“O cinema só pode fixar. Se houvesse outro ponto de vista, a unidade perdia-se […]. O cinema não pode ir além do teatro, só pode ir sobre o teatro”
Manoel de Oliveira
Quais são as relações possíveis entre o cinema e o teatro? Em seu texto de 1966, “Film and Theatre”, Susan Sontag elenca as mais diversas aproximações e contrastes entre estas duas formas de representação. Sontag inicia o texto afirmando que, em determinadas concepções da história do cinema, estudiosos enxergam a evolução da arte cinematográfica como a constante emancipação das formas teatrais. Desta maneira, podemos entender que para quem enxerga a história do cinema desta forma, os primeiros cinemas estariam mais perto das formas do teatro e, conforme o cinema desenvolve-se ao longo do tempo, estas semelhanças entre as duas artes estariam cada vez mais esparsas. A “evolução” do cinema seria, consequentemente, um afastamento gradual deste tipo de representação, um afastamento gradual da teatralidade.
E o que seria a teatralidade no cinema? Segundo Sontag, em relação aos primeiros anos do cinema, poderíamos afirmar que seria justamente a presença constante de uma frontalidade e rigidez da câmera (a câmera parecia buscar uma imitação da sensação de se estar sentado em uma fileira na sala de teatro) e de uma atuação repleta de gestos “exagerados”. Contudo, resumir a teatralidade a estas características seria extremamente reducionista, visto que as conexões entre estas duas artes são muito mais complexas do que estas características do primeiro cinema. Até porque, se pensarmos nos filmes dos Lumière, dificilmente encontraríamos a tal da câmera posicionada no fosso teatral. Não dá para afirmar que todo o cinema, em seus primórdios, possui este tipo de ligação com o teatro. Agora, se pensarmos no cinema de Georges Méliès, podemos encontrar aos montes estas duas características apontadas por Sontag.
Inclusive, interessante é pensar na dicotomia seminal ente Lumière-Méliès. Poderíamos considerar os filmes dos dois em diâmetros opostos do início da arte cinematográfica. O cinema de Méliès, como já dito, estaria muito mais próximo do teatro por estar focado no artifício; Lumière, por sua vez, faria um cinema que nada teria de teatral, justamente por não buscar o desenvolvimento de um artifício, e sim de uma espécie de documentação da realidade. Aí está outra diferença fulcral entre as duas formas de arte. Difícil é pensar em atos que não sejam encenados no teatro, ousaria dizer que é praticamente impossível. O teatro nunca teve a pretensão de captar a “transitoriedade da realidade”. No cinema, por outro lado, a não-encenação é um dos pontos principais de uma ontologia cinematográfica, caracterizada pela ideia da câmera estar captando eventos do mundo. O cinema dos Lumière, por estar focado nesta documentação do mundo, seria, portanto, menos teatral do que o cinema de Méliès?
É impossível, novamente, realizar esta generalização, pois existem filmes dos Lumière que são compostos por uma encenação, como por exemplo em L’Arroseur Arrosé (Louis Lumière, 1895), um dos primeiros filmes cômicos da história. É impossível afirmar que os Lumière estariam preocupados, aqui, em documentar os eventos do mundo real. Eles estariam preocupados, justamente, em desenvolver uma gag, em compor uma encenação que provocasse o riso do espectador, ou seja, seria um filme preocupado com o artifício, tal qual Méliès, apesar dos resultados completamente diferentes entre si. Poderíamos considerar L’Arroseur Arrosé um filme teatral por buscar algo diferente do documento? Ou sua teatralidade estaria no fato de ter a tal “rigidez da câmera” e um certo “exagero nos gestos”?
A designação do cinema como uma arte preocupada com a realidade e a do teatro enquanto uma arte focada no artíficio é completamente frágil: ambas as formas de arte possuem características tanto de documentação quanto de artificialidade. Não seria, portanto, somente a partir desta dicotomia que caracterizaríamos as diferenças entre o cinema e o teatro. Podemos, inclusive, ver como estes dois tipos de arte se retroalimentam desde a criação do cinema. Não seria possível pensar em como todas as formas de arte se influenciam umas às outras? A intermedialidade entre as artes seria um de seus elementos essenciais.
