D’Est (1993), um retrato do perpétuo Leste

Com planos longos, a câmera ora estática ora movimentando-se em travellings laterais, D’Est de Chantal Akerman é um retrato do Leste Europeu feito a partir, sobretudo, dos habitantes da região, em deslocamento nas ruas, trabalhando, dançando ou em casa. Filmado em 1991 e finalizado em 1993, sua estrutura narrativa acompanha uma jornada de Oeste à Leste da Europa, começando na Alemanha Oriental, passando pela Polônia e chegando à recém dissolvida União Soviética. D’Est assume uma posição distanciada em relação àquilo que filma, sem floreios ou qualquer tipo de comentário a seu respeito. A historiadora da arte Margaret Iversen descreve uma visão despersonalizada e até involuntária do mundo resultante dos travellings da cineasta feitos de dentro de um veículo aqui e em News From Home (1976) [1]. No entanto, o interesse de Akerman concentra-se sempre nas pessoas, sua escala é sempre humana, seu Leste em D’Est é visto pelas lentes da vida privada.

O filme varia, essencialmente, entre dois tipos de plano: pessoas em deslocamento, na rua ou no campo, e pessoas em casa, sentadas ou fazendo tarefas domésticas. Estas pessoas em deslocamento são geralmente registradas de perfil, esteja a câmera parada ou em travelling, enquanto as pessoas em casa são geralmente registradas de modo frontal, por vezes olhando para a câmera, em planos fixos, posados, como em retratos pintados. Esta coleção de pequenos retratos individuais é inserida dentro do retrato mais amplo da região como em uma boneca-russa, uma matriosca.

As cenas de homens e mulheres caminhando na estrada, por vezes na neve, com bolsas e maletas, sem destino aparente, remetem por vezes às icônicas imagens utópicas de trabalhadores feitas pela propaganda soviética – poderiam estar acompanhadas de legendas como “toda a URSS trabalhando em conjunto!” ou “trabalhamos pela pátria-mãe!” –  isto é, se não estivéssemos diante das paisagens reais e o caminho pela frente não parecesse tão extenso e extenuante. Mas o que parece importar, de fato, ao filme, é o perpétuo movimento, são as caminhadas cotidianas sem fim; sua aproximação destas imagens publicitárias não aparenta conter qualquer ironia ou provocação, mas provém justamente de tal abstração.

D’Est não retrata países específicos, culturas em particular, mas a região de modo mais vago, que não é meramente documentada enquanto paisagem, mas construída enquanto imaginário; nesse sentido, não se trata apenas de um registro, mas de um retrato, um balanço entre o que é visto e o que é construído por quem vê. Entre o retrato e o relato de viagem, o registro direto e a encenação, o público e o privado, o movimento e a inércia, o filme incorpora a premissa do deslocamento em sua própria forma. Seu título, “Do Leste”, é estrategicamente abrangente, não especificando tratar-se do Leste Europeu, remetendo assim ao sentido mais abstrato do ponto cardeal.

É interessante pensar, também, essa apresentação de diferentes países enquanto uma massa quase indistinta chamada “Leste” em relação a este contexto histórico específico que D’Est presencia. Vinha ao fim a União Soviética, este estado gigantesco, que englobava as mais diversas culturas; o que viria a se tornar esse território? O filme, afinal, não apenas retrata o Leste Europeu, mas o faz neste momento chave do final do século passado que foi a dissolução do chamado “bloco comunista” ou “bloco do Leste”. Após décadas da Cortina de Ferro, caía o muro literal (em Berlim) e simbólico que separava o continente em dois mundos distintos, facilitando não apenas o deslocamento de pessoas entre países cujas fronteiras antes seriam mais rígidas, mas também as trocas socio-culturais entre estes. Não era apenas um governo ou um modelo econômico que sucumbiam com o colapso da União Soviética ou da República Democrática Alemã, mas todo um modo de vida. É um fragmento deste modo de vida, não uma crítica ou um elogio a modelos econômicos, que o filme de Akerman retrata nesse momento específico, “enquanto havia tempo”, nas palavras da diretora [2]. Há também um sentido de retorno às origens de Akerman aqui, uma vez que seus pais eram judeus poloneses que vieram à Bélgica por conta do Holocausto, o que novamente reforça a compreensão do Leste enquanto um imaginário, fruto de relatos, mais do que uma sucessão de países específicos.

