26 postos de gasolina, 34 estacionamentos, 9 piscinas. 10 céus, 13 lagos, 20 cigarros, 2 cabanas. Os três primeiros se referem a títulos de foto-livros de Ed Ruscha. Os quatro seguintes, a títulos de filmes de James Benning. Todas as sete obras apresentam imagens dos locais e objetos prosaicos que seus títulos prenunciam, configuração que ambos os artistas reproduzem, também, em obras com títulos menos específicos como “Some Los Angeles Apartments”, outro livro de Ruscha, ou “Faces”, outro filme de Benning.
Os foto-livros de Ruscha, feitos entre 1963 e 70, registram aquilo previsto em seus títulos, elementos típicos da paisagem de Los Angeles. Nas fotos, não há qualquer indício de estilo ou apuramento técnico, elas simplesmente registram estes elementos como se apenas o contabilizassem, como faria alguém por motivos práticos, para compra, venda ou conserto, por exemplo. Para Jeff Wall (teórico e fotógrafo), Ed Ruscha emula um certo amadorismo em suas fotografias, como se a pessoa que fotografou estes postos de gasolina e prédios de Los Angeles encarnasse a indiferença utilitária e anti-estética permeada por estas construções de “beira de estrada” da cidade. Wall comenta ainda como os livros de Ruscha, com esta indiferença estampada no tema e tratamento das fotografias, “detonam o gênero de livro de fotografia” [1].
O próprio Ruscha comenta o seguinte a respeito do primeiro livro da série, “Twenty-six gasoline stations”: “O primeiro livro veio de um jogo de palavras. O título veio antes de eu sequer pensar nas imagens. Eu gosto da palavra “gasolina” e eu gosto da qualidade específica de “vinte e seis”.” [2] O ponto de partida para sua série de livros, portanto, nasce não tanto de um interesse pelas imagens produzidas ou objetos registrados em si, tampouco de um ímpeto serial, mas de uma simples fusão de palavras; o que acontece se juntarmos “gasolina” com “vinte e seis” [3]? O apreço do artista pelas palavras e, indissociavelmente, pela tipografia, afinal, tornaria-se evidente em suas obras mais recentes, nas quais pinta frases ou palavras sobre fundos diversos.

Sua série “Course of Empire”, de 1992, consiste em pinturas de representações simplificadas da fachada de prédios com algum elemento ou frase que revela (ou não) a sua natureza: “Trade School”, “Tires”, “Telephone”, “Tool & Die”, grades indicando tratar-se de uma prisão, palavras em chinês. Na pintura preta e branca “Blue Collar Tires”, por exemplo, a palavra “TIRES” (“pneus”) estende-se sobre um prédio inteiramente branco, sem qualquer adorno, de interior obscuro. Atrás do edifício retangular, que vemos diagonalmente, de baixo para cima, há um céu encoberto de nuvens escuras. Não estamos diante de uma loja de pneus específica, mas antes um modelo de uma loja de beira de estrada qualquer, ou ainda um espectro de uma; o clima, afinal, não é exatamente neutro, mas sombrio. Há algo de perturbador aqui, assim como o há nas praças da Pittura Metafísica de Giorgio de Chirico; algo demasiadamente geométrico, estático. Ainda que o céu e a tridimensionalidade do edifício indiquem uma representação de nosso mundo físico, a falta de detalhes sugere outra instância, anterior ou posterior à nossa.

Não por acaso, a série de Ruscha inspira-se em outra de mesmo nome, feita entre os anos 1833-36 pelo pintor norte-americano Thomas Cole, que representa a ascensão e declínio de um império (de aspecto romano) em cinco estágios: um estágio selvagem, um estágio arcadiano/pastoral, a consumação do império, sua destruição e a “desolação” (as ruínas). Como Cole, Ruscha não visa representar uma paisagem realista, mas antes figurar uma ideia abstrata, ideal. A própria narrativa, na série de Cole, exerce um papel “conceitual” neste sentido: ela organiza ideias, moldes, sobre os quais as imagens se encaixarão como emblemas, um tableau para cada estágio de progressão [4].

