preenchidas por imagens, expostas à luz. No caso de “Rue Fontaine” (1984), filme de pouco mais de quinze minutos, esta colocação ganha certos contornos literais: trata-se de um episódio de um filme coletivo, “Paris vu Par… 20 ans après” [1], cujo limite de duração à sua contribuição lhe impõe a necessidade de síntese narrativa. Raro curta-metragem na obra de Garrel, é também um título discreto em sua filmografia, mas que encerra de maneira exemplar aspectos diversos de toda a sua primeira fase.

Como grande parte dos seus filmes, a história por trás deste curta-metragem provém de uma experiência pessoal de Garrel. Neste caso, trata-se de um relato a respeito de sua relação com a atriz Jean Seberg, a quem conhece e se aproxima em meados dos anos 70, filma em “Les Hautes Solitudes” (1974) e mantém contato até a sua morte [2]. Mais do que simplesmente a ilustração destes eventos, interessa a maneira como Garrel opera a síntese e transposição destes elementos para o filme. O valor da transfiguração do relato real pela representação do imaginário se concretiza em um filme que não se completa, não se fecha, mas apresenta uma abertura essencial, na qual o gesto e o aspecto fugidio das cenas apontam a algo que não se fixa, se move, avançando também o filme.

Garrel relaciona este episódio e os contornos fantásticos de seu desfecho com uma de suas inspirações literárias: “Uma mulher com o rosto de Jean me apareceu em um sonho […] Como em “Spirite”, de Théophile Gautier, a suicida aparece ao jovem no espelho e o conduz à morte, Jean me chamava para o outro mundo”. Entretanto, tomando outra passagem de Gautier, a primeira frase do conto “O cachimbo de ópio” (1852), se pode identificar com ainda maior profundidade um procedimento elíptico que repercute propriamente na estética de Garrel neste filme: “Há alguns dias, fui dar com o meu amigo Alphonse Karr estirado num divã, à luz de vela, embora estivesse um dia esplêndido”. A associação desta frase sintética e sugestiva ao título que imediatamente lhe antecede é o suficiente para que se tenha uma imagem completa do uso do ópio e de seu usuário. Em ambiente semelhante se apresentará René, alter-ego de Garrel interpretado por Jean-Pierre Léaud, mas em um pequeno quarto escuro, sem móveis, no qual em determinado momento se verá apenas uma vela solitária [3].

Seja pela intimidade da narrativa ou pela fragilidade de sua composição, em Garrel o cinema se revela em evidência como uma forma de escrita, e aqui penso serem válidas as colocações de dois outros escritores notáveis, embora jamais referidos pelo cineasta. Neste sentido, se Tchekhov afirma que “a arte de escrever consiste bem menos em escrever bem e muito mais em riscar o que está mal escrito” [4], o resultado desta eliminação pode ser compreendido pelo alcance de uma “máxima concentração da linguagem”, pela qual Ferreira Gullar definia a poesia [5]. No filme como no poema, esta concentração é, na verdade, a parte mínima necessária para que a partir daí se projete o seu sentido – poético, deste modo: daí sua aparência fugidia e abstrata.

Nos dois planos iniciais, René amarra os sapatos e se prepara para sair, fumando um cigarro. Depois, é já o corte para o súbito encontro com o amigo interpretado pelo próprio Garrel, indo diretamente ao ponto do convite ao café. No café, relata sua condição miserável em um monólogo de apenas um primeiro plano, sem contracampo, em que os sons do tráfego competem com sua voz; monólogo que nos oferece com extrema profundidade um retrato desta personagem atormentada, dando já todo o estofo necessário para o prosseguimento do filme sem se deter novamente na exposição destes aspectos. A seguir, o amigo o convida para visitar o apartamento de uma amiga, Génie, interpretada por Christine Boisson, a quem René compra uma flor e com quem deixado sozinho, em uma cena breve em que ainda não se estabelece o seu relacionamento, este se consolida somente depois, pela rápida sucessão de momentos distintos. Entre René e Génie, quase não há diálogos, apenas aquele no qual brevemente Génie relata a existência e morte de sua filha, causando um afastamento da relação Pouco depois, em uma caminhada solitária, René é surpreendido pela notícia do suicídio de Génie que lê estampada em uma capa de jornal. Na continuação destes eventos, conhece uma prostituta de aparência idêntica a sua falecida amante. Nos momentos finais, a ambígua aparição do espirito de Génie acontece, sem distinção que defina sua natureza de sonho, alucinação ou realidade, chamando-lhe ao suicídio a que se entrega com o veneno tomado no último plano. 

