“O que fazer após Ulysses?”

Reflexões sobre fazer e escrever sobre cinema e arte

Recentemente, numa longa viagem de ônibus Rio-São Paulo, estava ouvindo um podcast sobre Ulysses de James Joyce, quando me deparo com esta pergunta retórica colocada por uma das entrevistadas: “O que fazer após Ulysses?”. A questão não é nova, e logo me transportou para meus primeiros semestres na graduação, nos quais este tipo de pergunta parecia flutuar sobre todos nós (ao menos, àqueles que se interessavam por produzir alguma coisa, é claro) a respeito de diferentes artistas e movimentos artísticos: O que fazer após o Surrealismo? Modernismo? Andy Warhol? Nouvelle Vague? Tarkovsky? Tarantino? Cinema de fluxo?

Se apresento aqui figuras e movimentos tão distintos e distantes, não é por acaso. Quando eu me fazia este tipo de pergunta, não tinha a menor contextualização histórica sequer dessa “progressão de estilos” didática a que eu me apegava. Mas, ainda assim, nos primeiros semestres da faculdade queria descobrir “a próxima tendência” no cinema e na arte. O que viria após Wong Kar-wai, Lucrecia Martel e Darren Aronofsky?, nomes em voga quando entrei, ainda que seus maiores sucessos já completassem pelo menos uma década. Isso tudo foi antes de ser pressionada a responder outras perguntas – ainda mais infrutíferas, como perceberia depois – a respeito do papel social dos filmes que eu faria, mas esta questão fica para outro momento.

Acredito, enfim, que uma pergunta como essa, “O que fazer após Ulysses?”, é uma das piores perguntas que podemos nos fazer, ainda mais quando somos jovens e recém iniciados em qualquer assunto. A começar, a pergunta implica que devemos considerar a relevância – histórica, estética, qualquer que seja – daquilo que faremos antes mesmo daquilo existir. Implica que Ulysses – mas poderia ser Pierrot Le Fou, Cidadão Kane ou um readymade de Duchamp – é sobretudo um marco histórico. Não um livro a ser lido, mas uma referência a ser demarcada, citada ou até mesmo reverenciada. E quando abrirmos nossos singelos cadernos ou arquivos de Word, lá estará Ulysses nos assombrando a escrever uma obra de tamanho impacto em nossa época. Teremos o fardo de estabelecer um divisor de águas, de inaugurar não apenas um movimento, mas toda uma forma de pensar que transmita o espírito de nossa época e após a qual nada será como antes. Diante da página vazia de papel ou da tela a nossa frente, dificilmente faremos alguma coisa. Não apenas isso, mas não teremos a menor vontade de ler Ulysses, e se lermos, tentaremos apenas compreender sua grandeza.

Ao invés de praticar as diferentes tarefas que envolvem a feitura de um filme ou a teoria do cinema – escrever, filmar, atuar, montar, estudar a história do cinema ou mesmo apenas ver filmes – eu passava a maior parte do meu tempo tentando descobrir a fórmula secreta para fazer um bom filme. Quando assistia filmes ruins de meus colegas ou que passavam no cinema, ficava tentando encontrar o ponto em que tudo dera errado, decifrar o deslize para evitá-lo quando, naquele futuro longínquo de quando teria coragem e aptidão para de fato fazer um filme, não cometer o mesmo erro.

Curiosa e inconscientemente, assumimos uma prática artística duchampiana: o artista que “não faz nada” e fica apenas pensando na próxima jogada. No seu caso, deu muito certo. Mas o que quer que Duchamp matutasse nestes períodos de inatividade, duvido que fosse uma questão do tipo “o que fazer após Picasso, cubismo, pintura”, ou algo semelhante – aliás, antes de “não fazer nada”, Duchamp já havia feito muita coisa. Ainda que pensasse no que veio antes para fazer seus novos objetos, acredito que devia considerar sobretudo questões práticas e materiais no processo. Não simplesmente “o que fazer após o cubismo?”, mas “o que estava em questão no cubismo?” e como explorar isso de outras formas? O que é Ulysses, para além de um marco histórico no Modernismo? O que está em jogo ali?