Tão importante quanto o ponto cardeal do título, afinal, é a preposição que o precede, atestando à parcialidade deste retrato, sua mediação condicionada pela experiência [3]. A frase soa como algo pronunciado por um antigo viajante que, após percorrer o continente em um tempo anterior às suas fronteiras, volta para casa e nos conta “do Leste”, em toda sua abrangência – um viajante mais preocupado com impressões do que informações [4]. Distinguimos (às vezes) no filme os diferentes países visitados através de detalhes, como frases escritas em alemão ou em russo pelas cidades. Talvez aquilo que mais manifeste o progresso da jornada seja a evidente passagem de tempo, uma vez que a viagem começa na primavera e logo chega no inverno, o que coincide, também, com a chegada à Rússia, conhecida pelos invernos rigorosos. Também como em viagens antigas, somos guiados apenas pelas estações.

A trajetória de D’Est caminha lateralmente em diversos sentidos. Manifesta-se no registro dos deslocamentos dos passantes, na recorrência dos travellings, e nos outros trilhos invisíveis da jornada de Oeste à Leste, da primavera ao inverno. Mas também há, neste deslocamento, algo de ordem metafórica, caminha-se rumo ao cerne deste modo de vida em dissolução, ao centro cultural e econômico do antigo regime comunista e da Europa Oriental, ao Leste profundo. A ex-URSS é o destino final, o extremo oposto da Europa Ocidental e esta extremidade manifesta-se na intensidade assumida pelo filme no local: a neve não para de cair, as imagens registradas se tornam mais emblemáticas, e são repetidas à exaustão.

Quando chega no que parece ser a Rússia, uma nova modalidade de planos se introduz, ganhando cada vez mais protagonismo: pessoas enfileiradas na neve, aparentemente à espera de algum transporte. O filme as registra com travellings laterais, provavelmente do interior de um veículo como já fazia antes, mas diferente dos planos anteriores, as pessoas filmadas não se deslocam, estão postadas à espera, e as vemos frontalmente enquanto buscam ansiosas com o olhar aquilo que tanto aguardam. Não raro, olham também para câmera com olhares curiosos, incomodados, risonhos. À medida que a câmera se move, revelam-se novos rostos anônimos que se acumulam sem fim aparente.

Estes planos são uma espécie de forma híbrida entre as duas variações mencionadas anteriormente: registrando os rostos destas figuras de maneira frontal, por vezes em primeiro plano, são simultaneamente retratos individuais e travellings que revelam o conjunto, público e privado, movimento e inércia. É então, sob a neve caindo incessantemente nestas filas intermináveis, que a trajetória antes sutil de D’Est parece encontrar um obstáculo; algo em seus trilhos o interpela e o atira a um looping mecânico, reativo. O acúmulo de rostos, a recorrência do mesmo tipo de fila, do mesmo tipo de travelling, submetidos à repetição, formam uma massa cada vez mais abstrata, estirada à condição de uma possível alegoria. Há algo de kafkiano nestas filas infinitas, nessas esperas por algo que nunca chega. A espera cotidiana destas pessoas, tornada eterna pelo filme que nunca revela seu fim, torna-se o tema em si, o “Leste” ganha forma, ganha corpo: o registro em constante movimento deste momento limiar, destas pessoas em situações limiares.