Sontag afirma que pode enxergar duas posições radicais em relação à arte: uma delas estaria buscando pela arte total, a quebra da fronteira entre os media, uma amálgama completa; a outra, por sua vez, delimitaria rigorosamente todos os tipos de artes, isto é, a música deve fazer aquilo que pertence à música, o cinema aquilo que pertence ao cinema, o teatro aquilo que pertence ao teatro… Estas posições seriam, portanto, irreconciliáveis. Sontag afirma: “What’s important is that no definition or characterization of theatre and cinema, even the most self-evident, be taken for granted.”
Esta aproximação entre os mais diversos media e, no caso deste texto, entre cinema e teatro, é inerente à existência destes tipos de arte. Contudo, há obras de arte em específico que buscam conscientemente uma aproximação do seu media de preferência com outro em específico, que buscam uma relação com outro tipo de representação, que pensam a intermedialidade como o cerne na construção de suas obras de arte.
Tendo a pensar que poderíamos afirmar que um filme é “teatral” somente se ele estiver conscientemente buscando esta aproximação, se o filme acredita que a teatralidade seja essencial para a construção de sua realidade fílmica: Manoel de Oliveira é um belo exemplo. É um cineasta que ao longo de sua carreira sempre relacionou-se profundamente com o teatro. A intermedialidade, em Oliveira, parece ser um desejo constante: esta ligação com o teatro existe em vários de seus filmes, como por exemplo em Acto da Primavera (1963), Benilde ou A Virgem Mãe (1975) e Mon Cas (1986). No caso especial de Benilde, João Bénard da Costa afirma que “é sobretudo a partir de Benilde que Oliveira reflete o seu famoso axioma sobre a inexistência do cinema ou o da sua exclusiva existência como meio-audiovisual para fixar o teatro”.
A radicalidade do estilo de Oliveira chega a englobar, segundo Bénard da Costa, o conceito de inexistência do cinema em contrapartida a fixar o teatro cinematograficamente. O cinema seria uma representação que se dá, prioritariamente, por meios teatrais. Apesar de anteriormente, em sua carreira, já ter investigado as fronteiras entre cinema e teatro, é em Benilde que esta discussão começa a se complexificar. Oliveira, a partir deste filme, parece querer fixar o teatro de maneira mais incisiva. A maneira como o filme começa diz muito respeito à ligação intermedial que Oliveira irá estabelecer com o teatro, depois, ao longo de toda a sua obra. Na introdução do filme, exploramos os interiores de um cenário de peça de teatro, revelando justamente o que há por trás da encenação que acompanharemos ao longo da da obra:

Enquanto os genéricos acontecem, a câmera, ao longo do percurso, comporta-se pelo espaço de maneira absolutamente investigativa, buscando expor a construção do cenário através de seus meandros. É assim que Oliveira começa a explicitar de maneira contundente a conexão do cinema com o teatro: há ainda o travelling para trás que encerra o filme, que expõe, mais uma vez, o que há por trás do cenário.
Além de ligações com o teatro, há filmes nos quais Oliveira cria um vínculo intermedial entre cinema e literatura, como por exemplo Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981) e, ainda, um filme como Os Canibais (1988), construído a partir de uma conversa com a ópera. Qualquer um destes filmes seria interessante para pensar nas aproximações realizadas por Oliveira com estes respectivos modos de representação, mas a relação estabelecida com o teatro em “Le soulier de satin” me parece o caso de intermedialidade mais complexo da carreira do diretor, justamente por esse diálogo ser tão essencial às características principais da obra.
