
“E eu parti”: é a primeira fala da voz off, em primeira pessoa, de “Je Tu Il Elle” (1974), primeiro longa-metragem ficcional de Chantal Akerman, sugerindo desde já um deslocamento que precede à situação de sua personagem (interpretada pela própria realizadora) e introduzindo o quarto em que a vemos como uma nova dinâmica em sua rotina. “No primeiro dia, pintei os móveis de azul. No segundo dia, repintei de verde”, ela nos indica, complementando aquilo que não podemos distinguir pelo filme em preto e branco.
O quarto é entupido de móveis que, a princípio, são organizados a cada vez de modos distintos, até que a voz off diga: “Vazio, o quarto é grande”. Então, a personagem passa a tirar todos os móveis para ter espaço, fazendo-os ranger no chão com o esforço de empurrá-los. A câmera, em oposição, move-se lenta e levemente pelo espaço, com uma panorâmica para a direita e, depois, para a esquerda, acompanhando o movimento da personagem, até que sobre apenas o colchão em que estará deitada pelo restante de toda esta primeira parte. Quando finalmente termina de tirar todos os móveis e a luz se expande pelo espaço, ela encontra para si o único lugar sem luz, atrás de uma pilastra, e se senta no chão.
Os dias passam, a princípio bem demarcados pela voz da realizadora/personagem, mas logo se tornam confusos, perdidos em sua rotina irregular e dispersa. Sua única ocupação será escrever cartas que não enviará e que nos revelam que, tudo o que ela diz, portanto, é um relato que deve ser transmitido a uma segunda pessoa, que desconhecemos. No quarto vazio, a personagem passa os dias comendo açúcar diretamente de um saco, apenas com uma colher, tal como se ali ela houvesse perdido qualquer sentido de realidade para além da fascinação com esta escrita.

Entretanto, o vazio desejado é também o motivo da inquietação que persiste nos dias a seguir, forçando novas mudanças de posição da personagem, que dispõe o seu colchão em todos os cantos distintos do espaço em que nada mais se coloca entre a câmera e a personagem. Chantal, realizadora, nutre este mesmo vazio no filme pelo prolongamento da duração de sua imagem, pela ausência de conflitos, pela dissolução dos objetos de cena. Preservando seu vazio essencial, nenhuma música o acompanha, nada dita o seu tom senão suas escassas imagens e comentários.
Ao investir em uma representação do tédio, do vazio e da espera, Chantal questiona o espetáculo e lança uma provocação ao seu espectador, cujo gesto maior se dá, ainda na primeira parte, quando a voz off anuncia: “Esperei até que acontecesse alguma coisa”, enquanto a personagem segue comendo açúcar, indiferentemente, na imagem.
Finalmente, ela sai de casa e se posta à uma estrada, sinalizando aos veículos passantes o pedido de carona. Antes, foi preciso o açúcar acabar e, talvez, de maneira significativa, que ela se olhasse no reflexo da janela pela primeira vez, nua, para que deixasse de esperar. “Parei um caminhão”, diz a voz, indicando o que jamais é mostrado. No plano seguinte, a personagem está já a bordo do automóvel, ao lado de seu motorista (Niels Arestrup), e começa a sua viagem.

Em toda esta segunda parte do filme, a voz off desaparece, e nenhuma palavra será dita por Chantal ao caminhoneiro. Eles farão uma série de paragens em bares e restaurantes pela estrada e, em uma delas, um plano os mostra jantar assistindo a um filme na televisão, cuja tela jamais vemos, mas cujos sons tomam conta do plano, em ruídos de tiro, carros, sirenes, música, tudo o que, em geral, diz respeito a uma ideia de espetáculo que está totalmente excluído de “Je Tu Il Elle”.
O laconismo se expressa também de maneira exemplar em uma das cenas a seguir, quando, de volta ao caminhão, depois de uma aproximação romântica frustrada nas paragens, o homem apanha a mão de Chantal e a coloca em seu colo: “mexa a sua mão”. Logo, começa a dar ordens de como ela deve masturbá-lo e descreve as sensações que tem, em um primeiro plano fixo, de uma interpretação puramente centrada em sua expressão facial, que é quase uma repetição exata daquilo que constitui o “Blowjob” de Andy Warhol, destacando o papel de uma atuação que projeta a centralidade daquilo que está ao seu redor, em um filme em que quase tudo nos é apresentado em off.
A seguir, o homem inicia um monólogo em que dura aproximadamente nove minutos do filme, em que conta grande parte de sua vida e de suas relações sexuais (com sua esposa ou a bordo do caminhão, com outras jovens como Chantal), trecho em que o caminhoneiro expõe as suas intimidades e revela mais de si do que é revelado da protagonista em todo o filme. Longuíssimo plano “documental”, direto e “naturalista”, que cria um novo contraste com a estranheza e o vazio do início do filme, com o quarto cada vez mais sem móveis, com as ações desleixadas e o silêncio de Chantal.

