O pequeno teatro de Hitchcock

Dois homens, Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger), assassinam um ex-colega de estudos, David (Dick Hogan), a fim de interromper o seu noivado com Janet (Joan Chandler) e reatá-la a Kenneth (Douglas Dick), outro de seus amigos. Isto é feito dentro do apartamento dos assassinos que, a seguir, realizam uma festa de despedida para Philip, que parte para uma temporada de concertos como pianista. Além de Janet e Kenneth, bem como da presença da governanta Sra. Wilson (Edith Evanson), são esperados como convidados Rupert (James Stewart), ex-professor de todos os homens, bem como de David, que é aguardado junto a seu pai (Cedric Hardwicke) e mãe – que, doente, será substituída pela tia do rapaz (Constance Collier). Evidentemente, David morto, jazendo em uma arca na mesma sala em que a festa acontece, não se fará presente para os outros, que ignoram a sua morte. De uma série de inquietações com o seu atraso e desaparecimento, surge o conflito que é levado a fundo por Rupert, suspeitando que há algo por trás do nervosismo que toma conta de seus anfitriões. Assim se resumem os princípios narrativos de “Rope” (1948), de Alfred Hitchcock.

Diferentemente de outros de seus filmes, Hitchcock dispensará em “Rope” a centralidade da montagem comum à sua obra, filmando-o como um único plano-sequência e preservando na própria técnica do filme a continuidade espaço-temporal dos eventos dramáticos, já contida na peça teatral homônima de Patrick Hamilton, que adapta. Para tanto, registrará as ações até o limite de duração de cada rolo de filme e dissimulará as passagens entre uns e outros através de um truque sutil que consiste na aproximação da câmera às costas de quaisquer umas das personagens, escurecendo a tela até que um novo movimento, no rolo seguinte, volte a afastar-se retomando a ação, em questão de segundos. Entretanto, se a princípio a contenção da proposta sugere um projeto de fácil realização, as dificuldades técnicas se impõem e a escolha pelo plano sequência requer uma série de adaptações práticas de objetos e maquinários do estúdio, tornando o filme extremamente dispendioso ao realizador/produtor – relação significativa das funções aqui atribuídas a Hitchcock, uma vez que neste projeto seus problemas se tornam absolutamente complementares.

Ao todo, “Rope” irá requerer dez dias de ensaios com câmera, atores e iluminação, dezoito dias de filmagens e mais nove dias de refilmagens. Jamais, em um dia, se conseguirá mais de um plano válido para a montagem final. A solução passará, portanto, por uma série de artifícios possíveis pelo aparato do estúdio. A princípio, de modo a estabelecer a localização destes eventos na cidade de Nova York, irá se dispor no centro da sala onde a festa acontece uma grande janela por trás da qual uma grande maquete, “três vezes maior do que o cenário propriamente dito”, representará um panorama da cidade, com grandes prédios e até mesmo “nuvens feitas de vidro”. De modo a movimentar as paredes e os móveis do cenário e permitir a passagem da câmera para acompanhar a ação, “pequenas rodinhas” serão instaladas por baixo de cada um deles, fazendo-os correr de maneira imperceptível sobre um “piso especial” que abafaria os ruídos sonoros, evitando também a sua interferência no registro do som direto. “Assistir à filmagem era um espetáculo em si!”, o realizador dirá a François Truffaut em “Le Cinéma selon Alfred Hitchcock” (1966).

Posta esta contextualização, “Rope” se inicia com o único plano de toda a sua duração que se passa do lado de fora do apartamento de Brandon e Philip. Por trás dos créditos que passam, vemos a movimentação em rua discreta da cidade. Há uma música cujo tom acompanha esta mesma trivialidade, fazendo tudo passar como simplesmente mais um dia comum, ensolarado, propício a um passeio ao ar livre. Entretanto, após a introdução do nome de Alfred Hitchcock, um novo movimento na música altera toda esta ambientação inicial e, aos poucos, a câmera realiza uma panorâmica, direcionando-se às cortinas fechadas do apartamento em cuja varanda se situa: então, ouvimos um grito e a ruptura de tom se completa. A partir de um corte, estamos no interior do apartamento, e a primeira imagem que vemos é um primeiro plano de David, do qual a câmera se afasta para revelar o seu estrangulamento pelos outros dois: já está morto. Calmamente, estes colocam o corpo no interior de uma arca nesta mesma sala, mantendo-o no apartamento até o momento ideal. O espectador hitchcockiano, desde cedo, é não somente testemunha, mas cúmplice desse crime, posto ao lado dos seus protagonistas e compartilhando seus planos e passos.