A adaptação da peça “Le soulier de satin” parece vir de um desejo de buscar a aproximação existente entre o cinema e o teatro, em um desejo puramente intermedial da parte de Oliveira, de tentar transmitir para o cinema características que lhe fascinaram na peça de Paul Claudel: “achei interessante fazer um filme com uma enorme riqueza de texto; riqueza que não toquei, já que filmamos na língua original, em francês, pois Claudel era um escritor extraordinário, com uma linguagem riquíssima, muito particular, eu diria quase impossível de traduzir para o português”.
A opção de manter o texto original de Claudel evidencia ainda mais o desejo de manter o espírito da obra original em sua adaptação. Oliveira opta por realizar o filme em sua língua original, o francês, sem dublagens de nenhum tipo. Inclusive, a ideia seria justamente não realizar somente uma adaptação, mas uma obra que estivesse inexoravalmente ligada ao texto e às formas teatrais, justamente por acreditar que a transposição desta obra para o cinema seria somente possível através deste vínculo. Sobre isso, Oliveira afirma:
“Fui correndo buscar uns exemplares do romance, e a livraria Lello, do Porto, tinha apenas três. Exatamente o que me convinha. Comprei os três livros. Guardei um deles intacto e rasguei página a página dos outros dois, colando-as num bloco de folhas tamanho “A4”: a frente numa folha e o verso em outra, até terminar. A família Claudel dizia-me: “Aceitamos ceder os direitos de imagem, mas com uma condição: ver a decupagem”. E eu respondi: “A decupagem já vocês têm em casa, é o livro do vosso pai, como tal”. Porque eu segui o livro, e tudo quanto estava no livro passou a ser dito no filme, o que o levou a ficar com sete horas de duração”.
Não há, em Oliveira, uma subtração de aspectos da história para enquadrá-la na forma fílmica, como é tão comum em adaptações para o cinema. A materialidade da obra de Oliveira com o texto original é essa: a decupagem é feita a partir das páginas do livro, nada a mais, nada a menos. Essencial pensar no gesto de Oliveira de “reconstruir” o livro de Claudel, rasgando-o e depois colando em folhas A4. Há uma ideia de “reconstrução” da obra original que seria justamente o motivo central da criação do filme “Le soulier de satin”, em sua busca por concretude, ao colar literalmente as páginas do livro às páginas do roteiro.
Neste sentido, a partir do caráter integral da transposição do texto original para o cinema, a passagem do tempo, essencial para pensarmos a fruição da obra pelo espectador, chama a atenção em “Le soulier de satin” por sua longuíssima duração, dada por esta mesma integralidade de transposição, reforçando o vínculo do cinema com o teatro.
Oliveira estabelece, logo no início do filme, a ligação diegética entre a sua obra e a obra de Paul Claudel, de maneira muito contundente. A cena inicial de “Le soulier de satin” (assim como a introdução de “Benilde“) é essencial para entendermos como esta ligação se estabelece em seu início e permanece existente ao longo das sete horas de duração do filme. Na verdade, a câmera funciona de maneira muito similar nos dois filmes: vasculhando, com curiosidade, o espaço que retrata. É uma câmera que deseja entender o que está filmando, indo em travelling para frente e para trás, em panorâmicas para um lado e para um outro e para cima e para baixo (“a câmera traça […] o Sinal da Cruz”), investigando a arquitetura da cenografia (no caso de “Le soulier“, da entrada, das escadarias, do palco e da sala onde a peça de teatro ocorre; em Benilde das partes ocultas do cenário da peça, do que há por trás), buscando entender as partes constituintes destes espaços específicos do teatro: a câmera cinematográfica e sua busca para entender o teatro; a câmera de cinema e sua tentativa de fixar a arquitetura do teatro na linguagem fílmica. Sobre este desejo e especificamente o papel de “Le soulier de satin“, Oliveira afirma:
“Eu desejava sublinhar o poder que uma arte tem sobre a outra, e fixar um registo impossível no teatro e que constitui a força específica do cinema. Recriar uma arte viva e material, como é o teatro, noutra, que é a últimas das artes, imaterial e fantasmagórica; sugere a aparência do real, no registo onírico, é o ponto de concretização de todas as artes. Aproximar cinema e teatro, que, de um ponto de vista material, são abissalmente diferentes. O teatro é matéria viva; é físico, está presente. O cinema é o fantasma desta matéria, da realidade física, mais real, contudo, que a realidade em si mesma, na medida em que esta, uma vez que é efémera, nos escapa a cada instante, enquanto o cinema, se bem que impalpável e imaterial, aprisiona por um certo tempo, à falta de para sempre. De facto, o cinema chegou depois de todas as outras artes e fixa-as no imponderável. É a sua preciosa riqueza continua na sua própria forma de abstrair a realidade. Desde o Amor de Perdição que esta ideia, bastante paradoxal, me acompanhava. Prosseguia-a com Francisca, até chegar àquele “excesso” que é Le soulier de satin.”
