Gun Crazy (1950): Amor e Violência

Em Gun Crazy, nada é possível de se entender pela lógica ou pela racionalização. Trata-se de um filme em que tudo responde somente à ordem da emoção pura, levada às últimas consequências, direcionando a narrativa a um aumento progressivo da tensão criada e mantida pela fuga e violência. Isto guiado por uma extrema objetividade, motivada menos por sua “condição industrial” (um “filme B”, de menor custo e duração sucinta – aqueles 90 minutos redondos, amarrados idealmente) do que pelo tom agressivo adotado por Joseph H. Lewis, que o tempo todo pede nada menos que ação.

Uma de suas primeiras cenas, num pequeno tribunal, já define uma baliza essencial aos caminhos do filme: Bart Tare (John Dall) possui uma relação inexplicavelmente vital com armas de fogo – sua irmã, seus amigos e o juiz tentam justificar, explicar ou entender isso de algum modo, mas falham. O fato é que nele está fortemente sedimentada essa atração pelo dedo no gatilho, pelo som do projétil estourando e atingindo algo. É importante salientar que será sempre assim, “algo” e não “alguém”, porque bastou, quando criança, ter levado ao limite o poder de uma arminha de chumbo e matado um passarinho para que jamais pensasse em tirar a vida de qualquer ser vivo que fosse novamente. Posto em reclusão por roubar uma arma logo no primeiro plano do filme (em que já se verifica certo grau de brutalidade e violência, quando ele quebra o vidro da loja para pegar a arma e em seguida abre os braços na espera de alguma reação policial), Bart amadurece com o passar dos anos, entra para o exército e vira professor – de tiro, claro. 

Seu princípio de não matar e a pretensão de uma vida calma passam a ser aos poucos tensionados assim que conhece Laurie Starr (Peggy Cummins), uma exibicionista de armas em uma feira de atrações. Toda a performance feita pela personagem quando ambos trocam os primeiros olhares é erótica à tradição Hollywoodiana da época: apenas o corpo dela se mexendo de modo sútil, ajeitando o quadril a cada tiro que dá ao alvo. Ela se apresenta, a música do parque soa ao fundo junto dos sons de tiro e Bart fica deslumbrado, como se tivesse encontrado uma espécie de nirvana na figura da mulher que compartilha da mesma paixão que ele. O amor se sela tão logo por meio dessas ações provocantes que acontecem entre ambos, como o tiro falso que Laurie dá nele, chamando-o no meio da plateia, ou a competição de tiro ao alvo com a coroa de fósforos disputada entre eles – o que há de ser mais excitante do que isso, um jogo em que a vida de um está confiada ao outro, num ato que deles exige nada menos que a perfeição naquilo que fazem e amam? 

Bart logo passa a trabalhar com Laurie no grupo de atrações – um período com o qual mal temos contato, assim como os primeiros momentos do casamento que se sucede à demissão de ambos, condensado numa montagem de pouco menos de um minuto. Fica claro, então, que o interesse de Lewis em filmar esse casal e essa história jamais se pautou por momentos tranquilos, como estes do casamento e do trabalho, mas sim pela excitação do espírito possível pela combinação explosiva deles dois. Quando se veem sem dinheiro, Laurie estica ao máximo a corda para que ambos cedam às tentações e assumam a vida do crime. Para Bart, amor, violência e adrenalina passam a se equivaler; a mão que hesitou em atirar num tigre quando jovem, e tremeu quando seu colega o fez, é a mesma mão que treme e hesita em abandonar sua amada quando ela opta por esses caminhos tortuosos. Enquanto seus instintos o seguraram quando mais novo, o charme de Laurie pega-o de jeito. Abraçada a marginalidade, não demora para que um ponto de tensão se rompa e roubar deixe de ser um mero meio de sobrevivência, mas sim um estilo de vida. Se antes a câmera era propensa até a se esgueirar dentro de um carro para acompanhar as personagens (falo do famoso plano sequência no roubo do banco), é ao sinal da crueldade gratuita de Laurie com o refém dono do veículo que ela se limita a não atravessar a cerca que eles atravessam, tampouco Lewis a cortar para dentro deste outro espaço, mas apenas registrar a ultrapassagem desse ponto de não-retorno, pois a partir dali o movimento é ladeira abaixo.

