A história dos cantos

“A ordem secreta das coisas se desvela assim pouco a pouco, uma mesma lógica subtende a história e a cerimônia, o mesmo pensamento impõe a lei de suas formas inconscientes à sucessão das palavras e dos gestos, e a velha floresta abriga uma vez mais a celebração fiel de seu encontro”
– Pierre Clastres, Crônica dos índios Guayaki

Ma’e Mimi’u Haw – A história dos cantos (2018), dirigido por Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara e Lemilda Guajajara e produzido no contexto de oficinas de formação audiovisual do Vídeo nas Aldeias, é um curta-metragem que encadeia três atos que dialogam entre si. Podemos considerá-los e enumerá-los, grosso modo, tendo em vista as ações que descrevem: no primeiro bloco, um indígena Guajajara embrenha-se na mata cerrada; no segundo, este indígena faz o trajeto de volta; no terceiro, ele encontra-se reunido com seus convivas na aldeia de onde partira inicialmente. Cada um destes atos é pontuado por um canto tradicional que o andarilho entoa. Seu nome é Tachico Guajajara, professor e pesquisador, e sua jornada coincide com aquela do caçador mitológico a quem se destinou a sabedoria dos cantos. 

Primeiro ato. A cartela inicial do filme, que anuncia seu título, é povoada por sons da mata. Ao canto dos pássaros se somam o zumbido ocasional dos insetos e o cricrilar inconfundível dos grilos. Ainda que o filme não o explicite, estamos próximos da Aldeia Maçaranduba, no Maranhão, área indígena Caru. As primeiras imagens de Ma’e Mimi’u Haw consistem em planos abertos da natureza: céu com nuvens ao amanhecer (ou entardecer), copas de árvores em contra-plongée, troncos de madeira retorcidos e entrelaçados. O vento, invisível, se presentifica no movimento das folhas. Trata-se, sobretudo, de contemplação: a câmera percebe os movimentos e sentidos imediatos da natureza e mantém-se a observá-los. A montagem, por sua vez, encadeia os planos enquanto a edição de som preserva a continuidade da banda sonora entre as imagens. 

Quando da primeira aparição de Tachico Guajajara, a câmera filma em plano aberto uma fração da aldeia Guajajara. O protagonista cruza a imagem e caminha na direção da boca da mata, carregando consigo um facão na cintura e uma espingarda no ombro. O restante do primeiro ato, com exceção da última imagem que lhe põe fim, é conjurado por um longo plano-sequência: enquadrando Tachico frontalmente, a câmera acompanha seu caminhar na floresta realizando um travelling para trás. 

Aparentemente indiferente à presença da câmera, Tachico é filmado por uma equipe de cineastas que, ao contrário, parece tatear suas intenções no momento mesmo da filmagem – chegamos a ouvir, por exemplo, um diálogo entre os realizadores no antecampo, registrado pela captação em som direto. Subitamente, Tachico interrompe sua caminhada e, por consequência, o travelling da câmera. Ele se dirige para os realizadores e anuncia: “Eu vou cantar um canto aqui”. Baixando a espingarda, apoiando-a em uma árvore próxima, ele explica que cantará a música do Tepetepen, a qual – depois saberemos – refere-se ao “dono dos cantos”, responsável por trazer as cantigas aos Guajajara e ensiná-los. Preservando a continuidade do plano, os realizadores aproximam a câmera do rosto de Tachico, que entoa o canto do primeiro ato enquanto observa a mata que se estende diante de seus olhos. A cantoria em primeiro plano encontra os sons da mata, secundários, compondo uma espécie de sinfonia em som direto. 

Uma vez terminado o canto, a câmera toma novamente sua distância de Tachico e ambos retomam a caminhada pela mata. Em seu monólogo, Tachico revela como é triste a vida do cantor. A tradição dos cantos, infelizmente, extingue-se aos poucos como uma chama. Suas palavras são retumbantes: “eu olho ao meu redor e não vejo ninguém se esforçando para aprender”. Pronunciando-as, Tachico se converte, sob nossos olhos, em uma espécie de guardião. Sua cantoria é um gesto de preservação de uma tradição ancestral. 

Dirigindo suas palavras aos realizadores no antecampo, Tachico faz um apelo: “Olha, vocês também tem que aprender para vocês saberem também. Quando eu estiver velho e não puder mais cantar, vocês tem que cantar para lembrarem de mim. Quando vocês assistirem esse vídeo, vocês vão se lembrar de mim. Eu não vou ficar vivo para sempre”. Neste momento, Tachico faz com que as instâncias audiovisuais se convertam, sob nossos olhos, em documento histórico. As imagens e sons se tornam memória no próprio momento da captação, ou seja, na radicalidade do momento presente. Quando o plano-sequência é finalmente interrompido, somos defrontados com um plano geral da trilha na mata, cujo “vazio” é rapidamente preenchido pelo corpo de Tachico, que cruza o interior da composição e ruma na direção do fundo da imagem. Enquadrado de costas, o cantor segue o caminho de terra e distancia-se da câmera. Findado o plano-sequência, a jornada inicial de Tachico ao coração da floresta também chega ao fim: é o término do primeiro ato. Por mais que o caminho sinuoso trilhado por Tachico sinalize para uma saída ou para um “fora da selva”, a imagem seguinte consiste em um plano geral da mata: operando a transição do primeiro ato para o segundo, a câmera próxima ao chão, filmando as copas das árvores em contra-plongée, anuncia que a floresta manterá sua presença imponente no decorrer do próximo ato. 