A história da peça de Paul Claudel se trata, resumidamente, da história de um amor impossível (tema tão caro a Manoel de Oliveira, basta pensarmos em Amor de Perdição) entre Doña Prouhèze (interpretada pela pouco conhecida Patricia Barzyk) e Don Rodrigo (interpretado por Luís Miguel Cintra, em seu primeiro papel da extensa colaboração com Oliveira), apesar de também retratar diversos enredos secundários. A história se passa ao longo do séc. XVI, por diversos países: estamos em Espanha e Portugal e as personagens falam francês. João Bénard da Costa, em seu texto Pedra de toque, explica que “Claudel disse que o tema do O sapato de cetim era o de uma lenda chinesa, que fala de dois amantes estelares que, todos os anos, após longas peregrinações, se conseguem ver frente a frente. Mas, separados pela Via Láctea, jamais conseguem se reunir”. O cerne da narrativa é, mais uma vez, a distância entre dois amantes.
O filme se inicia com os créditos iniciais, num fundo vermelho ao som de um burburinho de pessoas falando. Então, a câmera revela esta sala, que parece ser a entrada de um teatro. Um homem se dirige à câmera e apresenta a peça de Paul Claudel ao espectador. O início do filme se dá na chave do distanciamento, ou seja, uma exposição transparente de alguns de seus processos de feitura: neste caso, o processo de composição da peça por parte de Paul Claudel. Vemos as sombras das pessoas, do lado de fora da sala. O homem faz dois sinais e trompetes começam a tocar. Vira-se em direção à porta, e num outro sinal, sinaliza para que abram a porta. Neste momento, começa uma enxurrada de pessoas, que se adentram. Junto às pessoas, a câmera faz um movimento de grua para cima. Os créditos começam a passar. Nisto, um travelling inicia-se e a câmera adentra cada vez mais no prédio, realizando o mesmo movimento que esta enxurrada de pessoas. O título do filme, LE SOULIER DE SATIN, se dá sob os corpos destas pessoas, destes espectadores, que estão preparando-se para assistir à peça. As trombetas continuam tocando e o burburinho das pessoas também. Finalmente, as pessoas entram na sala de teatro e começam a se sentar nas fileiras.
No momento em que as pessoas se sentam, a câmera realiza outro movimento de grua, e desta vez revela, num camarote do teatro, um grupo de pessoas do séc. XVII, saídas diretamente das páginas da peça de Paul Claudel. As personagens da peça estão misturadas à plateia que assiste à peça. A figura central deste grupo, vestida de vermelho, dá meia volta e sai do camarote. Neste momento, a câmera, num movimento de grua desta vez descendente, retorna à posição nos corredores por entre as fileiras de cadeiras. A figura da peça de Paul Claudel aparece novamente, desta vez no corredor, mais misturada ainda aos espectadores da peça.