Assim, depois de “28 dias” (como pronuncia a voz off, logo antes de sair do quarto, no início) e uma longa noite de viagem, Chantal chega finalmente à porta de um prédio em que toca a campainha e responde apenas “sou eu”, como se fosse também esperada. Toma o elevador e, após hesitar, entra no apartamento; entretanto, tão logo entra no quarto onde sua amante (Claire Wauthion) lhe espera, tropeça, cai e se levanta rapidamente. Senta-se à cama e tira o casaco; no mesmo momento, a outra mulher diz que não quer ela ali. Mais uma vez se levanta e tentar vestir o seu casaco, mas o zíper emperra, passando um longo tempo em silêncio enquanto segue tentando, até fechá-lo e encarar a outra com um sorriso.
Após a longa viagem, seu encontro é frustrado não apenas para a personagem, mas também para o espectador, para quem as expectativas são rompidas duas vezes, seja por esta negação ou pela intromissão do elemento cômico destas falhas. Possivelmente imprevistos na filmagem, esta sucessão de eventos (que, em um curtíssimo tempo, apresentam bem mais ações, concentradas, que em todo o restante do filme) adquirem seu sentido cômico pela recusa a repetir esta ação de maneira “correta” em um novo take do mesmo plano. Neste momento, Chantal retoma em sua interpretação a verve humorística de seu primeiro curta-metragem, “Saute Ma Ville” (1968), que já a trazia como centro da cena – até o seu filme final, muitos outros o farão – desempenhando, à sua maneira, um papel particular na tradição de atores-realizadores burlescos, de Chaplin, Keaton, Tati e muitos outros (Stroheim, Lewis, Moullet, Monteiro, Moretti…), mesmo que discretamente, por um humor tão sutil como uma música de notas esparsas, executadas em um tom baixíssimo.
Na sequência dos eventos dramáticos, a personagem posta-se ao elevador para sair, ao que ambas hesitam novamente, até que Chantal diga “Estou com fome” e a outra mulher corra para dentro do apartamento, a lhe preparar algo para comer. No próximo plano, está sentada a mesa, comendo um sanduíche, que termina apenas para dizer “Quero mais”. Novos sanduíches são feitos, acompanhando-se toda a preparação e a exigência de Chantal que, com gestos, aponta o que ela deseja que seja passado no pão. Desta vez, entretanto, um corte inverte o posicionamento da câmera na mesa e, com isto, é também já um novo tom que se inaugura no filme. Deixando os pães de lado, ela estende a sua mão até o peito da mulher e abre lentamente os seus botões, delicadamente dobrando o decote para somente sugerir um dos seios. A este gesto de erotismo, ausente até aqui, a mulher sinaliza negativamente, balançando a cabeça também lentamente para os lados em um gesto de reprovação, enquanto em sua boca permanece um discreto sorriso que a deixa seguir adiante. A voz off se impõe novamente, depois de tanto tempo: “Ela me disse que devo ir embora amanhã”.

O corte seguinte apresenta já as duas na câmera, despidas, em uma carícia agressiva que é quase como uma luta corporal entre as duas, marcando a intensidade deste encontro. Seus corpos, de tal maneira atrelados, se homogeneízam aos lençóis e paredes brancas, formando uma única imagem, tal como um conjunto esculpido em uma estátua de mármore. Entretanto, não se trata simplesmente de “sexo” aquilo que o filme mostra, mas uma bastante óbvia simulação de ato sexual, que não procura o engajamento, a excitação do espectador, mas antes a sua distância – como o filme no restaurante e a masturbação no caminhão nos sugerem.
Uma vez que, a princípio, tudo o que era dispensável foi negado, ao quarto e ao filme, a recusa, o rigor e a estrutura devem fundamentar a realização de Chantal, que constrói o filme sobre seus princípios mais básicos, como se comesse açúcar puro, direto do saco. Entre a primeira parte, em que se vê a personagem solitária, e a última, em que o encontro acontece, o deslocamento no caminhão tem o sentido literal da passagem, mas é simbólico, também, como trajetória de afirmação de personagem e cineasta. Assim, no último plano, Chantal se levanta da cama e abre as cortinas, finalmente deixando, pouco a pouco, a luz entrar: retornamos à tela em branco do cinema e ao ponto zero de sua criação; chegara ao fim da noite pela qual esperou.
Matheus Zenom