Segundo ato. Em sua roça, Tachico realiza algumas tarefas. A câmera se aproxima e se distancia como uma observadora ao mesmo tempo atenta e reservada. Uma elipse coloca Tachico sentado sobre um pedaço de pau, defronte inúmeras abóboras, tendo a espingarda encostada ao seu lado. Neste momento, o protagonista cumpre com a promessa de contar a história dos cantos, anunciada no primeiro ato. Os cineastas escolhem filmar o depoimento a partir de duas posições de câmera, que a montagem alterna através de cortes em continuidade. 

Tachico nos conta sobre um antepassado que, certo dia, embrenhou-se na mata para caçar, carregando consigo uma espingarda. Em dado momento, este caçador surpreendeu-se ao perceber que os animais da floresta reuniram-se todos para uma festa. Eram os donos dos cantos, habitantes do espaço entre o céu e a terra: pássaros, rãs, “todos os tipos de bichos” transformados em gente. As cantigas emocionaram o caçador, que não acreditava no que seus olhos viam. Quando a cantoria chegou ao fim e a festa se deu por encerrada, o caçador viu todos reassumirem sua forma animal e irem embora. Um gavião aproximou-se do homem para se despedir, não sem antes lhe entregar a cantoria para que ele a levasse para seus parentes na aldeia. De retorno para casa, tendo aprendido os cantos com os pássaros e cantando sem parar, o caçador viajou por cerca de seis dias. No lugar da caça, o homem trouxe de volta consigo a sabedoria dos cantos.

Em Fortini/Cani (1976), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a voz do escritor Franco Fortini, após enunciar os termos do massacre de Marzabotto, onde centenas de italianos foram assassinadas pelas tropas nazistas, reverbera como um eco semântico sobre os planos das paisagens onde o massacre ocorreu no passado. Os sítios geográficos, de montanhas a vegetações, se tornam assim incrustados por esta História invisível, mas não imaterial. Em Ma’e Mimi’u Haw, as cenas da mata, mediante as palavras de Tachico, também se convertem em espaço habitado por sentidos históricos: é a história dos cantos e dos seres que vemos incrustada na matéria visível. Como quando olhamos por muito tempo para a luz e o ponto luminoso permanece na nossa retina depois que lhe desviamos o olhar, aqui nós também não somos capazes de abstrair das imagens da mata o rastro da voz de Tachico. 

No primeiro ato, as palavras de Tachico tanto o transformaram em um guardião dos cantos quanto incutiram nas imagens e sons uma perspectiva memorial; agora, elas continuam influenciando nossa percepção. A história dos cantos irradia no filme de forma prospectiva e retrospectiva: o sentido das imagens e dos sons, se não subvertido, é tensionado. Esta operação de releitura do filme sob a luz das palavras de Tachico está no cerne de Ma’e Mimi’u Haw

Em primeira instância, as palavras de Tachico fazem as imagens e os sons transbordarem o seu sentido perceptivo imediato. Podemos nos lembrar, aqui, da lição de Mariano Turpo à sua amiga Marisol de la Cadena: “(…) falante de quéchua e um transeunte entre alguns dos mundos que constituem nosso país (Peru) –, ele insistia que o que para mim era (algo que para mim, por exemplo, era uma montanha ou um arquivo) não era apenas isso” (DE LA CADENA, 2018, p. 110). Assim, as imagens seguintes ao depoimento de Tachico serão de copas de árvores, aranhas, casas de marimbondos e macacos pulando em galhos, mas elas não serão apenas isso. Elas serão o verde da mata, o vento açoitando as folhas e uma escala de planos, mas não só. A mata cerrada, por exemplo, não é mais somente mata: ela agora é a morada dos donos dos cantos. Não contemplamos mais apenas o que vemos na imagem, mas também – e sobretudo – o que não vemos

Em outro nível, o depoimento de Tachico é central na sugestão de uma arquitetura narrativa. Suas palavras nos dispõem a considerar que a trajetória do cantor coincide com aquela do caçador que, na história dos cantos, embrenhou-se na floresta e retornou para sua aldeia trazendo consigo os cantos que o gavião lhe entregou. O primeiro ato do filme, assim, é todo relido à luz de seu monólogo: o trajeto de Tachico na mata é a aventura do caçador que, portando sua espingarda, está prestes a se encontrar com os donos dos cantos no boqueirão. O segundo ato do filme, inaugurado pelo depoimento de Tachico, será aquele do retorno do caçador a sua casa. Ao caráter documental do filme, portanto, é acrescida uma dimensão dramática. 