Da mesma maneira que o teatro e o cinema estão completamente conectados, a “ficção” e a “realidade”, na diegese do filme, misturam-se a partir da presença destas personagens na plateia. Este homem de vermelho, então, começa a andar e a câmera acompanha-o numa panorâmica, até que se posicione em cima do palco. O homem, neste momento, passa a olhar para a plateia (a câmera, pela primeira vez, ocupa o ponto de vista de alguém sentado nas fileiras). Olhamos para a personagem como se estivéssemos naquele espaço determinado, como se tivéssemos acabado de entrar naquele lugar junto àquelas pessoas. A personagem não só observa a plateia, como materialmente interfere nas ações desta plateia, ao pedir silêncio. Bate seu cajado no chão algumas vezes, e grita algumas outras, até finalmente conseguir o silêncio necessário para a peça se iniciar. Vemos, na parte debaixo do quadro, alguns músicos se preparando. Então, as cortinam abrem-se.
O que é revelado é um ecrã, e não uma peça. A tela de cinema está no meio do palco do teatro. A personagem vai explicar, então, o que será mostrado neste ecrã (serve como uma espécie de prelúdio à peça de Claudel, como inclusive toda este momento do teatro no filme). Enquanto a personagem fala, a câmera lentamente se aproxima. Eventualmente, há um corte e a câmera aparece mais distante, mas ainda centralizada no espaço. Começa novamente a se aproximar. Então, o ecrã passa a ser iluminado com uma projeção, de um barco. A câmera continua a se aproximar até estar completamente imersa no ecrã. Vemos Luís Miguel Cintra amarrado ao mastro do navio, tal qual Odisseu. Contudo, o ator não está interpretando o protagonista, e sim outra personagem, desta vez um padre jesuíta. Há um longo monólogo da personagem, até o momento em que um corte acontece (o monólogo continua) e o que é revelado, agora, é o aparelho que realiza a projeção que estávamos assistindo (o qual, agora, escutamos).
Afinal, o que as pessoas que entraram neste teatro estão assistindo, a uma peça ou a um filme? A câmera, depois de filmar o projetor, realiza um movimento de grua descedente, muito similar ao movimento realizado ao mostrar as personagens da peça no camarote. Há uma equivalência destes movimentos de gruas e daquilo que está sendo retratado: as personagens da peça de Claudel e um projetor cinematográfico. É o mesmo universo. Eventualmente, quando a câmera termina de descer, vemos os rostos das pessoas sentadas nas fileiras sendo iluminados pelo ecrã.
Nesta abertura, há um estabelecimento exemplar da conversa entre as formas teatrais e as formas cinematográficas, ainda mais se pensarmos nos movimentos de câmera com a grua, equivalentes entre si, que nos mostram o projetor e as personagens. Oliveira estabelece a intermedialidade de seu filme desde o princípio, unindo a projeção aos espectadores, as personagens de Paul Claudel às pessoas que assistem à peça, o ecrã ao palco. Sobre a relação de palco e ecrã, acredito que seja importante levarmos em conta uma história contada por Oliveira sobre o início da carreira cinematográfica de Eisenstein, enquanto ainda trabalhava no teatro:
“Há o caso de Eisenstein, que começou como encenador de teatro e quis fazer uma cena onde introduzia uma projeção de cinema numa tela colocada na peça de teatro. Então convidou Dziga Vertov para fazer essa cena, mas este não quis fazê-la, Eisenstein viu-se obrigado a fazer ele mesmo a cena que pretendia, e este foi, em boa hora, o início de sua carreira cinematográfica.“
Oliveira parece inspirar-se nesta anedota para compor a cena inicial de “Le soulier de satin“, com a incursão da tela no meio da encenação teatral (que por si já faz parte da diegese de um filme). A curiosidade do diretor com esta história, que diz respeito justamente ao arranque da carreira cinematográfica de Eisenstein, parece-me notável. Curioso é pensar como um cineasta como Eisenstein possui um vínculo totalmente intermedial com o teatro, realizando uma de suas primeiras cinematográficas dentro da diegese de uma peça de teatro; Oliveira, em “Le soulier de satin“, realiza uma peça teatral dentro da diegese fílmica. Esta peça encenada dentro do filme possui, em sua própria diegese, uma projeção em um ecrã (Luis Miguel Cintra amarrado), que acaba por nos transportar a mais uma destas muitas camadas intermediais, onde finalmente o enredo do filme transcorre.