A série de Ruscha, no entanto, não apresenta tal senso de progressão, cada estrutura vazia está lá, como declarado no parágrafo anterior, como um esboço ou carcaça do que virá a ser ou já foi. Situam-se em um tempo impreciso, em composições fragmentárias, pobres em detalhes. Como as imagens dos foto-livros do artista, e como as construções que compõe a gigantesca malha urbana de Los Angeles, elas parecem se acumular arbitraria e (quase, não fossem seus nomes) indistintamente.
A chamada arte conceitual assumiu muitas facetas desde que veio à tona na década de 1960, mas sua essência pode ser reconhecida aí: partir, não da coisa em si, mas da ideia, da palavra. Isto não significa, entretanto, que a arte conceitual seja necessariamente uma manifestação imaterial, abstrata. Pelo contrário, trata-se, sobretudo, de uma dissociação entre palavra/ideia e objeto/matéria, onde os dois ainda atuam, mas separadamente. É o caso dos readymades de Duchamp [5], assim como de “One and Three Chairs” (1965) de Joseph Kosuth. O objeto não necessariamente desaparece, e com frequência assume um protagonismo documental sem precedentes na História da Arte, mas observa-se também a estrutura em que está inserido; seja esta de ordem arquitetônica, linguística, histórica, etc.
Poderíamos considerar apenas os títulos dos foto-livros de Ruscha e dos filmes de Benning como obras em si, como se sua estética consistisse do próprio ato de listar – a arbitrariedade da numeração, aqui, poderia ser equivalente ao que um dia foi a contingência de uma pincelada de tinta. Mas isto seria tomar estas obras parcialmente, afinal, os objetos também estão lá. Ainda que Ruscha tenha partido de palavras para seus foto-livros, utilizando a fotografia de modo praticamente ilustrativo, elas estão ali, e cada posto de gasolina ou piscina registrada carrega sua própria contingência, suas próprias particularidades. O mesmo pode ser dito das obras de Benning, mas agora tendo em consideração não apenas as peculiaridades de, por exemplo, cada lago que registra em “13 Lakes” (2004), mas a singularidade também daquele pedaço de tempo guardado no registro cinematográfico. Cada plano de um filme de Benning é necessariamente um fragmento de espaço-tempo, um instante e um lugar transportados para outro plano material, aquele do filme, e inserido em uma espécie de enciclopédia de unidades espaço-tempo.
Um filme como “Landscape Suicide” (1987) parte de uma premissa que já é, em si, certamente interessante – filmar as paisagens nos arredores de onde ocorreram dois assassinatos – mas o produto final será ainda mais diante das evidências materiais que esta premissa produz. A ideia vem a priori e então ela é colocada “à prova”, frente à realidade que registra. Partindo da premissa do assassinato de uma líder de torcida na Califórnia nos anos 1980 por outra menina de sua escola, Bernadette Protti, vemos longos planos de um subúrbio californiano arborizado e ensolarado. A partir da premissa de um serial killer taxidermista em Wisconsin na década de 1950, Ed Gein, vemos longos planos da paisagem rústica e invernal do interior do estado. Em meio a estes planos, vemos também re-encenações dos depoimentos originais de cada um dos assassinos (interpretados por atores, o que não necessariamente sabemos assistindo ao filme), que transparecem os trejeitos adolescentes de Bernadette Protti e a confissão monótona (e duvidosa) de Ed Gein. Temos, ainda, possivelmente ilustrando suas respectivas vítimas, pequenas vinhetas no filme: uma adolescente falando no telefone em seu quarto vestida à moda dos anos 80 e uma mulher de meia idade dançando ao som de rádio numa sala de estar antiquada.

