Na igreja dos Eremitas vi pinturas de Mantegna – um dos mestres antigos – que me espantaram. Que presente mais agudo e preciso apresentam! Um presente absolutamente verdadeiro– não, digamos, aparente, de efeitos ilusórios, apelando apenas para a imaginação, mas um presente sólido, puro, lúcido, minucioso, consciencioso, sutil, bem definido e contendo ao mesmo tempo algo de austero e diligente.
Goethe, Viagem à Itália.

Durante um tempo o quadro São Jerônimo penitente no deserto de Andrea Mantegna (1431 – 1506) era praticamente a porta de entrada do acervo do MASP organizado nos cavaletes de vidro. Apesar de muito menor em comparação com as outras obras dispostas lado a lado, o quadro sempre me chamou atenção: parece haver nele uma coexistência muito única entre força e sutileza, rigidez e leveza, construídas quase como mágica enquanto o espectador observa a pintura, tanto pela variedade de tons amarronzados, quanto pelas sinuosas e discretas linhas da paisagem.
Andrea Mantegna, apesar de não ser um desconhecido, não é o primeiro nome que lembramos quando pensamos em Renascimento italiano. A sua própria presença no acervo do MASP é frequentemente eclipsada pelos seus vizinhos: a belíssima Ressurreição de Cristo de Rafael ou o exuberante São Sebastião de Perugino. São Jerônimo é um quadro “menor”, tanto na história do Renascimento quanto na própria produção de Mantegna (tendo inclusive sua autoria colocada em dúvida), porém acredito que seja justamente pelas supostas incoerências e desvios que o quadro também me chamou tanta atenção.
Proponho que comecemos a olhar para o quadro do fundo à frente. A paisagem em São Jerônimo é pouco natural constituindo-se de uma grande área descampada e uma estrada. O rio que nasce do fundo do quadro e caminha até o primeiro plano parece responsável pela construção da paisagem, como se depois de milhares de anos de movimentos repetitivos conseguisse moldar as rochas, produzindo a caverna em que o santo está sentado. A valorização da natureza aqui é notável, mas não se trata de uma natureza passiva e selvagem, mas de uma natureza fruto do trabalho, humanizada.
Há também algo nessa natureza que é carregado de tensão: o céu que vai escurecendo em um dégradé bastante acentuado, sugere não só profundidade, mas a passagem do tempo; as duas árvores, a da frente sem folhas enquanto a de trás com muitas, também indicam que enquanto olhamos o quadro, as estações já mudaram. Se há harmonia no quadro, essa impressão é gerada principalmente pelas linhas extremamente finas e sinuosas de contorno branco, que perpassam os rochedos, as nuvens, o rio e finalmente a barba de São Jerônimo criando uma unidade entre a natureza e o ser humano.

Sobre a figura humana, o santo, vale resumir a sua história: Jerônimo viveu no século IV e aos 29 anos foi ordenado cardeal na igreja romana. Com a morte do papa Libério ele foi aclamado como seu sucessor, porém alguns clérigos armaram contra ele. Indignado com as artimanhas dos clérigos, Jerônimo se retira para Constantinopla e posteriormente para o deserto, cena que Mantegna escolhe representar. Ele cumpriu penitência no deserto durante quatro anos e depois voltou a morar em Belém, onde dedicou 55 anos e seis meses para traduzir a Bíblia para o latim.
Me parece essencial na interpretação desta biografia feita por Mantegna, que seja longe da cidade o lugar que o santo vai buscar a compreensão das escrituras: na pintura, a natureza parece fornecer uma iluminação física e espiritual pela janela natural formada de pedras, ao lado da cabeça de São Jerônimo. Tal janela acrescenta uma fonte de luz quase arbitrária, não mais na frente da esquerda para direita, mas do fundo para frente e funciona quase como a ilustração da consciência do santo, sendo, o que me parece, uma metáfora de sua jornada.
Podemos descrever a figura do santo e a sua postura como dura, serena, lógica, introspectiva. Há na pintura de São Jerônimo rigidez, que Roberto Longhi [1] sugere ser fruto da prática excessiva de desenhos de esculturas, antigas e novas, a partir do contato de Mantegna com o escultor Donatello. Assim como há, também um certo alongamento dos membros, herança do gótico internacional [2]. Apesar desses desvios da dita norma do Renascimento, a postura excessivamente dura e disciplinada me parece funcionar na composição, remetendo tanto ao seu entorno árido, quanto à própria disciplina necessária ao trabalho intelectual.