Ao longo do filme, ficamos inebriados pela história de amor entre Prouhèze e Rodrigo; ao mesmo tempo, fascinante é também a falta de cenas entre as duas personagens, delimitando a ausência como a fonte do amor entre as duas personagens principais. Prouhèze e Rodrigo amam-se porque procuram-se. As cenas são construídas quase sempre através de longuíssimos monólogos (tal qual, é claro, o texto de Claudel). Somos cativados pela história, cremos nos acontecimentos retratados, por mais que haja determinadas decisões dramatúrgicas que estão longe do “realismo” (justamente características que são consideradas “teatrais”, como por exemplo o exagero no gesto e o discurso recitado), decisões que teoricamente nos distanciariam deste fluxo narrativo. Contudo, isto não acontece. Ao longo do desenrolar da história, entretanto, há cenas que pontuam uma espécie de distanciamento de maneira mais contundente e que, curiosamente, também apontam mais contundentemente as relações intermediais entre cinema e o teatro.
Após acompanharmos uma série de nobres conversando acerca da compra de tecidos vermelhos, enquanto as personagens que compunham a cena saíam de cena, um personagem vestido de branco entra rapidamente em quadro, sem esperar todas elas saírem totalmente. É acompanhado por um outro homem com um tambor. Começa a dizer para irem rápido e uma série de homens, vestidos de azul, passam a entrar a desmontar o cenário, passando com refletores, expondo desta maneira a feitura da peça/filme, o que há por trás daquele cena. Ao expor esses elementos de feitura, o espectador passaria a estar consciente da formulação farsesca da peça de teatro. Neste caso, do filme. Com o desmontar do cenário há, também, um evidenciamento das características artificiais e teatrais daquela cena, ainda mais com a intromissão desta curiosa personagem, que se dirige à câmera constantemente e comanda a desconstrução do cenário.
Ao expor os “trabalhadores” por trás da construção daquele cenário, Oliveira está expondo também a conexão nerval entre seu filme e determinadas convenções do teatro, como neste caso o distanciamento brechtiano. É claro que estes tais “trabalhadores” são, eles próprios, atores encenando. Mas há, aqui, uma interrupção clara do enredo do filme para que este distanciamento aconteça e essa aproximação aguda com as formas teatrais aconteça. Entretanto, é quando a personagem de branco corre em direção à câmera que esta aproximação fica ainda mais aguda.
Oliveira dá a esta personagem a voz que estabelece explicitamente a relação intermedial de cinema e teatro em seu filme, tão explicitamente quanto a abertura de “Le soulier de satin“. Ao proferir que “teatro e cinema […] dá tudo na mesma”, esta personagem está materializando através do discurso esta relação, cristalizando-a ainda mais. A personagem, inclusive, diz que deveria estar de figurino, mas “estava sem paciência de estar preso neste quartinho onde o autor me trancou”. Mas, por não se sujeitar, a personagem escapou e veio distanciar-nos da história de Prouhèze e Rodrigo, veio explicitar-nos um caráter formal essencial, a tal da intermedialidade. O poder desta personagem é intensificado ainda mais ao longo da cena, com diversos cenários sendo trocados e personagens aparecendo e desaparecendo de acordo com seu discurso, até finalmente a história prosseguir.
Contudo, não é somente através do distanciamento que Oliveira assinala a ligação de seu filme com o teatro. Há um aspecto que acredito que seja essencial, que é justamente a composição dos olhares das personagens. Os olhares, no cinema, são essenciais para a composição de uma montagem coerente. Um campo/contracampo minimamente aceitável deve ter as personagens olhando “para os lugares certos”. Em “Le soulier de satin“, como na maioria dos filmes de sua carreira, Oliveira não está muito preocupado em construir estes tais raccords de olhares para a coesão da montagem e da construção do campo/contracampo, simplesmente porque não constrói seus filmes a partir da utilização deste recurso. Na maior parte das vezes, os diálogos acontecem em blocos de texto corrido, com Oliveira privilegiando o plano-sequência. Estes planos-sequência poderiam muito bem ter as personagens olhando-se, mas Oliveira decide optar, ao longo dos diálogos do filme, por um olhar congelado no horizonte. É um olhar que lembra o olhar dos atores em uma peça de teatro, que olham para a escuridão que esconde a plateia. É como se as personagens em “Le soulier de satin” estivessem olhando para esta escuridão ao longo de todo o filme.