É interessante, então, a dicotomia que se cria entre os ambientes privados e públicos quando chegamos na ex-URSS. Se no início do filme os planos externos pareciam registrar sobretudo momentos de lazer, pessoas na praia, em um concerto a céu aberto ou dançando em um show noturno, à medida que o inverno vai se intensificando e chegamos às cidades russas cobertas de neve, às pessoas com casacos pesados esperando em filas, fazendo compras ou transitando em estações, os planos de interiores com mulheres e famílias brincando, assistindo televisão, cozinhando ou ouvindo música, ganham um sentido de refúgio. Dentro destes abrigos, a vida privada parece ainda mais privada, ainda mais apartada da vida pública, das adversidades das ruas.

É o caso, também, do concerto solo da violoncelista Natalia Chakhovskaia, quem assistimos tocar uma peça do início ao fim, quando recebe flores da platéia, no penúltimo plano do filme. A impressão é de que a verdadeira vida nas cidades russas acontece nesses interiores aquecidos, majestosos ou apenas aconchegantes, protegidos da paisagem cinzenta e movimentada lá fora. São em momentos como este que D’Est consegue vislumbrar algo para além da superfície opaca, monótona e anônima do território soviético no inverno, que retorna com tanta insistência (e também nunca deixa de ser interessante), encontrando pequenas rupturas nesses refúgios.

Enquanto os travellings externos, no frio, filmam tudo que passa diante da câmera de modo quase involuntário, contingente, as filmagens nos interiores implicam em uma participação ativa por parte da equipe produção do filme; mesmo que sejam espontâneas, as pessoas nestes tableaus da vida doméstica estão inteiramente conscientes de sua presença diante da câmera. Não são apenas elas que estão protegidas ali de possíveis adversidades, mas também o filme, que possui então muito mais controle sobre o que registra e o tempo cadenciado dos interiores à sua disposição. Estes momentos funcionam, assim, tanto como pillow shots, pequenas pausas para um descanso da intensidade dos outros planos, quanto como contraponto dialético a estes. Mas estas pausas são breves, e logo depois de assistirmos ao concerto de violoncelo, voltamos a mais um travelling lateral pela cidade e seus transeuntes. O filme termina assim, ainda em movimento.

Paula Mermelstein

Notas:

[1] Margaret Iversen, “The World without a Self: Edward Hopper and Chantal Akerman”. Association for Art History, setembro, 2018. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-8365.12398.

[2] “Sobre ‘D’Est’, Por Chantal Akerman”. Publicado em espanhol pela Revista Lumière: http://www.elumiere.net/especiales/akerman/destakerman.php

[3] Em uma longa análise sobre duas pinturas de Caspar David Friedrich intituladas “Aus der Dresdner Heide” (“Da charneca de Dresden”), o historiador da arte Joseph Leo Koerner comenta como a preposição “da” pressupõe a paisagem representada como uma memória de uma cena, e não uma representação direta desta: “A preposição “aus” [“da”] sinaliza um movimento de distanciamento das origens. Ela extrai as pinturas dos lugares específicos que representam, confrontando o espectador não com a perspectiva imediata da cena na charneca (se fosse o caso, seria melhor chamar as pinturas de “Na charneca de Dresden”) mas sim com uma memória ou imagem-residual [“after-image”] daquela cena.” Em: Joseph Leo Koerner. Caspar David Friedrich and the subject of landscape. 2a ed. Londres: Reaktion Books LTD, 2009. p.17.

[4] Nas palavras de Akerman, em suas reflexões sobre o filme durante o processo, em “Sobre ‘D’Est’, Por Chantal Akerman”: “Eu gostaria de fazer uma grande viagem para a Europa Oriental enquanto ainda há tempo. Rússia, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, a antiga Alemanha Oriental e até a Bélgica. Gostaria de filmar lá do meu jeito documental, beirando a ficção. Tudo o que me afeta. Rostos, fim de ruas, passagem de carros e ônibus, estações e planícies, estuários ou mares, rios ou riachos, árvores e florestas”.