Cada crime parece caber perfeitamente ao seu habitat, à sua época. Sem eximir a culpa de seus perpetradores ou a gravidade dos eventos, ao situar os dois crimes em espaços e tempos específicos, revela-se que participam de estruturas mais amplas e sutis. As paisagens não justificam os crimes, tampouco fornecem respostas, apenas ilustram seus contextos. A relação entre premissa e ilustração, entretanto, não é direta como aquela entre as paisagens emblemáticas de Thomas Cole e seus designados temas; ainda que organizadas em meio a esta narrativa criminal, e certamente funcionando junto a toda uma retórica particular, os cenários da Califórnia e Wisconsin não atestam a nada a não ser sua própria realidade material, mantendo-se, em certo grau, independentes do contexto que ilustram.
No longa-metragem mais recente de Benning, “The United States of America” (2022), vemos blocos de espaço-tempo – planos fixos, de aproximadamente 2 minutos – que “representam” cada um dos cinquenta estados estadunidenses através de paisagens naturais ou urbanas. As imagens são certamente “contaminadas” pelos títulos que as precedem: temos a noção de estar olhando não apenas uma paisagem mas para um exemplar de “Flórida”, “Texas”, “Nova York”, etc. Há um jogo, assim, entre nossas expectativas e as escolhas que são feitas para representar cada um dos estados de modo absolutamente fragmentário; Nova York, por exemplo, é representada por uma imagem de uma rua cercada por prédios, onde vemos um movimento de carros no fundo; uma cena discreta mas certamente sintética daquilo que imaginamos quando pensamos no estado – no caso, a cidade de mesmo nome, cuja imagem já foi tantas vezes reproduzida no cinema. No final do filme somos então informados de que todas as imagens foram feitas na Califórnia. A distância entre títulos e imagens que a princípio parecia ínfima, torna-se evidente. Cada um destes fragmentos de tão distintos estados americanos foi filmado em um só, no mesmo onde são filmados, afinal, tantos filmes de Hollywood que se utilizam do mesmo recurso – evidentemente, o utilizam em um contexto ficcional, onde esta revelação costuma vir nos créditos e não pretende causar qualquer tipo de reação no espectador (com frequência não é nem mesmo lida por este).

O trabalho de ambos os artistas remete, também, à obra do casal de fotógrafos alemães Bernd e Hilla Becher. Esta consiste essencialmente em fotografias de prédios e estruturas industriais – com frequência obsoletas e abandonadas – como torres de mineração, caixas d’água, fachadas de fábrica ou tanques de gás, organizadas em série no que chamam de uma “tipologia” (termo proveniente do urbanismo, mas que carrega também um sentido textual que associa a obra dos dois diretamente à arte conceitual). Cada construção, aqui, é um exemplo, um “tipo”, desta categoria maior de construções, carregando pequenas ou grandes variações. Lado a lado, estes edifícios e estruturas industriais remetem a borboletas enfileiradas em vitrines de museus ou a livros enciclopédicos de plantas e animais, como se suas variações fossem características naturais, frutos de uma evolução de milhares de anos, a serem observadas e estudadas por naturalistas [6]. De fato, tal organização esquemática destas estruturas atesta ao mesmo tempo ao seu objetivo primordialmente funcional, e não estético, e às suas peculiaridades específicas, às contingências regionais, climáticas, temporais a que cada um destes objetos está sujeito.
Apesar da organização tipológica, o interesse dos Becher reside, sempre, no objeto em si, e na melhor maneira de registrá-lo. Em uma entrevista publicada na Revista Zum [7], o entrevistador Ulf Erdmann Ziegler pergunta se Bernd Becher “não tentou transmitir uma estética?”, ao que este responde: “Não. Ela se desenvolve a partir do próprio objeto, se o interesse é sério.” O casal afirma, ainda, que nem todo objeto é necessariamente interessante para esta estrutura, como seria o caso de cabines telefônicas, por exemplo, uma vez que “São todas iguais. A variação está apenas no entorno. Seria pretensioso. Coisas desse tipo foram feitas na arte conceitual.” Diferentemente de Ruscha, assim, os Becher chegam à arte conceitual “por acidente”, por assim dizer. Partem, não da palavra, mas do objeto em si e suas peculiaridades, para depois organizá-los de acordo com uma ordem “conceitual”.