Há, ainda, um comentário intradiegético sobre a questão dos olhares das personagens do filme. A cena em questão é secundária, e estamos acompanhando Musique, a irmã de Prouhèze, acampando com seu namorado, depois de haverem fugido. Esta é, salvo engano, a última vez que a personagem de Musique aparece. Ela e o namorado estão, desde o começo da cena, durante um diálogo extremamente apaixonado, sempre olhando para o horizonte. Num determinado momento, Musique olha para seu namorado, que permanece com os olhos congelados na escuridão da plateia.
O rapaz, então, decide virar-se para olhar a sua amada nos olhos (esta ação seria caso raro ao longo do filme, por conta do fato das personagens estarem quase sempre com estes tais olhos congelados), porém, ao perceber o que o seu amado está fazendo, Musique toma um susto e vira o seu rosto para o outro lado. Impressionado com a reação de Musique, o rapaz pergunta-lhe: “Eu machuquei você?” (um olhar, portanto, seria suficentemente capaz de machucar alguma pessoa?). Musique então responde: “Meu coração parou” (somente com a possibilidade de olharem-se nos olhos). O rapaz, então, pergunta:

E não há respostas por parte de Musique: pelo menos, não imediatamente. A personagem da menina afirma algo como estar fazendo isto para se proteger. Porém, nós que assistimos ao filme sabemos que sim, é proibido o rapaz olhar para Musique. É proibido porque, se as personagens descongelarem seus olhos da escuridão da plateia e deixarem suas paixões imperarem, não estaríamos no campo da teatralidade radical proposta por Oliveira. E esta “proibição do olhar”, que impera ao longo das quase sete horas de filme, é essencial para a investigação da teatralidade proposta por Oliveira.
Finalmente, gostaria de fazer alguns apontamentos sobre a utilização das sombras por Oliveira no filme, incluindo talvez uma das passagens mais celebradas de toda a obra, comentada de maneira brilhante por João Bénard da Costa em seu texto “Pedra de Toque”. Para aí chegar, gostaria de antes apontar o exemplo do texto “Pré-cinema e desejos de teatralidade”, que aponta uma ligação do cinema com as formas teatrais antes mesmo do cinema existir, isto é, nas invenções que eventualmente ajudaram a evolução das formas cinematográficas a acontecer: mais especificamente a utilização das sombras nas câmeras escuras, nas “lanternas mágicas” e nos espetáculos de fantasmagoria. A ligação com o teatro estaria já aí, antes do cinema propriamente existir: poderíamos, portanto, considerá-la uma ligação de certa forma seminal. Oliveira vai ao pré-cinema e a este tipo específico de “teatralidade das sombras” para construir duas passagens belíssimas de seu filme. Uma delas, a primeira que irei comentar, serve como preâmbulo à outra.
Don Rodrigo, querendo encontrar Prouhèze, vai até a porta da sua casa. Lá, encontra o seu rival e também atual marido de sua amada, Don Camillo. Ambos, então, conversam. Na parede, estão suas sombras sendo projetadas. Don Camillo começa um discurso ao dizer que Prouhèze encontrava-se atrás daquela cortina. Don Rodrigo, no entanto, não o responde. Don Camillo reclama da falta de resposta. Então, Don Rodrigo o responde: olho para a minha sombra na parede. Rapidamente, o seu rival aproxima-se de seu corpo e de sua sombra, dizendo: “ah, então deixe associar-me a ela!”. Desta maneira, as duas sombras, Don Rodrigo e Don Camillo, pretendente e marido, tornam-se uma coisa só: representam o mesmo homem, o que deseja Prouhèze, apesar de um deles a ter consigo e o outro a procurá-la.