Entre assaltos aqui e acolá, o filme rapidamente se encaminha ao momento derradeiro, quando o casal concorda em finalmente largar a vida de roubos e crimes – desde que deem um golpe final, o ponto no qual a bandidagem deve ser sintetizada num movimento calculado, para que não sobrem pontas soltas e o caminho rumo à superação desta condição marginal seja trilhado com sucesso. Mas Bart e Laurie jamais foram sinônimos disso, nem perto. As naturezas de ambos, às suas próprias maneiras e perfeitamente complementares umas às outras, indicam que o caminho é sempre em direção à fuga e ao caos. Assim, não apenas são incapazes de seguir uma etapa básica que sucederia uma operação deste tamanho (se separarem, pois jamais conseguiriam ficar um sem o outro), como também um deles, Laurie, é incapaz de controlar seu próprio impulso violento, e acaba por matar um dos policiais envolvidos no episódio. Sempre pontuada categoricamente, a diferença de como cada um deles lida com a violência e a morte (e vale relembrar que esse não foi o primeiro assassinato de Laurie) parece se diluir ao ponto de que ambos viram um só: o que ela fez é, também, o que ele fez, e disso não há como fugir, o próprio admite.

Se durante o filme todo a câmera preservou uma certa distância de ambos e suas atitudes, aproximando-se apenas naqueles momentos extremos de nervos elevados à flor da pele – como os close-ups de Bart encarando o poder da morte quando criança, jovem e adulto, ou os contatos mais calorosos do casal – a cena final se ocupa toda disso: a profusão emocional dos dois frente à possibilidade mais explícita de falha, encarnada no rosto sujo e tensionado de cada um. Bart, agora de volta à Cashville, sua cidade natal, sempre soube que ali não haveria escapatória: era se entregar ou fugir por mais algumas horas, como seus colegas de infância, um deles policial, deixam claro. Assim, é perfeitamente normal que o final os coloque frente a um cenário no qual todo o dinheiro que roubaram e os bens que conquistaram no caminho já não estejam mais à mão, de que se trate apenas deles encurralados, despojados de tudo (a não ser de um ao outro e suas armas, o essencial), já que pareceu sempre ser o destino trágico de um casal que achou na materialidade o pretexto para satisfazer demandas espirituais. 

Mortalmente Perigosa, tradução direta do título alternativo de Gun Crazy, “Deadly Is the Female”, parece fazer mais justiça a tudo que se passa no filme; amor e violência, arma e mulher, tudo isso se mistura em algum momento na vida de Bart Tare – talvez já naquele tiro falso que Laurie dá em direção a ele (e a nós, também) quando se conhecem na feira, entregando o convite definitivo à aventura. Ao final, no cenário onírico e destoante da brutalidade com a qual nos habituamos – com nuvens de neblinas organizadas num espaço digno dos mais belos planos do então vindouro Sansho Dayu (1954) – chegamos à única saída possível, tendo em vista a dimensão obsessiva e radical que seu relacionamento, tanto com Laurie, tanto com as armas, tomou: frente à chance de ver a parceira morrer pelas mãos de seus amigos ou de meramente observá-la cometer mais um assassinato, Bart atira nela ele próprio, para em seguida ser morto pelo amigo policial. Tenha essa ação, como tudo no filme, sido produto do instinto, não deixa de existir uma lógica por trás: esse último apertar do gatilho, finalmente dirigido a “alguém”, é a ação para qual todas as suas anteriores haviam-lhe encaminhado. Só no ato de levantar e atirar é dissipada toda uma energia – de várias naturezas, da moral até, por que não, a sexual – que esteve posta em repouso durante o filme. E esse assassinato, contudo, não rompe a fronteira definida por ele: seu “não matarás” sempre se fez valer quando em prol da violência gratuita, mas jamais quando em prol do amor, a verdadeira razão pela qual o faz. Com Laurie morrendo, ele tinha de morrer também, de modo que após tudo aquilo ambos atingissem alguma espécie de graça – a mesma da qual Jacques Rivette se referiu, em Notes sur une révolution, como o fim único da violência

Davi Pedro Braga