Peixes de Briga

“Time is a funny thing. Time is a very peculiar item. You see when you’re young, you’re a kid, you got time, you got nothing but time. Throw away a couple of years, a couple of years there… it doesn’t matter. You know. The older you get you say, ‘Jesus, how much I got? I got thirty-five summers left.’ Think about it. Thirty-five summers” – Benny (Tom Waits)

Em 1983, Francis Ford Coppola adaptou dois romances de Susan Eloise Hinton sobre os impasses da adolescência estadunidense. Valendo-se de equipes técnicas e artísticas semelhantes, os filmes se oferecem, a princípio, como opostos. Vidas sem Rumo, adaptando um romance de Hinton escrito aos 16 anos, é um melodrama febril de cores quentes e de aspecto romanesco. O Selvagem da Motocicleta, por sua vez, se oferece como um experimento lírico em preto e branco. O pôr-do-sol excessivamente alaranjado do primeiro filme, referência ao livro (E O Vento Levou…) que os adolescentes leem no seu exílio em uma igreja abandonada, contrasta com as escalas frias de cinza do segundo. Com o objetivo de me focar em O Selvagem da Motocicleta, cumpre esclarecer que, a despeito dessas diferenças estruturantes, ambos os filmes desenham uma trajetória cujo percurso permite uma percepção das questões igualmente estruturantes do cinema de Coppola.

Sabe-se que o cineasta define Vidas sem Rumo como “um filme sobre o pôr do sol”, fazendo referência à juventude como etapa última antes da vida adulta, mas aludindo também ao cinema clássico que encontrou belos avatares no seu contexto de crise dos estúdios. Se este é um filme crepuscular e nostálgico sobre o processo de perda da inocência, seja ela dos adolescentes ou do cinema, o que é O Selvagem da Motocicleta senão seu resultado? As cores frias substituem as cores quentes, as luzes da noite se sobrepõem às luzes do dia, as sombras do cenário urbano encobrem a energia solar dos campos por desbravar. Uma vez que o sol se pôs e o lamento nostálgico se cumpriu, o que sobrou?

Em O Selvagem da Motocicleta, o cinema já é um cadáver em vias de se putrefazer, e a impressão é de estarmos diante de um organismo morto que precisa ser constantemente reanimado por eletrochoques espetaculares – trilha musical ruidosa de Steward Copeland, baterista do The Police, com notas que se assemelham a um coração pulsando; movimentos virtuosos de câmera e ângulos tortuosos de Stephen H. Burum, futuro diretor de fotografia de alguns filmes de Brian de Palma; trucagens na imagem, pela montagem de Barry Malkin, colaborador constante de Coppola; entre outros. Diante deste cadáver que é o cinema, Coppola redispõe algumas carcaças: The Fugitive Kind (1960), Nicholas Ray, expressionismo alemão, musicais da MGM…

Em Apocalypse Now (1979), a viagem de Willard (Martin Sheen) ao coração das trevas é um percurso ritualístico em direção à morte, o que extrapola a semelhança com Vidas sem Rumo para além da paleta de cores, pois neste também se encena um itinerário (do próprio filme, no caso) rumo à escuridão que prossegue o pôr-do-sol. Esta noite se impôs em O Selvagem da Motocicleta, e por o filme já ter constatado sua morte, ele está mais próximo de seu antecessor Do Fundo do Coração ou de seu sucessor Peggy Sue – Seu Passado a Espera, o primeiro pelo artificialismo ardente que sustenta o cadáver de uma tradição cinematográfica (musical) e o segundo pela temática do retorno ao passado, que, antes de ser um tema, é um princípio norteador da poética de Coppola.

O Selvagem da Motocicleta, grosso modo, é como o resultado de uma precipitação recorrente do cineasta nas veredas da história do cinema. Coppola, como um agente funerário, sempre tratou de conservar os muitos cadáveres do cinema clássico e moderno, retocando-os de forma singular – Visconti, Minnelli, Antonioni, Sirk, Welles, os filmes de gênero hollywoodianos, a ópera verista, Tennessee Williams… Dos corpos de outras épocas que constituíam seus filmes, finalmente estamos diante de uma obra que se apresenta, ela própria, como um cadáver. Não surpreende que anos depois o cineasta invista em uma adaptação de Drácula, ainda hoje mal compreendida, tendo em vista que se trata de um passo lógico em direção à cadaverização absoluta de seu cinema, dispondo suas imagens mortas, antiquadas e anacrônicas a um personagem morto-vivo.