O diálogo entre os dois continua, Rodrigo grita o nome de Prouhèze e, então, sua sombra aparece. Mas não Prouhèze, propriamente. Os dois apaixonados não podem compartilhar o mesmo espaço, nunca: estamos no campo das projeções, das sombras, dos desejos, do imaterial. É sobre isto, então, que opera a segunda passagem do filme que utiliza a “teatralidade das sombras”: sob a muralha de Mogador (em que boa parte do filme acontece), uma sombra permanece gravada nos muros. A trilha sonora começa e, com ela, um sutil zoom in, em direção à sombra. Ela passa a ocupar quase todo o plano. O vento passa e a muralha balança (não passa de um lençol). De repente, passamos a ouvir em uníssono as vozes de Prouhèze e Rodrigo: “Eu acuso este homem e esta mulher de terem me feito na terra das sombras, uma sombra sem dono”. A sombra na muralha se transforma em outra sombra, a sombra de um ser, que depois se revela como sendo a sombra do casal:

“De todas as efígies que desfilam sobre a parede que ilumina o sol do dia ou da noite, não há ninguém que não conheça o autor e que não retrate fielmente o seu contorno. Mas eu, de quem se dirá que eu sou a sombra? Não deste homem ou desta esposa, separados, mas ambos, de uma só vez, um e outro em mim foram submersos neste novo ser feito de informe escuridão”, dizem as vozes unidas, enquanto as sombras de Prouhèze e Rodrigo caminham pelos muros de Mogador até se beijarem. Estão unidos, finalmente. Mas este não é o mundo concreto e sim o mundo das sombras, das projeções. O destino do casal, no mundo prático, é a separação. Somente neste mundo de sombras, ideal, é que eles podem estar verdadeiramente juntos, somente “ao longo deste muro violentamente golpeado pela lua”.
Sobre esta passagem, João Bénard da Costa escreve: “Em O sapato de cetim – súmula da tetralogia e ultrapassagem dela – as sombras dos dois amantes – Rodrigo e Prouhèze — fundem-se num dos mais belos momentos de toda a história do cinema, quando se encontram na noite de Mogador. Essas sombras são um só corpo com dois sexos. ‘Deus é andrógino’, disse Oliveira em poderosa metáfora. ‘É aquela velha história de Platão: antes da criação, homens e mulheres eram unos e depois foram separados como duas metades de uma laranja, mas querem voltar a unir-se. Encontrar a outra metade da laranja. O sexo apela ao encontro da outra metade. O sexo apela ao andrógino’”.
A sombra do casal se manifesta, também, como sombra da composição fílmica: uma ideal união das formas do teatro com as formas cinematográficas. Teatro e cinema acabam, em “Le soulier de satin“, tendo a mesma união platônica “das duas metades de uma laranja”, a mesma união das sombras do casal na muralha de Mogador: respiram ao mesmo tempo e discursam em uníssono. É quase impossível distinguir as formas umas das outras.
Paulo Martins Filho

BIBLIOGRAFIA
BAECQUE, Antoine; PARSI, Jacques. Conversas com Manoel de Oliveira, Lisboa: Campo das Letras, 1999
OLIVEIRA, Fernanda Areias; BIASUZ, Maria Cristina Villanova; SILVA, Marta Isaacsson de Souza, Pré-cinema e desejos de teatralidade. Pós: Belo Horizonte, v.6, n. 12, p. 24-34, novembro, 2016
OLIVEIRA, Manoel de; CAKOFF, Leon; ARAÚJO, Inácio; BÉNARD DA COSTA, João, org. MACHADO, Álvaro: Conversas com Manoel de Oliveira. São Paulo: Cosac Naify, 2005
SONTAG, Susan. Film and Theatre. The Tulane Drama Review, Vol. 11, Nº1 (Autumn, 1966), p. 24-37