Se, do lado de fora, a vida transcorre de modo ordinário, as personagens que no apartamento assassinam a sangue frio devem procurar, a seguir, manter estas mesmas aparências da normalidade do mundo exterior. “Que tarde adorável”, diz Brandon, extasiado, enquanto abre as cortinas, revelando o extenso panorama da cidade por trás das janelas e iluminando todo o apartamento. É a inauguração de seu teatro particular e o início de sua representação, quando veste sua máscara de dândi e finge nada ocorrer dali em diante. Philip, entretanto, se posta traumatizado junto à arca, num aparente e imediato arrependimento do assassinato. Em sua falta de máscaras (sempre demonstrando uma ausência de personalidade particular, submisso às ordens do companheiro), jamais poderá atuar da mesma forma, apresentando-se vulnerável e temeroso a qualquer sugestão relativa ao assassinato. Pois é ele quem, com a corda no pescoço de David, executa o assassinato, e por isto é quem mais há de sofrer de arrependimento. Brandon é quem o planeja e, em um primeiro momento, suas motivações impressionam, de maneira admirável e cruel, pois em nada ele se assemelha a um assassino ordinário. “Sempre desejei ter mais talento artístico” e “O poder de matar pode ser tão satisfatório como o poder de criar”, são as suas primeiras justificativas. Por trás de sua ação, há, portanto, uma justificativa intelectual que faz dela um conceito e, no limite, tal como ele o pretende, uma obra de arte.

A ocasião especial pede champanhe e a proposta de um brinde à David será a máxima ironia de Brandon, selo de sua ação diabólica, dedicando à sua homenagem a festa que acontecerá a seguir: afinal, é também o seu funeral. Antes, um último preparativo se faz necessário, quando este coloca os castiçais sobre a arca e decide servir sobre ela a comida, segundo Brandon, “transformando a obra de arte em obra-prima”. Desde o princípio, portanto, a morte, em si, já não constitui mais qualquer motivo de suspense para o espectador, confrontado com ela desde o início: o suspense passa a existir no acompanhamento dos passos seguintes dos assassinos, que logo receberão convidados para a festa marcada. Tal como Brandon a planeja, esta não poderia ser uma festa qualquer. Sob o pretexto da despedida de Philip, que parte em viagem para uma série de concertos de piano, e de entregar algumas primeiras edições de livros raros ao Sr. Kentley, pai deste mesmo David assassinado, são convidados apenas aqueles cujas relações têm em comum com o próprio morto. A festa colocará em xeque as suas possibilidades de saírem ilesos e, conseguindo-o, será a consagração de seus atos.

Philip e Brandon

A chegada do primeiro convidado da festa, Kenneth, e a sua entrada acompanhada por um travelling em sua direção, imediatamente surpreende o espectador pela sua grande semelhança física com o David apresentado brevemente no início do filme. Kenneth estranha que lhe ofereçam champanhe e pergunta se é o aniversário de alguém, ao que Brandon, com um sorriso malicioso, responde: “na verdade, é quase o contrário”. A seguir, a propósito da despedida de Philip e dos livros, justifica que estão “matando dois coelhos com uma cajadada só”. O duplo sentido desta frase, aparentemente despretensiosa para Kenneth, é evidente ao espectador, pois naquilo que se refere às verdadeiras intenções de Brandon os “dois coelhos” são o assassinato de David e a reunião de Kenneth e Janet, que a morte do primeiro permite. Ignorando estes fatos, Kenneth responde: “I hope you knock them dead”, desejando boa sorte a Philip na empreitada e acrescentando humor à passagem.

No sentido de reavê-lo com Janet, Brandon dissimula a Kenneth o seu conhecimento do noivado, dizendo a ele que não se preocupe, pois não iria durar muito tempo. Logo, Janet também chega e, em breve, se revoltará com o convite feito, simultaneamente, para que David e Kenneth estivessem presentes na festa, dizendo a Brandon que era “capaz de estrangulá-lo”. Ademais, Brandon a informa sobre o convidado ilustre que irão receber, Rupert Cadell, editor de livros de filosofia e antigo professor de todos estes na escola, sobre o qual Brandon discorre com admiração, distinguindo-o como única figura que reverencia, dono de teses distintas, como o fato de que “considerava o assassinato um crime para a maioria, mas um privilégio para alguns poucos”. Em sua vaidade, confia que Rupert reconhecerá o seu “trabalho” e anseia ser por ele “descoberto”. Entretanto, de maneira significativa, dele se distingue nos momentos iniciais, ainda sozinho junto a Philip, declarando que Rupert não teria coragem levar essas ações adiante, enquanto ambos “matam pelo perigo e por matar”.

A seguir, chega o Sr. Kentley e a Sra. Atwater, tia de David que, míope, tão logo entra na sala enxerga em Kenneth a figura de seu sobrinho, enganando-se como antes se enganou o espectador e chamando-o pelo nome equívoco. A câmera, entretanto, não se engana, e nesta segunda vez o travelling ultrapassa a Kenneth, revelando Philip atrás dele e se detendo na taça de champanhe que se quebra e fere suas mãos, após um gesto impulsivo. Afinal, se esta associação não é novidade para o espectador, ela é para Philip, que se aterroriza tão simplesmente em ouvir a mulher falar o nome do morto, como se ela tivesse visto algo que denunciasse a sua presença no espaço. “Tem estudado?”, pergunta o Sr. Kentley a Kenneth, complementando após uma resposta positiva: “a semelhança é apenas física”. A seguir, lamenta a falta de comprometimento intelectual de seu filho, que só estuda “para as provas de tênis”. Logo, uma personalidade avessa às exigências de Brandon e possível motivo de seu imenso desprezo intelectual, pelo qual considera que David não merece fazer parte do círculo de relações sociais distintas que cria ao redor de si. Não restarão dúvidas, conforme identificado pelo próprio Sr. Kentley, mais tarde, que suas teorias de superioridade estão inevitavelmente associadas ao nazismo.