A persona de Coppola é bem conhecida, e não penso que um detalhamento de suas características pessoais ou de seus dados biográficos sirva a alguma coisa senão a reprovar seu nepotismo. Contra esta tradição crítica fundada por Saint-Beuve, é sempre mais interessante opor os filmes e seus diálogos dentro do contexto de uma obra. No cinema de Coppola, ecoando o que Michel Mourlet escreve sobre Otto Preminger, o traço autoral não se encontra na recorrência temática (ainda que esta se perceba eventualmente), nem no trabalho sobre determinado gênero, mas na mise en scène, que nos filmes de Coppola toma a forma de uma disposição de forças, matérias e energias de outros tempos. Em todos os filmes de Coppola, as heranças do cinema, tão maleáveis quanto rígidas, se entrechocam e se reconfiguram.

Neste sentido, cada filme do cineasta, soma de heranças distintas, se apresenta como reconfigurações singulares. Coppola, como os personagens que ocasionalmente põe em cena – podemos pensar, sobretudo, nos adolescentes do díptico de Hinton –, parece estar sempre à procura de uma identidade própria, que ele acredita poder se expressar no retrabalho com a memória do cinema. Em última instância, é esta busca mesma, que o cineasta transforma em espetáculo, que lhe garante sua identidade.

O que nos conta, então, O Selvagem da Motocicleta? As imagens expressionistas, delirantes e elétricas sustentam o drama de contornos trágicos de Rusty James (Matt Dillon), um adolescente arruaceiro que alimenta uma nostalgia inconsequente pelo passado glorioso das gangues juvenis. A roupagem trágica é mesmo sublinhada pela presença de uma personagem feminina chamada Cassandra (Diana Scarwid). O pai alcoólatra de Rusty James, interpretado por Dennis Hopper, afundou-se nas garrafas depois da partida de sua mãe, que nunca vemos, mas que sentimos como uma presença assombrando o filme. O triângulo familiar masculino se completa com o irmão mais velho de Rusty James, nomeado apenas de “motorcycle boy” (Mickey Rourke), personagem angelical que, apesar da pouca idade, carrega consigo a reputação de ídolo. Coppola, cineasta de masculinidade acachapante, que em mais de uma ocasião esboçou narrativas de caráter edipiano, desloca o peso da figura paterna para o personagem de Rourke, uma vez que o pai efetivo é construído sob o signo da negatividade e da ausência – sua primeira aparição é dormindo abraçado à garrafa e a segunda como uma sombra. Rusty James verá seu irmão mais velho como uma figura modelar, de quem pretende seguir os passos para, eventualmente, substituí-la.

Inúmeros elementos do filme apontam para uma relação direta ou indireta entre a forma fílmica, o conteúdo dramático e o contexto de produção. Não desejo sustentar aqui que o filme expõe uma tese intrincada sobre a posição específica de Coppola no cenário hollywoodiano, visto que sua disposição caleidoscópica impede tal leitura impositiva. Mais do que um mecanismo bem acabado, com suas engrenagens acopladas umas às outras, o filme funciona como um turbilhão, cujos movimentos constituem sua matéria mesma. Se eu elenco os elementos seguintes sem preocupar-me em estabelecer uma relação lógica entre eles, é porque acredito que é preciso resguardá-los de uma tese definitiva, no intento de manter-lhes abertos, múltiplos e por vezes contraditórios:

1. A nostalgia pelo passado das gangues, por parte de Rusty James, encontra ressonância no sonho de Coppola em reviver os tempos áureos dos grandes estúdios hollywoodianos – sonho que sua produtora, Zoetrope, tratou de atender e frustrar.

1.1. As gangues, no filme, “tinham um significado”, mas a droga lhes desagregou. Em dado momento, o motociclista se refere à California (não à toa o estado de Hollywood, para onde o protagonista quer fugir) como uma linda garota que foi arruinada pela droga.

1.2. Gangues e Califórnia, assim, apontariam para o cinema clássico e a crise dos estúdios que lhe pôs fim.

2. Rusty James é nostálgico e em processo de construção de uma identidade própria; neste sentido, funciona como um alter ego de Coppola no contexto de produção a que pertence.

