“Regra 34” (2022), de Júlia Murat, acompanha Simone (Sol Miranda), que faz transmissões pornográficas ao vivo pela internet para espectadores que a acompanham com regularidade e interagem com ela no chat. O filme se inicia ao mesmo tempo de uma destas transmissões e toda a primeira cena é vista em formato de desktop, tal como se os espectadores do filme também estivessem presentes no site. Ao mesmo tempo, surgem na tela os avisos em inglês das metas financeiras alcançadas por Simone na transmissão, que “desbloqueiam” novas ações que ela deverá fazer.
Simone está prestes a se formar na faculdade de Direito, ao mesmo tempo que trabalha na Defensoria Pública, atendendo a mulheres que relatam casos de violência doméstica. Com frequência, a veremos em aulas de Kung Fu junto de sua amiga Lúcia (Lorena Comparato) e conversando por chamadas de vídeo com Nat (Isabela Mariotto), que também é camgirl. No núcleo do Direito, seu amigo mais próximo será Coyote (Lucas Andrade), que desempenhará um papel fundamental nesta narrativa, sempre centrada na figura de sua protagonista. Veremos uma rotina em que as personagens se mudam de apartamento, frequentam festas e bares, e consomem pornografia como motivo de diversão em conjunto. Além disto, sua amizade tem certa conotação fluida, confundindo-se com a parceria sexual em diversos momentos – logo no início haverá um ménage entre Simone, Coyote e Lúcia.

Desta última, Simone recebe um vídeo que a intriga e voltará a ver em diferentes momentos. Nele, uma mulher dá tapas no rosto e puxa os mamilos de outra, em submissão, que sorri e grita de prazer. O sexo mostrado não apenas foge das convenções e controle de práticas mais conhecidas, mas seu apelo distinto está no próprio registro da imagem, sem uma iluminação artificial evidente e como que filmado por um celular, dados que implicam um senso de “real” ainda mais impactante. Há algo que diz respeito a um “amadorismo” na textura de baixa resolução desta e outras imagens que corresponde ao erotismo ou à excitação desejada pelo espectador da pornografia, como se isso denotasse ir ao encontro de um real bruto, que estaria também na imagem texturizada da webcam de Simone, em oposição a imagem profissionalmente polida do filme.
Neste sentido, o impulso de ver algo que não passa pelos mecanismos de representação convencionais também moverá os pedidos do público de Simone, que não se satisfaz em ver encenações já naturalizadas e exige que ela recorra a asfixia erótica. O pedido pela transgressão força Simone a buscar novos modelos para sua performance, encontrando uma perspectiva no vídeo antes assistido. O que acompanharemos, então, será o seu aprendizado a respeito do universo BDSM, na exposição de uma perversão jamais resumida em termos facilmente classificáveis, deixando de lado qualquer motivação psicológica para tanto. O sadomasoquismo, para Simone, apresenta-se como um jogo de regras pré-existentes, que tem as suas delimitações controladas e que, em certa medida, chegam até mesmo a se associar às formulações do Direito, em seu vocabulário formal, como é o caso do termo chave “consentimento não-consensual”, que surge em uma de suas pesquisas.
A relação entre o entendimento conceitual do sadismo e a sua manifestação em ação concreta é um tema central no filme, explorado inclusive a partir da montagem que contrasta os depoimentos encenados de violência sexual contra mulheres e a violência a que Simone se submete e inflige. Esta tensão está sintetizada no diálogo de Simone com Lúcia, quando a protagonista é criticada pela amiga por seguir comportamentos direcionados por uma indústria sexista. A resposta de Simone será demonstrativa da ambiguidade latente entre seu desejo sexual e sua consciência social: “Eu sinto muito se meu tesão não é suficientemente político para você”.

Algo nesta frase chama a atenção para certo desequilíbrio no filme: a formalidade em sua formatação parece contradizer a maneira casual como é proferida, destoando em relação a fluidez e coloquialismo restante, que se estrutura na preservação de cacoetes cotidianos. Falo da incoerência entre o texto escrito, a direção de atores e a própria composição da imagem, como se houvesse uma disparidade entre o tratamento do que é a composição do discurso e a maneira como ele é posto em prática, tal como ele é registrado pelos planos do filme ou pela profundidade a que ele se detém para explorar os seus conflitos. “Regra 34” trabalha sobre uma temática de puro apelo visual, mas a explora por um caráter discursivo, expondo didaticamente os tensionamentos entre a prática e o discurso relacionados ao sexo e à política. Não há uma tradução plástica mais evidente de sua ousadia temática e, sob este modelo, suas personagens são resumidas a veículos para o texto, acima de presenças físicas na tela.