A inércia crítica e teórica costuma ser tão enfática quanto a prática para aqueles que, como eu, se perguntavam “O que fazer após Ulysses?”. Suponho que a inatividade de Duchamp, afinal, fosse muito ativa – como é aquela do xadrez que praticava. Pois por mais teórica que seja uma questão, pensar ou, mais ainda, escrever, são atividades práticas, que envolvem o enfrentamento de um objeto tanto quanto qualquer outra, seja empilhar um tijolo ou pintar um quadro. E como qualquer atividade prática, requer prática, ou seja, experiência.

Só tive que enfrentar a escrita e a feitura de um filme no período final da minha faculdade, como imagino que seja um caso recorrente em diferentes cursos, com seus diferentes trabalhos finais. Apenas nos dois últimos semestres eu de fato dirigi um filme e sentei por dias diante do meu computador para escrever acerca de um só tema. Nos dois casos, me deparei com problemas teoricamente semelhantes: um objeto a ser filmado, descrito ou analisado, e a organização destes resultados, seja esta narrativa (no filme) ou teórica (no texto). E, em ambos os casos, estes problemas não eram questões delimitadas e abstratas como as que descrevo aqui, mas inúmeras e concretas, desde como conectar dois parágrafos à como posicionar a câmera em determinada cena. Problemas que só aparecem durante o processo.

A palavra “processo” está tão desgastada hoje que me remete a alguma corrente holística de amor próprio, mas é necessária justamente por sua simplicidade. Qualquer processo de criação envolve o enfrentamento de um objeto, o que irá acarretar em problemas práticos a serem resolvidos, os quais uma pergunta como “O que fazer após Ulysses?” ignora. O caráter experimental de qualquer trabalho envolve estes problemas práticos de um processo, não apenas a pergunta certa que “desbloqueia” (para usar um termo publicitário em voga) a resposta certa. O que um dia se chamou de “arte conceitual” confunde-se, hoje, com a lógica do pitch, como se bastasse colocar uma questão no ar – “Imagine um filme que seja uma mistura de ‘Jurassic Park’ com Bresson! Ou um ‘North by Northwest’ brasileiro! Um ‘The Searchers’ feminista!” [1] – para enfrentar os desdobramentos práticos que ela acarreta, os problemas que ela cria. Se nossa tarefa é construir uma casa, isso pode simplesmente não funcionar, a casa cai e pronto. Mas ao escrever um texto ou fazer um filme, é possível pular etapas essenciais como passar cimento entre os tijolos e passar despercebido.

Mizoguchi fez dezenas de filmes antes de Oharu, John Ford fez dezenas de filmes antes de Stagecoach, estes filmes não surgiram por aparição divina de mentes geniais. Recentemente ouvi um podcast em que James Gray comenta como diretores como Ford conseguiam aprimorar o ofício do fazer cinematográfico através da feitura de inúmeros filmes na indústria hollywoodiana clássica, o que seria mais difícil no contexto atual, com a produção de menos filmes, de menos exercício prático regular. Ainda assim, o próprio Gray, cujo último filme que havia lançado na época da entrevista de 2017 era A Cidade Perdida de Z, considera que sua prática (“craft”) está cada vez mais engenhosa. [2]

Quanto a isso, lembro do que o crítico de arte americano Leo Steinberg fala a respeito do trabalho da crítica de abrir caminhos [3]. Steinberg descreve um impasse na crítica diante da obra inicial de Jasper Johns, que ora a descrevia como parte do Expressionismo abstrato, ignorando seu conteúdo “figurativo”, ora como parte do “neo-dadaísmo”, ignorando seus aspectos formais: “O primeiro reflexo crítico ao aparecimento de algo novo é usualmente uma tentativa de conservar a energia psíquica assegurando-se de que nada realmente novo ocorreu.”, ele escreve. Ao invés de observar e indagar o objeto e suas particularidades, esta crítica buscava rapidamente encaixá-lo em algum rótulo previamente existente. E então Steinberg descreve aquilo que considera ideal ao trabalho de um crítico:

Uma obra de arte não vem como um cartão-postal, com o preço estampado sobre ela; apesar de sua condição de objeto, vem primordialmente como um desafio à vida da imaginação e maneiras “corretas” de sentir ou pensar a respeito dela simplesmente não existem. Os sulcos pelos quais os pensamentos e os sentimentos finalmente correrão devem ser escavados antes que qualquer coisa, exceto a perplexidade ou o ressentimento, seja ao menos sentida. Por um longo tempo, a direção do fluxo permanece incerta, represada ou se esvai completamente, até que, depois de muitas incisões experimentais por parte de críticos aventureiros, alguns canais são formados. No final, esse rio largo que podemos chamar a apreciação de Johns – embora ainda venha a ser desviado de uma ou outra maneira – torna-se navegável para todos.

De modo semelhante, Steinberg aponta como o trabalho do pintor costuma, a princípio, esbarrar em questões prévias, em trabalhos de outros pintores: “[…] tornar-se pintor é como tatear o caminho num quarto escuro atulhado de coisas. Quando começa a andar, ele tropeça no sofá de outra pessoa, muda de direção para colidir com a cômoda de alguém, depois tromba com uma mesa de trabalho que não pode ser desarrumada. Tudo tem seu uso e seu usuário e nenhuma necessidade dele.” Será aos poucos, enfrentando o trabalho prático, que este pintor encontrará seu próprio caminho, seu próprio processo, como fez Jasper Johns. O exemplo poderia ser outro, como a história já muito repetida de como Pedro Costa deixou de produzir filmes de uma maneira tradicional e encontrou sua própria, mais artesanal, com os cabo-verdianos no bairro das Fontainhas em Lisboa.

Existe pintura após Picasso e arte após Duchamp, e não necessariamente toda ela se refere a Picasso e Duchamp, ainda que possa partir de certos mecanismos expostos ali pela primeira vez. Marguerite Duras e Éric Rohmer (e tantos outros) fizeram seus filmes depois de Mizoguchi e Ford (e tantos outros), e não necessariamente os “superaram”, mas apontaram outros caminhos, até então inéditos. Se os apresento como exemplos é justamente por seus filmes de teor literário caminharem não exatamente em um sentido contrário àquele apresentado pelo cinema moderno até então, mas, como Johns, em uma direção própria.

E o que podemos aprender com Ulysses para além de sua grandeza, ou mesmo apesar de sua grandeza, que impõe-se (ou é imposta) de modo tão fatigante? Seria possível, ainda, lê-lo sem esta camada de reverência e apreciá-lo pelo que ele é? E talvez descobrir, com isso, algo do que foi descoberto ali na época em que se consagrou? Não menosprezo a importância de Ulysses ou as intenções daqueles que o consagraram. Se isso aconteceu, foi porque alguém se deu o trabalho de ler o livro e escrever sobre ele antes da pergunta “O que fazer após Ulysses?” sequer existir; assim como Ulysses, cuja referência à Odisséia está no próprio título, existe apenas porque James Joyce se deu o trabalho de escrevê-lo.

Paula Mermelstein

Notas:

[1] Admito que ficaria curiosa pra ver todos estes.

[2] “Talk Easy with Sam Fragoso – Episode 49 – James Gray”. Disponível aqui.

[3] “Jasper Johns: os sete primeiros anos de sua arte Leo Steinberg 1963”. Em STEINBERG, Leo. Outros Critérios – confrontos com a arte do século XX. [trad. Célia Euvaldo] São Paulo, Cosac & Naify, 2008.