É por uma série de elipses que estas passagens sucessivas se dão, de atriz à prostituta, de prostituta à fantasma, todas interpretadas por Christine Boisson, sempre mantendo uma ambiguidade essencial. Aqui, as elipses determinam, de maneira mais profunda, as interseções entre os caráteres propriamente materiais e ficcionais deste filme, entre sua projeção e concretude: no limite, sem qualquer tipo de definição temporal, estas elipses apontam precisamente a esta confusão entre o sonho e a realidade.  Assim, “Rue Fontaine” mostra da maneira mais elíptica aquilo que é dramaticamente mais importante e deixa o tempo transcorrer nos momentos de menor interesse narrativo.

No lugar de uma gradual apresentação e desenvolvimento destes elementos, “Rue Fontaine” estabelece uma situação dramática pelo acúmulo de suas cenas, em que são introduzidos apenas determinados recortes, fornecendo o mínimo necessário de informação para que ocorra a apresentação geral destes personagens e relações. A representação que compõe os seus planos, o modelo de direção que Garrel impõe aos seus atores, lembra-me uma das fotografias de Georgia O’Keeffe tomadas por Alfred Stieglitz: retrato de enquadramento muito fechado, que exclui todo o ambiente ao redor e apenas enfatiza gesto sutil pelo qual a pintora se aperta a um grosso casaco, como se estivesse tomada de um frio imenso, projetado apenas pela sua sugestão.

Neste sentido, “Rue Fontaine” é um filme feito somente de gestos fugazes, bem como olhares, pequenas reações: por aquilo que apresenta em seus fragmentos de imagem, Garrel traz uma narrativa direta e “superficial”, em que quase nunca se presta a qualquer desenvolvimento cênico propriamente dito, chegando a parecer que nenhum plano isolado comunica qualquer coisa e que é, em realidade, através de suas lacunas, pelas elipses que ligam ponto a ponto estas imagens, que ele comunica. O “realismo bruto” de seu aspecto formal, dado pela ausência de artifícios e recursos técnicos, pelos imensos ruídos do tráfego ou pela pouquíssima iluminação de suas cenas interiores, é, em realidade, um prolongamento dramático do filme, que comunica a miséria deste personagem através de todos os seus elementos, atribuindo aos espaços e ao registro as mesmas qualidades de sua narrativa, expressando-se pela relação de seu todo, como se Garrel realizasse uma única imagem de sua aventura e sofrimento – imagem no sentido mais primitivo e religioso do termo, que torna este filme singular.

Matheus Zenom

NOTAS

[1] Filme de antologia com curtas-metragens de diretores pouco conhecidos como Bernard Dubois, Frédéric Mitterrand, Vincent Nordon, Philippe Venault e constando, também, do curta-metragem “J’ai faim, j’ai froid” de Chantal Akerman.

[2] “Fragmentos de um diário”. In. “O cinema interior de Philippe Garrel”. Org. Maria Chiaretti e Mateus Araújo. Rio de Janeiro: CCBB, 2018.

[3] Universo recorrente na obra de Garrel, que, nestes mesmos “Fragmentos de um diário”, descreve os “palácios do espírito cujas portas são abertas pelo haxixe”.

[4] Frase do autor recolhida na biografia escrita por Sophie Laffitte, publicada pela José Olympio em 1993.

[5] “O poeta fala de poesia”, entrevista de 1965 recolhida em “Autobiografia poética e outros textos” (Editora Autêntica, 2015)