A censura de Lúcia a Simone tornará claro de que modo o sexo entre as personagens decorrerá de um acordo entre as partes, cujos limites se associarão às discussões do Direito em sala de aula entre Simone e seus colegas de turma. São debates que se dividirão apenas em dois lados, sem maiores complexificações, em uma cisão que se manifesta por um grupo formado em maioria por estudantes negros, dentre os quais Simone, Coyote e Janaína (Dani Ornellas), e outro apenas por brancos, implicando a primeira instância de uma questão racial no filme. A princípio, o grupo de Simone defenderá leis mais estritas como uma medida de defesa da população, ao contrário dos demais, que prezam por uma flexibilização destas leis.
As escolhas formais adotadas para abordar as situações de conflito demonstram a maneira dramaticamente superficial em que este debate será explorado e como mesmo a composição das imagens apenas reforçam o apelo discursivo do filme. Seus planos delimitam o espaço das personagens e as composições individuais ou em conjunto definem a oposição ou a harmonia entre as figuras, seja entre o professor e os alunos (também entre si) ou entre Simone e as mulheres que atende. É significativo que a maior parte das cenas tenha apenas um plano ou que a montagem aconteça apenas em relação a um embate direto entre personagens, valendo-se de campo e contracampos que reforcem as suas falas ou reações, nunca no estabelecimento da cena sob noções espaciais ou por outros efeitos de construção dramática: o centro da cena é sempre o texto falado.
No âmbito da estrutura narrativa, a busca de Simone por uma maior intensidade em suas performances diz respeito somente a um conflito interno da protagonista, sem se manifestar em desdobramentos concretos, mas apenas sugerindo o que se passa no seu interior. As personagens secundárias funcionam de apoio para ressaltar as características de Simone ou impor limites a ela, sem que tenham suas histórias melhor destacadas ou que as ações da protagonista reverberem em si – mesmo os pequenos conflitos que irrompem entre Simone e seus amigos são rapidamente resolvidos, sem maiores consequências.

A fim de aconselhar a amiga sobre o perigo da autoasfixia, Nat viajará de São Paulo ao Rio; ao fim de sua passagem, entretanto, a discussão não será levada a cabo e o conflito é suprimido. A principal interação individual entre elas se dará logo após a sua chegada, em uma cena que se apresenta sob aspecto de tableau: em um quintal, Nat está sentada em uma cadeira e pinta as unhas dos pés de Simone, que estende as suas pernas, sentada em outra cadeira. Ao longo deste plano, não veremos qualquer movimento significativo, seja num desdobramento das relações no diálogo ou do movimento literal das personagens ou da câmera na cena. A imagem nos é oferecida como se fosse apenas a ilustração de um único sentido a ser imediatamente deduzido de sua interação, no caso a intimidade entre elas, traduzida por compartilharem a mesma ação e por cantarem juntas a música que escutam – “Cachorrinho” de Kelly Key, em cuja letra pode-se perceber também um comentário sobre relações de dominação, associadas no filme ao BDSM.
Há outra cena, em especial, bastante representativa deste tipo de construção: Simone está sentada na cozinha, descascando uma cebola e, assim que termina, ela a encara e decide mordê-la. Esse gesto antinatural é representativo de uma transgressão da personagem, mas a cena nada esclarece quanto a suas motivações, apresentando o gesto de maneira abrupta, sem um contexto maior em que se insere. O que temos é apenas a manifestação mais direta do impulso de Simone, como se se tratasse de certo comportamento animalesco e instintivo que a câmera registra a uma distância segura. É esta distância, que reforça o exotismo do comportamento da personagem sob uma disposição analítica, que configura mais propriamente o “naturalismo” desta representação, de acordo a aplicação literária conhecida do termo.
