O corte em Le diable, probablement

A carreira de Robert Bresson é marcada por uma consistência única na história do cinema: além de nunca ter dirigido um mal filme, o seu projeto de cinema reside em torno de uma certa obsessão estilística. Os seus filmes parecem ser sempre pautados por uma radicalidade formal incessante, sempre parecem estar apontados para o mesmo lado, parecem funcionar de acordo com as mesmas regras, habitar os mesmos universos, respiram todos no mesmo ritmo. Apesar das diferenças óbvias que os filmes têm entre si, é impossível olhar o pormenor bressoniano de uma mão e não o reconhecer como sendo dele; é impossível ouvir a cadência de fala e de gestos dos seus modelos e não os reconhecer como sujeitos bressonianos. Afirmar que esse reconhecimento imediato de suas características (essa espécie de “claridade” formal impassível) é um dos aspectos mais importantes do seu estilo não me parece um absurdo. Sabemos que esse filme foi feito por Robert Bresson e ponto final: é claro, evidente, cristalino. 

O desenvolvimento do seu estilo acontece também de maneira particular. Ao longo do tempo, o cineasta parece deixar o seu estilo ainda mais incisivo. As características bressonianas parecem, em seus últimos filmes, chegar no que Aristóteles chamou de telos: uma espécie de “ponto de chegada”, de ápice, de cume. Essa chegada ao Everest do estilo se dá em seus últimos três filmes: Lancelot du Lac (1974); Le diable, probablement (1977); L’Argent (1983). Depois disso, parece não haver mais para onde ir, afinal, o que resta ao alpinista é olhar o mundo através das nuvens… 

E Bresson de fato não vai mais a lugar algum: é assim que se despede do cinema, com três obras que são a afirmação drástica de todo o seu projeto de cinema, de tudo aquilo que lhe caracteriza enquanto um autor. Olhar para esses filmes parece-me um desafio: ao mesmo tempo que são absolutamente misteriosos, a clareza de Bresson está ali, responsável por ditar as regras do jogo. Para tentar observar essas obras absolutamente ofuscantes, parece-me interessante escolher apenas um dos filmes, Le diable, probablement, e isolar apenas um aspecto do estilo de Robert Bresson: o corte, neste caso. Tentar olhar Bresson de dentro para fora, talvez. 

O órgão

Enquanto o cinema clássico opta por uma transparência da montagem (omitir qualquer presença de cortes, tornar o filme um só fluxo), o que parece acontecer em Le diable, probablement é o extremo oposto deste tipo de construção fílmica.  A desarmonia entre alguns planos é o que dita as regras do jogo aqui. Mais do que uma obtenção de sentido a partir da fluidez, o que acontece neste filme é um alcance de sentido através dos contrastes entre os planos, que acaba sendo evidenciado pelo corte, justamente. O corte bressoniano funciona quase como metáfora ao mundo retratado pelo cineasta: um mundo cindido, sem esperanças, cuja única regra é o caos.

Ao longo do filme, as personagens vão constantemente a uma igreja, onde fazem reuniões. Num desses momentos, enquanto conversam, um homem toca um órgão; porém, o instrumento não emite uma melodia agradável, mas sons extremamente angustiantes, que fazem imperar a desarmonia. Há um plano magnífico em que vemos a reação de um homem ao som do órgão, em que ele se assusta com o angustiante som do instrumento, que acaba por atrapalhar o diálogo, ao invés de acompanhá-lo: os discursos são cortados ao meio. O uso deste órgão no filme é, para mim, uma das melhores metáforas ao corte bressoniano: ao invés de beleza, feiúra; ao invés de ordem, caos. O mundo está desarmônico: por qual motivo o órgão que toca na igreja havia de estar afinado?

O corte literal

Outro momento marcante do filme ocorre quando duas das personagens presenciam o corte de diversas árvores. Como o órgão do exemplo anterior, o conteúdo da cena está em consonância completa com os aspectos formais do filme; porém, ao invés de se tratar de uma metáfora, aqui há uma literalidade. A harmonia da natureza é cindida pelo corte das máquinas, pela ação do homem. Temos aqui, novamente, a dicotomia ordem-caos; harmonia-desarmonia: a fluidez da natureza é interrompida. Sendo testemunha deste fenômeno, o protagonista do filme tampa os ouvidos para tentar escapar do som destes cortes violentos: tampa os ouvidos para não escutá-los. O que acontece aqui, com este gesto, é quase um pedido de ajuda, o que acaba por fazer entendermos melhor o seu destino: Charles não consegue suportar o mundo que o rodeia. A violência dos cortes é insuportável.

