Amílcar de Castro: concisão e materialidade

“Não há mistério em uma chapa de ferro”

Amílcar de Castro

Amílcar de Castro é, ao lado de João Cabral de Melo Neto, o artista brasileiro mais rigoroso em seus procedimentos formais, que fez da concretude, da precisão e da objetividade os fundamentos que conduziram do início ao fim a atividade escultórica a qual se dedicou ao longo de cerca de cinquenta anos. Desdobrando-se por um gesto lúdico, mas comprometido, em que a vontade de ordenação, de controle sobre a matéria, é a essência do próprio jogo de criação, quase a totalidade de sua obra representa a continuidade de um trabalho diretamente aplicado à placa de aço.

Valendo-se estritamente de técnicas e materiais industriais para a realização de suas obras, Amílcar se afasta de um trabalho baseado no gesto artesanal do escultor e de uma subjetividade convencional que se exprimiria nos detalhes desta manipulação da matéria. A partir da distância e da mediação do processo, entretanto, se manifesta em seus trabalhos outro tipo de subjetividade, marcada pela reflexão sobre a própria escultura (particularmente, em termos de formulação estrutural), como um aspecto conceitual que se materializa de maneira despojada, para além de qualquer automatismo que o rigor geométrico de seus trabalhos poderia fazer presumir.

A partir de uma superfície plana, Amílcar projeta a sua escultura espacialmente através da técnica de corte e dobra, a um só tempo bruta e delicada, sem que desta placa de aço original nada se tire ou acrescente, sem realizar qualquer tipo de soldagem, nem requerer a afixação sobre pedestais. Preserva, assim, a unidade da placa de aço e encontra em sua própria constituição as bases de sustentação de uma escultura que é pura estrutura e equilíbrio de composição: “Eu gosto de fazer uma escultura que não deixa restos, não deixa pedaço nenhum sem uma solução perfeita”, dizia [1].

O próprio Amílcar relata como nos seus primeiros anos de estudos artísticos, quando teve aulas de desenho com o pintor Alberto da Veiga Guignard, desenvolveu sua economia e rigor, que, levados à escultura, limite da expressão material do objeto artístico, expressam uma atitude física, direta e impetuosa (podendo-se dizer mesmo heróica): “Ele me ensinou a pintar com lápis duro, o 6H, que sulca o papel e não permite correções. Riscou, está riscado. Assim, aprendi a usar o máximo de precisão e de sensibilidade. Tinha de pintar o sensível, mas o sensível certo, correto: o melhor golpe de espada é no coração, e ele deve ser feito sem um cálculo prévio.” [2]

Entre a simplicidade e a grandiosidade, o peso e a leveza, a serenidade e a gravidade, há um tensionamento que é fundamental às suas esculturas e expõe o próprio trabalho necessário para executá-la: “O ferro, sua resistência ao gesto do artista e a marca desse embate são partes do drama que reside no paradoxo de construir obras sinfônicas com recursos de câmara” [3]. Assim, a partir de uma concepção aplicada a um mínimo de recursos materiais, as obras de Amílcar são capazes de transcender sua limitação inicial para atingir a grandiosidade de seus efeitos.

Em sua forma abstrata, estas esculturas comunicam a obstinação do próprio gesto responsável por moldá-las, a dureza e a persistência do artista, mas também sua sutileza e sensibilidade, pois a escultura rígida e imponente possui, ao mesmo tempo, a extrema leveza da dobra, de um movimento que se ensaia no espaço. Fora de qualquer sistema de representação simbólico, a planaridade da placa de aço da qual parte encontra uma correspondência na literalidade do trabalho finalizado – que justifica, também, o fato da maior parte de seus trabalhos não possuir qualquer título.

A partir das aberturas formadas pelo corte e dobra da placa de aço, ao criar intervalos em que a luz perpassa o objeto, se dispõe não apenas uma disposição rítmica da escultura como também uma impressão de leveza contraposta à gravidade de um trabalho que, em grandes dimensões, chega a pesar toneladas. Como resultado, esta fratura da superfície chapada implica também em um movimento que se dá frente ao espectador, na transformação do objeto plano bidimensional em tridimensional, manifestação de uma exterioridade que, entretanto, jamais se dissocia de sua unidade fundamental.

Concentradas em sua realidade concreta e limitada, cada uma destas esculturas tem como traço maior de sua interação com o ambiente ao redor o fato de se deixa contaminar por ele, em um processo que materialmente se define pelo enferrujamento da placa de aço. Assim, a contingência desempenha um papel fundamental nestes trabalhos, revelando uma abertura neste processo de composição rigoroso e caracterizando a fatura da obra em dois momentos distintos, mas absolutamente complementares, pois a ferrugem é também o rigor, a dureza e o comportamento natural da matéria, que a modifica em continuidade à ação física e material do escultor, estando agora independente de sua intervenção. No processo de envelhecimento e oxidação se define a sua textura e coloração, camada superficial que se associa à lógica estrutural da escultura para afirmá-la como uma coisa em si, denotando uma personalidade independente e particular.

Matheus Zenom

NOTAS

[1] “Amílcar de Castro: A Poética do Ferro”. Série O Mundo da Arte. Rede SescTV, 2001. Vídeo digital, 30”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WO1OzWYFLps. Acessado em 07/12/2020.

[2] Amílcar de Castro, “Cortar o ferro, Dobrar o ferro”, entrevista por Mario Sergio Conti, Folha de São Paulo, 10 de fevereiro de 2002. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1002200210.htm. Acessado em 07/12/2020.

[3] Paulo Sérgio Duarte, “A aventura da coerência”, em “Amílcar de Castro”, MAM-RJ, 2015.

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