Não há nada que aponte a necessidade de dinheiro da personagem, que parece ser mais uma motivação para que ela faça o que já deseja fazer, como uma espécie de revolta contra os avisos das outras personagens, um estímulo para convencer a si mesma e seguir adiante. Simone continuará a explorar os limites até ser banida do site de transmissões por violação de conduta. Após algum tempo afastada, ela irá receber o contato de um destes espectadores em particular, apropriadamente chamado de Mr. Cock – afinal, sua sexualidade é o único elemento que o define. Então, ela dobrará sua aposta, aceitando fazer uma performance privada para o homem, pela qual receberá mais do que normal.

Após ensaiar por diversas vezes a apresentação desta sequência, nas cenas breves em que vemos Simone se asfixiar na cozinha ou em transmissões, o filme também dobrará a aposta a partir daqui Ainda que a postura da câmera seja semelhante a de outros momentos, nesta sequência deixa-se de se referir a uma intencionalidade retórica e abandona o texto a favor de algo que não pode ser traduzido por palavras, recorrendo por uma longa duração a um modelo de representação distinto. A transmissão se inicia sob a textura das imagens da webcam, segurada em uma das mãos por Simone, enquanto ela introduz os dedos da outra na boca de Coyote. Depois, retomando o registro habitual em câmera fixa, passa ao seu enforcamento em conjunto e termina com as provocações usando um caco de vidro, em um jogo que se torna cada vez mais perigoso, sob um sentido de progressão e aprofundamento dos efeitos internos que o filme não alcançará em outros momentos, quando recorre a cenas dramáticas.
Ultrapassando a estreiteza dos diálogos a partir de um aspecto puramente performático, outro tipo de relação ocorre, na qual tememos pelos atores, acima de suas personagens. Para além dos conflitos da cena não dizerem respeito a condução da narrativa, caracterizando-a como pura mostração, o que os atores desempenham até pouco antes do fim da sequência não diz mais respeito a interpretações, mas a ações que encontram um fim em si mesmas. Estas imagens chegam até nós como registro de ações espontâneas, que parecem transcorrer pela primeira vez no momento da filmagem e o conceito de encenação é mais complexo porque é difícil de determinar o seu grau factual, embora pareça exigir uma preparação delicada a priori.
Entre Simone e Coyote, tudo permanece como mera encenação, ainda que corram o risco de perder o controle, quando uma disputa se dá entre os dois pelo caco de vidro: Coyote, por fim, acaba por tomá-lo das mãos de Simone, que neste momento parece ter entrado demais na fantasia e ameaçado de fato a integridade dos dois. Ao mesmo tempo que a iminente perda de controle das personagens surge como conflito que liga os espectadores de volta à narração de uma história, o que torna a sequência instigante é, ao contrário, a maneira como o filme permite deixar de lado o seu próprio controle, ultrapassando o tratamento ordinário da linguagem ao propor uma atuação radical. Neste momento, o aspecto mais funcional da decupagem encontra bom uso ao apenas ressaltar as ações, dotadas de uma impressão de realidade que é motivo do temor.
O espectador de “Regra 34” pode se questionar, entretanto, se o que vê também é apenas pornografia, como se estivesse nas mesmas condições de Mr. Cock e fosse apresentado também ao sexo destituído de qualquer contexto narrativo. A dedicação a esta sequência e às demais cenas de asfixia, sob um sentido de pura mostração, fazem pensar em um evento extraordinário ao qual o filme se detém, identificando nele um exotismo. “Regra 34” não se dispõe a exibir mais nada sob a mesma duração, o que nos faz pensar que reconhece na performance também um espetáculo. No entanto, é preciso considerar que tudo o que vemos são atores que se cortam, mordem, queimam, enforcam, cujo maior indicativo de sexo é apenas a sua ofegância conforme a cena progride. Para a maior parte dos espectadores, somente é possível enxergar na sequência um caráter sexual pelo caráter didático com que o filme ensina a ver a questão, conforme Simone também aprende a respeito. Neste sentido, o recurso da trilha sonora de música eletrônica, que lentamente se acelera nas cenas de sexo, também é essencial ao filme, ao dotar a cena um dinamismo e um aspecto sedutor distintos que a rigidez dos planos não dá conta, “embalando” seu espectador.