3. O motociclista tem constituição ambígua: poderíamos tanto vê-lo como símbolo do cinema clássico, posto que Rusty James (Coppola) o reverencia ao ponto de querer tornar-se como ele, como poderíamos compreendê-lo como personificação do próprio filme ou do próprio cineasta, “nascido na época errada, do outro lado do rio”.

3.1. Se o motociclista simboliza o cinema clássico, é preciso considerar que ele de fato viveu o período “glorioso” das gangues.

3.1.1. A aterrisagem do personagem do motociclista, no filme, dá após um período de exílio na Califórnia (que, reitero, pode ser lida como “Hollywood”).

3.1.2. Figura tutelar, o motociclista socorre o irmão em duas ocasiões, como se a memória do cinema clássico impedisse o cinema de morrer. Em dado diálogo, inclusive, ele é comparado com o flautista de Mozart, pela liderança que exerce sobre os mais jovens: ele é como a “realeza no exílio”, ou seja, a forma clássica em um período histórico que já não lhe pertence.

3.1.3. O motociclista é assassinado por um policial, como se a lembrança do cinema clássico, em sua pureza ilusionista, ameaçasse as autoridades da mídia hiper-realista (falarei sobre isto adiante).

3.2. Ao considerarmos o motociclista como metáfora para o filme e o cineasta, decorremos no fato de que, mesmo o protagonista da história sendo Rusty James, o filme é construído principalmente pelo ponto de vista do irmão mais velho.

3.2.1 O daltonismo do motociclista repercute no preto e branco do filme e em determinadas cenas o som diegético é abafado e reverberado como se repercutisse a surdez ocasional do personagem. A impressão, nestes momentos, é a de estarmos dentro de um aquário junto ao ator, não à toa um elemento diegético com o qual o filme trabalha nas cenas finais.

3.2.2. Quando diante do aquário com os peixes de briga, no final do filme, o motociclista gesticula como um diretor de cinema enquadrando a realidade com as mãos.

3.2.3. Como o próprio filme, trata-se de um personagem que, apesar de ser jovem, parece velho.

3.2.4. A inadequação do motociclista, nascida não de uma nostalgia pelo passado que ele insiste em desmistificar, mas pela insanidade melancólica de um homem deslocado de seu tempo presente, nos aponta para um filme que se apresenta, ele próprio, como um óvni surgido de outras eras.

3.2.5. Na busca por sua identidade, o motociclista vagueia em suas motocicletas roubadas, à semelhança do filme que deambula fazendo uso de formas clássicas traficadas.

4. A crise do personagem, que o filme transubstancia em forma fílmica, mina as imagens e os sons com dissonâncias e fissuras internas.

5. Com exceção dos peixes, os únicos elementos coloridos da diegese surgem em uma das sequências finais: Rusty James, enfurecido pelo assassinato do irmão, vê em cores a sirene do carro de polícia e seu reflexo na viatura. O mundo finalmente se dobra à sua percepção, não à toa em uma imagem espelhada. O filme opera esta espécie de transferência de protagonismo, do ponto de vista do motociclista ao ponto de vista de Rusty James.

6. Muitos viram nos peixes coloridos uma metáfora para os delinquentes juvenis, o que não deixa de ser verdadeiro, mas é preciso encará-los também como metáfora para o próprio filme, que concilia matérias aparentemente inimigas, quando separadas, em um mesmo fluxo (rio) cinematográfico. Assim, o emaranhado de referências a princípio incongruentes termina por encontrar sua unidade.

6.1. Este rio, que conduz à California (Hollywood), seria como a promessa de um novo cinema.

6.1.1. Quando constringidos, os peixes se digladiam; quanto libertos, o frescor da liberdade lhes restaura a harmonia: o sonho do motociclista (e do filme), em última instância, seria libertar estes corpos clássicos, aparentemente irreconciliáveis, para que eles fluam na direção de uma arte inexplorada.

6.1.2. Rusty James segue a trilha deste rio e encontra a vocação originária de inúmeros personagens coppolianos: fugir até que o passado não mais lhe persiga, até que o oceano se apresente aos seus olhos e o infinito se delineie no horizonte. Porque Coppola, mesmo que faça de seu trabalho o embalsamento de formas cinematográficas, sempre revive estes corpos – mesmo os ainda pulsantes – com uma estilização do traço, buscando conciliar a morte do cinema sonhado com a perspectiva de um horizonte ilimitado de artifícios.