Posteriormente aos planos da mata, voltamos a ver Tachico andando pela floresta. A princípio, a câmera preserva a continuidade do plano para acompanhar o protagonista em sua trajetória de retorno à aldeia. No início do plano-sequência, Tachico está de costas; parado, ele dá um passo para trás como se aguardasse a indicação dos realizadores para prosseguir seu caminhar. Depois, já durante a caminhada, a câmera ultrapassa Tachico para filmá-lo de frente; ele, no entanto, interrompe o passo e, novamente estático, aguarda por uma indicação para retomá-lo. Neste longo plano, a dimensão dramática embebida nas palavras de Tachico se constitui de um traço “ficcionalizante” que, por outro lado, é tensionado na própria encenação: o que vemos, em linhas gerais, é a documentação do próprio processo de ficcionalização (ou encenação) do filme. Ma’e Mimi’u Haw é um documentário, uma ficção? Talvez os dois, mas não só.

Na história dos cantos, o caçador vive “seis dias no mato”. Após o plano-sequência de Tachico caminhando, o filme constrói seu segmento mais fragmentado, como se os cortes na imagem sugerissem elipses de dias. Em dado momento, o cantor se senta sobre um tronco de árvore e anuncia seu cansaço; em outro, utiliza uma folha para beber água do riacho. O trajeto de Tachico, como o do caçador mitológico, é longo e extenuante. Sentado enquanto descansa, ele decide entoar um segundo canto: “Zyriu está aqui / O canto está aqui / É aqui que o canto está sendo cantado para nós”, enuncia alguns dos versos. Nesta sequência, como na outra de cantoria, a câmera mantém a tomada em plano-sequência, aproximando-se do rosto do cantor não somente para ouvi-lo, mas para vê-lo cantar. 

Em dado instante, a continuidade espaço-temporal do plano é suspensa, mas o canto permanece contínuo na banda sonora, enquanto a montagem encadeia imagens da floresta. A cantoria influi sobre os leves movimentos de câmera que descortinam o espaço da mata: a voz de Tachico derrama sobre as imagens sua influência, cobrindo-lhes como um manto de significações inesgotáveis. Influído pelo canto, o tronco de uma árvore, filmado em contra-plongée, não é mais apenas, portanto, o tronco de uma árvore. Já estamos em outro compasso em relação à primeira cantoria, na qual a montagem optava por manter na imagem o rosto de Tachico enquanto este cantava, pois lá os sentidos do canto eram um segredo que pertencia somente a ele. Finalmente, o protagonista, fugazmente captado pelo visor da câmera, se distancia e retorna à sua trajetória de volta à aldeia. O próximo plano, que finaliza o segundo ato e funciona como transição para o terceiro, é um plano aberto que nos revela, do alto, as copas das árvores. Olhando-as de cima, sabemos enfim que abandonamos o coração da mata. 

Terceiro ato. Como previsto na história dos cantos compartilhada por Tachico, o terceiro movimento do filme corresponde àquele da chegada à aldeia. Assim como o caçador que retorna trazendo consigo a sabedoria dos cantos, o protagonista de Ma’e Mimi’u Haw volta para a casa e performa sua cantoria. A noite desaba e os corpos são iluminados pela luz da maloca. Os planos nos revelam os indígenas Guajajara dançando ao som da voz de Tachico enquanto homens e crianças empunham seus maracás. Como no ato anterior, em que o som de seu canto atravessava de forma contínua a montagem que dispunha planos da mata, novamente a voz do cantor percorre em continuidade as imagens rápidas dos indígenas que dançam e brincam. 

No interior da montagem alternada, percebemos e nos detemos especialmente sobre as crianças: elas nos recordam as palavras de Tachico no primeiro ato do filme – “eu olho ao meu redor e não vejo ninguém se esforçando para aprender”. Haverá esperança nas imagens dessas crianças que dançam? “Quando vocês assistirem esse vídeo, vocês vão se lembrar de mim”, dizia Tachico no primeiro ato. Neste momento final, compreendemos: se antes a história dos cantos era a história dos bichos que habitavam a mata, agora ela pertence também aos Guajajara, a quem foi entregue os saberes da cantoria. O terceiro ato, assim, nos aponta para o sentido das imagens e dos cantos, isto é, o sentido para onde tudo afunila e coaduna. A velha floresta abriga uma vez mais a celebração fiel deste encontro.

Surgem os créditos. A imagem some, mas o canto permanece. 

Luiz Fernando Coutinho

Referências:

DE LA CADENA, Marisol. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 95-117, abr. 2018.