Em paralelo no desenvolvimento do filme, acompanhamos a rotina de trabalho de Simone na Defensoria Pública, atendendo a mulheres vítimas de violência doméstica, cujos relatos constituirão uma abordagem dramática particular, em que a narração das histórias se fará de maneira concisa, distinta da diluição da história de Simone no filme. Em um destes depoimentos, a mulher não denunciará uma violência direta contra si, mas as restrições que seu marido impõe ao seu desejo de buscar uma formação profissional. Simone e seus companheiros de trabalho organizarão uma reunião para discutir a questão com o homem, procurando esclarecer a ele em termos amistosos de que modo este controle fere os direitos de sua companheira. Algumas sequências depois descobriremos que o homem, frequentador exemplar da igreja local, voltará a beber após a reunião e agredirá sua esposa pela primeira vez na vida, como se a mera atitude de buscar ajuda institucional fosse para ele motivo de humilhação, pois o limite de sua autoridade patriarcal também teria sido ultrapassado.
O fracasso ao lidar com este caso profissional abalará Simone e será, talvez, o motivo pelo qual suas atitudes a seguir demonstrarão um cinismo cada vez maior. Em uma das sequências finais, durante uma simulação de audiência dentro da universidade, ela se posiciona a favor de um réu por estupro, defendendo a sua inocência por um argumento em que o considera como vítima da sociedade. Tornar-se advogada de defesa de um crime hediondo é, de algum modo, explorar os limites éticos do exercício de sua profissão e, neste ponto, “Regra 34” deixa claro que pretende se afastar da moral de sua protagonista. A isto se segue a formatura de Simone na faculdade, encerramento de parte de sua formação que o filme acompanha: a outra parte, como podemos presumir, é o sexo fora dos mecanismos de controle que a produção das imagens garantiam à personagem. Voltando para a casa, Simone entra em contato novamente com Mr. Cock, combinando um preço para que ele venha até ela na mesma noite. Se, a princípio, a protagonista havia defendido leis duras dentro dos processos penais, ao fim a sua postura é completamente distinta: a única regra que ela impõe é que não haja nenhuma regra.
O filme se encerrará com dois planos que representam a expectativa por este encontro. No primeiro, após ouvirmos as pancadas violentas na porta que anunciam a chegada do homem, veremos através de um vidro fosco, que transforma em mancha a figura por trás dela, apenas a cor branca de sua pele e sua tentativa de enxergar o que há dentro da casa. No segundo, um primeiro plano de Simone em reação ao que vê, partindo de uma expressão de angústia para esboçar um sorriso malicioso, ao final. Dois planos em que, a princípio, o sentido das aparências é velado e a incerteza potencializa o drama, seja pelo vidro turvo da janela ou pela mudança na expressão de Simone. Pela primeira vez, o suspense não é criado pelo temor aos atores, mas pelo tensionamento das imagens, quando a montagem melhor funciona na criação de um efeito cênico. Conceitualmente, esta relação imediata implica a possibilidade de que ao Simone abrir à porta, um conflito ainda mais particularmente delicado poderia haver, com a possibilidade de que uma ação violenta contra esta mulher negra seja cometida por um homem branco, no que seria também um limite das questões raciais antes abordadas.
Ao interromper-se no momento em que Simone está prestes a ultrapassar esta última fronteira, o filme sugere que enquanto a protagonista não abre a porta ela permanece tendo total controle da situação, como quando apenas produzia suas imagens. No entanto, é justamente por este controle não mais existir que esta última sequência poderia resultar no mais importante conflito exposto pelo filme, uma vez que ao também dirigir-se a um caso de prostituição e não mais apenas de pornografia, todo a noção de controle que a personagem parecia ter antes passa a ser questionada. “Regra 34”, mais uma vez, retém o problema a um conflito interno de sua protagonista e se preserva tanto de uma complexidade dramática – pelo esforço que seria caracterizar este novo personagem e a nova condição de Simone – quanto de uma complexidade moral – pelo modo como a cena poderia decorrer a partir disto – que a representação deste ato final implicaria. Negando o desafio, o filme termina em termos mais amenos, como se os dilemas morais que poderiam ser explorados fossem passados adiante, deixados para o espectador e para além do filme. Abafando os novos termos instaurados neste final, “Regra 34” perde uma grande oportunidade de provar que também está disposto a ultrapassar seus próprios mecanismos de controle, reservando apenas à sua protagonista o desejo de ir além na aventura que forjou para si.
Matheus Zenom