Paula Mermelstein
Notas:
1 – C.f. “Marcas da indiferença”: aspectos da fotografia na, ou como, arte conceitual” (1995), de Jeff Wall na Revista Zum #12, abril/2017.
2 – “The first book came out of a play on words. The title came before I even thought of the pictures. I like the word ‘gasoline’ and I like the specific quality of ‘twenty-six’.” Ed Ruscha em: https://www.tate.org.uk/art/artists/edward-ruscha-1882/ed-ruscha-and-art-everyday.
3 – A fala de Ruscha remete àquela de Éric Rohmer, quando se refere à construção de suas narrativas como uma “máquina eletrônica”: “No que diz respeito aos meus Contos Morais, considero que estão compostos como numa máquina eletrônica. Na suposta ideia de ‘contos morais’, se coloco ‘conto’ de um lado da máquina e a ‘moral’ do outro, se desenvolvo tudo o que é implicado por conto e tudo o que é implicado por moral, a situação já estará praticamente estabelecida, pois não sendo um conto moral um conto de aventuras, será necessariamente uma história a meias-tintas, portanto uma história de amor.”. Entrevista com Rohmer, “O Antigo e o Novo”. Cahiers du Cinéma nº 172, novembro 1965. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO3/rohmer.htm. Comento a respeito disso em seu filme “O Joelho de Claire” no texto “O visível e o invisível em “O Joelho de Claire” (1970)”, na Revista Limite #3, março/2021. Disponível em: https://limiterevista.com/2021/03/30/o-visivel-e-o-invisivel-em-o-joelho-de-claire-1970/
4 – É interessante lembrar, aqui, do quadrinho de Robert Crumb intitulado “A Short History of America”, que ilustra as mudanças em um pedaço de paisagem estadunidense com o passar do tempo: de um campo “virgem”, à uma rua entupida de postes de luz, fios elétricos, cartazes e automóveis. Há certamente um olhar nostálgico e pessimista por parte de Crumb diante destas mudanças, com a diferença crucial (para além, é claro, do fato das pinturas de Cole se tratarem de um mundo fictício) de que em sua ilustração vemos não apenas os resultados de tais mudanças mas seus agentes: o trem, a eletricidade, o avanço do capitalismo, etc.
5 – Como coloca Matheus Zenom sobre o readymade, em “Os readymades de Marcel Duchamp” na Limite #6: “O deslocamento definitivo que o caracterizará como obra será, então, a escolha do título, cuja assimetria em relação ao reconhecimento comum do objeto cria uma distância na qual o interlocutor deve agir, buscando possibilidades de sentido entre as duas sugestões. Nesta mudança de perspectiva, essencialmente intelectual, se evidencia a consciência ambígua de uma nova força expressiva, ausente de qualquer esforço artesanal e apenas concentrada na exposição de um conceito.” Em: https://limiterevista.com/2022/02/28/os-readymades-de-marcel-duchamp/.
6 – Esta associação à estrutura enciclopédica não é ignorada pelos Becher. Quando perguntados em uma entrevista à Ulf Erdmann Ziegler acerca da relação de sua obra com Andy Warhol e o serialismo, respondem o seguinte: “[…] o serialismo foi uma decorrência de termos juntado muito material acerca de determinados temas. Só que nossa concepção, na hora de apresentar o material, tem mais a ver com o século 19, com o enciclopedismo na botânica ou na zoologia, em que plantas do mesmo gênero ou animais da mesma espécie são comparados na mesma página de uma enciclopédia. Estava cada vez mais clara para nós a existência de certas espécies, gêneros e subgêneros dessas estruturas. Na verdade, é um procedimento antiquado, mas depois foi utilizado na arte conceitual.”Referência da entrevista na próxima nota.
7 – Entrevista por Ulf Erdmann Ziegler, traduzida do alemão por Sérgio Telarolli, publicada na revista ZUM #1, em outubro/2011. Sua leitura na íntegra está disponível aqui: https://revistazum.com.br/revista-zum-1/hilla-becher/.