Os elementos acima respondem, prolongam ou nuançam uma relação que o filme constrói entre o dispositivo fílmico e o drama dos personagens, configurando uma permanente crise estética no seio de uma narrativa cujos personagens, eles também, se apresentam em crise. Para que se aprofunde esta relação, é preciso circunscrever brevemente o contexto maneirista ao qual Coppola pertence. O mesmo Serge Daney que propunha uma relação entre O Selvagem da Motocicleta e um fliperama não hesitou em chamar Coppola de “nosso Parmigiano ou Primaticcio”, referindo-se aos pintores do maneirismo italiano do séc. XVI.

Não sendo de minha alçada fazer um inventário da discussão maneirista no cinema, me reportando, por exemplo, aos escritos franceses de Jean-Baptiste Thoret, Stéphane Delorme e Jean-Marie Samocki ou ao trabalho de Luiz Carlos Oliveira Jr. no Brasil, o que proponho, ao contrário, é simplesmente considerar as palavras de Alain Bergala, para quem “o maneirismo se caracteriza pelo sentimento que tiveram alguns pintores como Pontormo ou Parmigiano de chegarem ‘tarde demais’”. Coppola, como foi afirmado, parece invadido por este sentimento melancólico próprio aos cineastas que lamentam ter nascido na época errada, e isto a experiência com a Zoetrope não desmente. Com as derrocadas do cinema clássico e os sinais de desgaste do cinema moderno, uma geração de cineastas tão diferentes quanto semelhantes recolheu os cacos de seus precursores, buscando não exatamente construir um novo cinema, mas restaurar a arte cinematográfica. Enquanto o cinema agoniza, as imagens audiovisuais da década de 1970 e 1980 passam pelo filtro hiper-realista e uniforme da televisão e da publicidade (e é sintomático que o filme sendo exibido em um televisor no início de O Selvagem da Motocicleta se chame Murder by Television). A realidade é encoberta por este filtro, se transformando em simulacro, e o sentimento de nostalgia se impõe aos cineastas.

O cinema de Coppola não passa incólume a esta crise da representação, pelo contrário: torna-a estruturante. Para melhor compreender a si próprio, o cinema de Coppola se dobra sobre si, em uma hipertrofia da arte sobre a arte. O modelo do artista não é mais a realidade, que pode ser convertida em ilusão de realidade, mas o próprio cinema, que pode se converter em ilusão de cinema. Se Coppola é um cineasta do artifício, é porque a natureza já se tornou artificialidade, não mais mediada pelos aparatos técnicos e discursivos, mas produzida pelas imagens televisivas e publicitárias. Neste contexto, como pode um cineasta restaurar o poder do cinema e vencer esta uniformidade hiper-realista imposta pelas mídias?

Em Coppola, especificamente, a resposta se encontra na dobra sobre o artificialismo e o espetáculo que ele engendra: como bem coloca Youssef Ishaghpour, o espetáculo passa a ser o próprio mito de Coppola, depois de este ter reintegrado em si todos os mitos de origem do cinema. Não é esta hipertrofia de si sobre si mesmo que vemos encenada a partir do drama vivenciado pelo motociclista de Rourke? A percepção do mundo, que passa por seus olhos e ouvidos e reverbera no dispositivo fílmico, não é mais uma apreensão imediata dos dados da natureza, mas uma dobra de seus sentidos. O expressionismo de O Selvagem da Motocicleta nasce desta hipertrofia do personagem sobre si mesmo e do cinema sobre seus fantasmas.

Tão conhecida quanto a persona de Coppola é o argumento de Ismail Xavier sobre o efeito-janela que caracteriza a tela no cinema clássico e a opacidade que caracteriza a imagem no cinema moderno. No caso deste cinema maneirista, e no caso especificamente de Coppola, uma noção adequada nos é fornecida pelo próprio filme: quando do lado de fora do bar, os personagens de Matt Dillon e Nicolas Cage conversam diante de uma janela que reflete as nuvens no céu. Esta janela, cuja opacidade não nos permite ver o interior do estabelecimento, também não é exatamente uma superfície opaca: trata-se mesmo de um espelho, que substitui ao efeito-janela e à opacidade uma imagem reflexiva, que dobra sobre si mesma e propõe um simulacro desgarrado de sua disposição ilusionista: o espelho de Coppola reflete imagens distorcidas, deformadas e vertiginosas. As nuvens que ele abriga, manipuladas, passam demasiado rápido, como também no decorrer do filme as sombras se engrandecem rapidamente conforme o sol se põe de forma acelerada. A velocidade é como o fruto trágico do drama entre Cronos e Kairós, os deuses do tempo que instituem a condição dilacerada do personagem e do cineasta que chegaram tarde demais.