Obtenção de sentido pelo corte: cartões de crédito e mergulhos

Há inúmeros momentos ao longo do filme em que podemos entender a força do corte bressoniano e a maneira como o filme adquire sentido a partir dele, servindo de intermediação entre um plano e outro. Muitas vezes, é a partir do contraste (da diferença entre dois planos) que o sentido é alcançado. O primeiro exemplo ocorre logo após a cena explicitada no item anterior, a do corte das árvores: Charles e Michel estão no carro em direção à Paris e começam a conversar. Charles passa a indagar Michel sobre o que é a verdadeira felicidade, até o momento em que ele próprio cria uma dicotomia de tipos de felicidade: a felicidade do cartão de crédito e a felicidade de um mergulho no rio: qual destas duas coisas é realmente sincera? Ou melhor: qual destes dois tipos de felicidade é realmente possível?

Quem responde à questão de Charles é o próprio Bresson. Como? Com um corte. Quando Charles termina de exemplificar sua dicotomia, Bresson corta a cena para um rio sendo poluído por petróleo. Ou seja, se não há como mergulhar no rio, só nos resta um tipo de felicidade, a felicidade que cabe a esta sociedade, a dos cartões de crédito, do consumo, do supérfluo.

Obtenção de sentido pelo corte: um tiro na água

Outro exemplo de contraste efetivado pelo corte se dá à beira do Rio Sena, quando Charles encontra um grupo de hippies e rouba a arma de um destes membros. A ideia do suicídio percorre o filme todo (Bresson explicita-o logo no primeiro plano) e acabamos por estar constantemente na iminência desta ação. Quando Charles rouba a pistola, outras duas personagens percorrem a beira do rio para encontrá-lo: é aí que escutamos o som de um tiro. Charles finalmente suicidou-se?

É novamente com um corte que Bresson responde a pergunta: logo depois das personagens escutarem o som do tiro, somos levados à origem desse som: vemos a água do Sena sendo alvejada continuamente por projéteis. Ao invés de matar-se, Charles, quase como uma criança, testa a potência da pistola em tiros direcionados não a ele, mas ao mundo. Como já não há como mergulhar no rio, vamos dar tiros nas águas para ver o que acontece. Como se fosse um desejo latente entender quantas possibilidades uma arma realmente tem.

A morte como corte

Para encerrar, falarei justamente sobre o corte final de toda a obra: o corte da vida de Charles. Não tendo coragem de matar-se, o protagonista, inspirado por palavras de seu terapeuta, convida (em troca de alguns trocados) seu colega junkie para ajudá-lo, para matá-lo honradamente como faziam os antigos romanos. Assim, vão a um bar tomar conhaque e depois pulam o muro de um cemitério, onde o suicídio/assassinato terá lugar (curioso lugar para tal ação). Charles dá a arma para o seu amigo, vira de costas e começa a falar. Vemos que o amigo já está com a arma apontada para Charles. Enquanto o protagonista do filme pondera em voz alta o melhor momento para o amigo executar a ação (“quer que eu lhe avise, ou…”), o junkie interrompe-o com um corte, um corte mortal. Não é preciso avisar, Charles, você já deu a pistola para seu colega e ele sabe exatamente o que fazer: matá-lo. A bala é impaciente, não espera: este é o corte mais cruel de todo o filme, o corte do discurso, do último suspiro, das últimas palavras. É uma interrupção absoluta, a do projétil. O junkie, então, tira as notas do bolso do cadáver de Charles e sai correndo pelo cemitério afora. Quando o personagem sai de quadro, o corte bressoniano opera novamente, terminando o filme sem esperança alguma de qualquer tipo de harmonia: nem mesmo as últimas palavras podem ser proferidas…

Paulo Martins Filho