A maravilha do acaso

Em todo caso, não confie assim na primeira pessoa que encontrar”

É isto que François ouve de Lucie, garota que conheceu de sopetão em um ônibus, quando ela ainda compra a ideia de que ele seria um detetive. Evidentemente a recomendação é válida, mas jamais incorporável para o tipo de filme que Éric Rohmer faz em La Femme de L’Aviateur, em que o acaso impera sobre qualquer tipo de minúcia pré-definida, desde seus desenrolos narrativos até sua mise-en-scène.


Inaugurador da série “Comédias e Provérbios”, o filme é inspirado na máxima “é impossível parar de pensar”, que comenta sobre o caráter de pensamento especulativo dos personagens que, quase sempre envolvidos em situações amorosas, têm a imaginação elevada ao extremo, tornando-a suscetível ao passo que até mesmo o menor detalhe que se apresente a cada passo que a narrativa toma é capaz de inflar ainda mais o estado de teorização excessiva por parte deles. Esse comportamento, presente também em outros filmes do conjunto, caracteriza então uma certa homogeneidade entre eles e permite diferenciar as ‘Comédias’ da série predecessora de Rohmer, “Contos Morais”: lá, os personagens não parecem tão abertos às imprevisibilidades que surgem, mas sim presos a alguma teoria por eles elaborada e que é defendida do início ao fim (Le Genou de Claire é um exemplo muito claro), de modo completamente oposto ao que o provérbio que La Femme postula. Há, também, uma diferença que se dá no próprio registro fílmico, de teor muito mais próximo do documental, tanto pela maneira de filmar quanto pelos locais onde toma parte a ação.

A trama se apresenta quando François, um estudante e trabalhador, deixa o plantão noturno do trabalho e decide entregar um bilhete à sua companheira, Anne, cujo complicado relacionamento logo se revela quase platônico. Sem conseguir deixar o recado, ele sai e, ao voltar, flagra-a com o aviador Christian, um ex-namorado dela que havia sumido. No almoço, após procurá-la “por todos os cafés do bairro”, como o próprio diz, ele encontra a garota e a confronta sobre o flagra, sendo imediatamente dispensado. Já dissuadido de continuar a importunar Anne e pronto para viver o dia propriamente, ele logo vê o tal rapaz sentado num café e decide segui-lo, sendo instigado principalmente após uma moça desconhecida se juntar a companhia de Christian.

Desde o começo, Rohmer experimenta com as decisões narrativas completamente casuais que são tomadas: François apenas tem a visão de Anne e o aviador saindo juntos do apartamento por não ter tido tinta na caneta para deixar o recado mais cedo – o fato gera até uma pequena gag, já que Christian chega de táxi à esquina do prédio da moça no exato momento em que François vira para ir à papelaria, evitando um possível confronto por questão de detalhes. A própria investigação que toma conta do filme se inicia por um mero vislumbre de susto que o rapaz tem do aviador, quando fazia uma passagem corriqueira por seu local de trabalho, e que resulta na tomada de decisão de acompanhá-lo completamente por impulso.

Se essa sucessão de eventos esporádicos lembra (por que não?) algo de natureza onírica, o filme faz questão de brincar com isso a partir da perspectiva de seu protagonista, exausto do pós-labor: o próprio François admite, conversando com Lucie, já não saber mais se está acordado ou sonhando. Quando se senta no café após encontrar o aviador, logo cai no sono e um efeito de íris em direção ao seu rosto fecha o plano. Em seguida, quando o mesmo efeito abre a imagem, algum tempo se passou (jamais sabemos quanto cada elipse omite; o filme é toda uma trama de, provavelmente, 12 horas diegéticas condensadas em quase 2 de duração). O aviador agora tem a companhia de uma loira misteriosa, e aí se inicia a trama de perseguição, quase como num indício de que fora preciso ele dormir, e então sonhar, para que a situação, por si só já interessante, ganhasse contornos ainda mais envolventes.