Igualmente sintética, no filme, é a sequência em que Rusty James vislumbra uma experiência pós-morte, com seu cadáver flutuando sobre seus próximos, os quais choram por seu falecimento. O personagem, neste momento, abstrai-se do “real” (que não existe, finalmente) para se suspender nesta visão de um mundo que corresponde aos seus desejos mais secretos. A sobrevida de Rusty James é como a reanimação cardiorrespiratória que Coppola sujeita ao filme, e é também nesta sequência que o ponto de vista, antes dobrado sobre a percepção do motociclista, rompe com sua lógica interna para apresentar um mundo ecoado pela percepção do irmão mais novo. Se seu corpo flutua, é porque o filme acusa uma leveza que é também de Coppola: a presença do motociclista, e, por conseguinte, do cinema, não lhes pesa mais sobre os ombros – e curiosamente não vemos nem o pai nem o irmão lamentarem sua morte, o que sublinha a questão com a linhagem.

Como a imagem final, que descortina um horizonte por explorar, ou seja, um mundo a se sonhar, a sequência onírica da levitação é como um sonho que precisa ser sonhado. Esta projeção mental ou sentimental, que nos filmes de Coppola pode tomar a forma de uma paranoia (A Conversação), de uma cenografia nababesca (Do Fundo do Coração) ou de um pesadelo (Apocalypse Now), responde aqui à necessidade de fuga, seja da realidade diegética, se pensarmos no personagem, seja do simulacro hiper-realista da televisão e da publicidade, se pensarmos no cineasta.

Finalmente, o grande tema de Coppola, sendo o próprio cinema, não decorre, entretanto, em filmes autocentrados que se restringem à citação ou ao pastiche. Engana-se, assim, quem pensa que Coppola é um maquinista frio obcecado pelos seus brinquedos tecnológicos e pelo passado cinematográfico que tanto admira, posto que o gesto nostálgico de restauração da grandeza clássica – o classicismo aqui entendido como conjuntura histórica, não como concepção estética – passa necessariamente pela rendição ao modelo dramatúrgico tradicional. A atenção que o cineasta deposita sobre seus atores e sobre a construção dramática de seus personagens impede que suas imagens se transformem em totens, e a mise en scène que consiste em dispor matérias e tensões conflitantes, muitas vezes de forma artificial, também busca no corpo dos intérpretes uma verdade anterior a qualquer autoreflexividade. Aqui, é a imagem melancólica de Drácula que nos indica uma possibilidade de compreensão da obra coppoliana: um corpo que, apesar de morto, nunca deixou de amar.

Hoje, com certo distanciamento, é preciso reafirmar a grandeza de Coppola, tão magnífico quanto seus contemporâneos mais celebrados, sejam eles da Nova Hollywood ou do “momento maneirista”. Suas obras mais reconhecidas, cuja fama não dissimula seu talento – julgo que seu melhor filme seja mesmo o terceiro episódio da saga Corleone –, integram um corpo de filmes que, especialmente no período entre 1982 a 1992, respondeu de forma assombrosa às questões de seu tempo cinematográfico. Este valor estético e histórico, intrínseco ao seu trabalho, nós podemos encontrá-lo nos estímulos imagéticos e sonoros que reanimam O Selvagem da Motocicleta, uma de suas obras-primas forjadas em fogo cálido.

Com uma potência talvez inalcançada por outras obras do cineasta, o filme testemunha as contradições de seu autor, sempre em crise e, por isto, perpetuamente à procura. A marca do gênio de Coppola é encenar o caos resultante desta crise e garantir-lhe uma pulsação espetacular, ordenando os diferentes vetores de energia apontados para o coração de seus filmes. Pois, como dizia Pierre Boulez, “para se criar a eficácia, é preciso levar em conta e organizar o delírio”.

Luiz Fernando Coutinho