Além de sua postura e sua feição que sugerem esse certo mimetismo com o ambiente seco e bruto, a cor da pele do Santo é amarronzada, de tonalidade bem próxima as pedras que compõem a caverna e o chão, talvez fazendo alusão aos próprios escritos de Jerônimo sobre sua peregrinação.
Meus membros deformados estavam cobertos de cilício que os tornava horrendos, minha pele ressecada adquirira a cor da carne dos etíopes. Todos os dias se passavam em lágrimas, em gemidos e se alguma vez o sono repugnante me prostrava, era a terra nua que servia de leito aos meus ossos secos. [3]
Suas roupas, apesar dos tons de azul e roxo que contrastam com o azul do céu, carregam um pouco de marrom e bege, fico me pergunto se tais cores sugerem que os tecidos são finos e puídos ou se as roupas foram sujas durante sua jornada. De qualquer maneira, confirma-se a impressão que as roupas foram usadas em demasiado: a barra do manto contém um pequeno rasgo. Junto às roupas, os pés cruzados, descalços e sujos, fazem oposição ao chapéu vermelho vivo que marca a posição social de Jerônimo, ordenado cardeal. Parece que ele tira o chapéu para dar espaço a auréola.
Em uma das mãos de Jerônimo segura um livro, e são 3 representados na pintura: um que o cardeal segura e dois apoiados na caverna com uma pena ao lado, provavelmente aludindo ao trabalho da tradução. Na outra mão o santo segura um terço. Só olhando para a figura já compreendemos o essencial de sua história, o conhecimento e a devoção católica. Os olhos do santo apontam para fora da tela, no canto inferior esquerdo, mas ele não parece observar nada físico, seu movimento me parece bem mais reflexivo e introspectivo.
Ao contrário da corriqueira presença do espaço arquitetônico na pintura florentina que visava marcar claramente a presença da perspectiva linear, o quadro de Mantenga presente no acervo do MASP, representa um ambiente natural no qual a presença ou não da perspectiva não chama atenção em um primeiro momento. Porém, a partir de um olhar atento, é notável que existe a tentativa de construir um espaço não hierárquico na pintura, no qual cada elemento respeitaria as distâncias físicas e a impressão que temos ao olhar para uma paisagem. Um exemplo são as árvores: as que estariam mais ao fundo são menores e as mais a frente são maiores.
Por outro lado, quando olhamos para o leão, deitado ao lado do santo, essa proporção já não parece assim tão certeira, remetendo um pouco a construção do espaço medieval, no qual o tamanho das figuras não é baseado em suas características físicas, mas sim em sua importância simbólica (um rei é maior que um plebeu, não pelas pessoas terem de fato alturas diferentes, ou por uma estar mais longe que a outra, mas por terem papéis sociais distintos).

O leão parece ter o tamanho de um gato e é pouco maior que o chapéu de São Jerônimo. É possível que tal distorção ocorra por desconhecimento, talvez Mantegna nunca tenha visto, ou não saiba de fato o tamanho de um leão, mas a impressão que fica na composição geral da tela é de que o leão fica acuado na presença do santo, como se, apesar de sua força física, a fera virasse um mero animal doméstico. Nesse sentido a proporção tem uma função simbólica, que se confirma quando lemos essa passagem da vida de São Jerônimo.
Certa vez, ao cair do dia, quando Jerônimo estava sentado com seus irmãos para escutar a leitura sagrada, de repente entrou no mosteiro um leão que mancava. Vendo-o, todos os irmãos fugiram, mas Jerônimo foi ao seu encontro como se ele fosse um hóspede. O leão mostrou que estava ferido na pata e Jerônimo chamou os irmãos, ordenando-lhes que lavassem a pata dele e procurassem atentamente o lugar da ferida. Assim fazendo, descobriram que espinhos haviam machucado a planta da pata. Todo cuidado foi dedicado ao leão, que, curado, passou a morar com eles quase como um animal doméstico. [4]
As incoerências de São Jerônimo penitente aos ditos princípios do Renascimento (essa mistura de humanismo e princípios medievais e do gótico internacional) parecem mais regra do que exceção na Itália do quattrocento, mas talvez saltem mais aos olhos em trabalhos menos renomados e conhecidos.
Se por um lado, há de fato semelhanças – que poderíamos chamar de “unidade” – na produção de alguns artistas do período que buscaram ativamente propor para si um novo modelo de representação; por outro lado, não há uma regra fixa quando o assunto é a pesquisa poética em pintura. Nas palavras de Argan: “Se o antigo não é repertório de modelos a serem imitados, mas a consciência histórica do passado e de sua inevitável relação com o presente, não admira que cada artista tenha o próprio ideal do antigo e como este não possa ser avaliado senão como componentes de diversas poéticas.” [5]
Roberta Pedrosa

NOTAS:
[1] Breve mas verídica história da pintura italiana. São Paulo: Cosacnaify, 2005.
[2] Aproveito aqui para fazer um parêntesis, sobre a ideia de um “Renascimento italiano”: a Itália tal qual conhecemos hoje não existia, cada região ou mesmo cada cidade tinham autonomia e tendências específicas. O que é comumente denominado de renascimento italiano, especialmente em um primeiro momento, é bastante restrito a Florença (com algumas exceções como os afrescos de Giotto em Pádua). A região da Itália Setentrional, na qual viveu Andrea Mantegna, no século XV, era muito mais próxima das tendências do gótico internacional e sofreu mais influência do centro da Europa do que propriamente de Florença.
[3] Página 827. VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea – a vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
[4] Página 828. Ibid.
[5] Página 135. Giulio Carlo Argan, História da Arte Italiana: De Giotto a Leonardo – v.2. São Paulo: Cosacnaify, 2003.
BIBLIOGRAFIA:
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico Anticlássico: o renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
__________________. História da Arte Italiana: De Giotto a Leonardo – v.2. São Paulo: Cosacnaify, 2003.
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
GOETHE Johann W. Viagem à Itália S.P. Companhia das Letras, tradução de Sérgio Tellaroli; 2005.
LONGHI, Roberto. Breve mas verídica história da pintura italiana. São Paulo: Cosacnaify, 2005.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea – a vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.