Acompanhando esta perseguição, o filme imbui em seu registro uma natureza documental. A despeito de algumas cenas filmadas em interiores mais reservados (apartamentos, principalmente), toda a ação passa a se desenrolar por locações como parques, ônibus e cafés, aproveitando-se da espontaneidade emergente desses lugares. Similar à essa lógica de acontecimentos ocasionais que tem o filme, também se mostra livre a forma que o diretor escolhe para capturar esses momentos, não se fechando em uma rigidez sobre como abordar as cenas. Em um diálogo, por exemplo, não há uma limitação a tradicional convenção de campo e contracampo, mas sim uma liberdade da câmera para se perder nas expressões de cada personagem, por vezes deixando o declamador no fora de campo e assim tornando a filmagem da conversa mais solta, quase “irregular”, mas de uma irregularidade totalmente coerente ao método aplicado por Rohmer durante o filme. Se é possível falar de alguma “regra” no que concerne à decupagem aqui, ela parece ser muito simples: estar aberto ao que se apresenta à câmera nos espaços de Paris.

Durante uma longa cena na beira do lago com François e Lucie, enquanto ambos observam o casal à distância, frequentemente há uma intercalação com planos de pessoas comuns que olham para as câmeras – idosos e crianças, por exemplo. Esses planos, que operam um corte bruto em longos diálogos travados pelos personagens principais, não aparentam estabelecer qualquer relação anterior ou posterior de continuidade com a conversa que acompanhávamos, a não ser pelo som em off das vozes que é preservado. Como se já não bastassem a fotografia natural e a ambiência sonora jamais cessante, Rohmer acha, no meio do diálogo, espaço para nos lembrar da vitalidade daqueles locais onde toma lugar a ação. É o atestado de sua abertura ao acaso que se dá não só na diegese, mas também na realização, como se, no meio de toda uma filmagem objetiva, fossem necessários 3 ou 4 takes para capturar algo fora do script e desanuviar mais ainda o filme de sua carga ficcional, incorporando nele um verdadeiro documento da cidade.

É em Lucie, essa personagem tão predisposta à aventura (e que poderia ser confundida mesmo com uma figurante em sua primeira cena no ônibus), que parece se manifestar mais intensamente uma marcante característica do cinema de Rohmer, que são seus diálogos. O trabalho feito aqui aproxima em muito o filmedo ápice de espontaneidade vista em outra obra de ‘Comédias’, Le Rayon Vert (1986).A todo momento, a menina instiga o protagonista a comentar sobre essa situação investigativa, o relacionamento com Anne e sobre ele mesmo, em uma troca inesperada e quase absurda de tão frutífera para dois desconhecidos. A palavra aqui jamais se esgota, mas sempre renova a narrativa e lhe mantém de pé: em certo momento, François ameaça cair no sono novamente e Lucie acorda-o, sem deixar a peteca que segura o ritmo cair, mantendo a conversa viva a todo tempo. Logo se percebe que o casal, outrora foco da investigação, já não representa mais a pedra angular da situação: virou mero pretexto. O lance todo que se segue é muito mais pertinente ao interesse aparentemente mútuo que se desenvolve entre ambos.

O final do filme, então, amalgama todo o sentimento de acaso – e também de fracasso amoroso, como não poderia faltar em Rohmer – que lhe é tão caro. Ao ir até a casa de Lucie para entregar-lhe uma carta, contando-a sobre a suposta verdade que finalmente descobrira, através de Anne, sobre o aviador e a moça (irmã ou amante, nesse ponto o fato já não parece mais importar tanto, nem a ele e tampouco a nós), François descobre que o namorado dela, cuja pista de identidade fora, por coincidência ou não, bem escondida durante todo o tempo que passaram juntos, é seu colega de trabalho nos correios, que até então tinha tido uma participação ínfima na trama. Se mais uma vez a coisa toda remete a um sonho, esse desfecho seria então o ápice, a hora derradeira em que o prazer, o familiar e a estranheza se chocam e o sonhador finalmente acorda. Se ainda não põe em prática o modelo dos filmes posteriores de “Comédia e Provérbios” em que o plano final é exatamente igual ao primeiro, La Femme de L’Aviateur termina, pelo menos, com o mesmo sentimento e situação: o flagra seguido da desolação. Tendo sido necessário um dia todo de perambulação por Paris e mais uma desilusão amorosa, é provável que, dessa vez, François finalmente pare de pensar.

Davi Braga