Kenneth e Philip

Uma vez que este é um filme que apresenta um conflito propriamente intelectual, todas as suas personagens são também intelectuais e, nisto, a tia de David serve como contraponto, figura completamente alheia às discussões que apreende superficialmente. Seus modos, pretensamente elegantes e refinados, parecem apenas vulgares. Em um primeiro momento, como “astróloga amadora”, diz a Janet que “os astros indicam” o seu casamento com David, ao que o Sr. Kentley responde que já lhe havia contado sobre isto a uma semana, denunciando a falsa previsão. Mais tarde, entretanto, outra de suas previsões ganhará um sentido inquietante, quando propõe uma “leitura” das mãos de Philip e afirma, em referência a sua carreira de pianista, que “estas mãos lhe trarão grande fama”. Para ele, as palavras se referem, evidentemente, ao que suas mãos causaram mais cedo e, assim, procura ocultar seu pânico colocando-as em uso ao tocar piano.

É neste exato momento que a entrada de Rupert em cena surpreende não somente os presentes, mas também o espectador, sem que sua introdução ao apartamento fosse mostrada como a dos outros convidados, mas apenas pela panorâmica que revela a sua disposição sob o umbral da sala, observando às outras personagens. Logo, Rupert se apresenta como uma figura misantrópica, desprendido de valores de bom-comportamento social, incomodando os convidados que veem como grosserias as suas tiradas cômicas. Desde o princípio, questiona a Brandon sobre o champanhe servido, ao que este responde com nervosismo sobre a ocasião especial, que não convence a seu ex-professor. “Sempre que você ficava excitado, gaguejava”, Rupert lhe diz, como uma primeira constatação de que há algo por trás deste encontro.

Primeira aparição de Rupert

Imediatamente, é servida uma ave assada como jantar, que todos compartilham, menos Philip, que afirma a Janet não comer frango. “Curiosa, Janet o indaga o motivo e ele, indiferente, diz que não há nenhum. Rupert, entretanto, lembra-se de uma história que poderia explicar o caso e, cheio de humor, Brandon relata que um dia “Philip quebrava pescoços de galinhas para o jantar, mas, uma delas, como Lázaro, se levantou”. A referência bíblica tem um sentido imediato, pelo temor de Philip que David não esteja morto de fato – mas, acima de tudo, pela lembrança de um estrangulamento anterior que repercute no atual. Philip desmente efusivamente a história, como se a fala sobre este estrangulamento indiretamente se referisse à morte de David, afirmando nunca ter estrangulado uma galinha sequer.

Em meio a visível perturbação de Philip, corta-se para um primeiro plano de Rupert, que se prolonga em um olhar desconfiado e analista das negações do pianista que continuam a ocorrer fora de quadro. Pela primeira vez, a montagem se torna evidente e a passagem entre o pavor de Philip e a frieza analítica de Rupert se dá de maneira absolutamente direta. Hitchcock, aqui, trai a sua lógica de exposição anterior para evidenciar o efeito dramático que o confronto propriamente dito entre duas imagens pode trazer. Sua escolha pelo plano sequência não é uma vaidade estética e nem se resume à transposição da representação teatral a um modelo cinematográfico. Estamos longe do “teatro filmado”, pois trata-se, aqui, de um filme em que a câmera desempenha um papel tão importante quanto o de seus interpretes, em que ela se imiscui no cenário e se movimenta de modo constante, tal como se fosse, também, uma convidada da festa. Acima de tudo, é ao propor a continuidade absoluta das imagens, na formação de blocos que demarcam a continuidade espaço-temporal do filme, que as rupturas dramáticas que ali acontecem se tornam mais evidentes – e o corte, sem dissimulações, adquire maior profundidade dramática. Afinal, se Hitchcock aspira à unidade “teatral”, isto se dá simplesmente à medida de que, no interior desta continuidade mesma, seja possível tornar evidente o que há de mais propriamente “cinematográfico” em sua abordagem. A montagem se torna, assim, um novo elemento introduzido na forma do filme, ao qual estamos “desprevenidos”, de certa forma.

Corte para o primeiro plano

Esta passagem determina também uma mudança de perspectiva dramática fundamental ao filme, em que Rupert torna-se, efetivamente, protagonista, enquanto Brandon e Philip se transformam em coadjuvantes nas cenas a seguir. Se, a princípio, o aspecto conceitual por trás do assassinato é capaz de seduzir o espectador, é a partir do momento em que Rupert desconfia que há algo errado, possibilitando a descoberta do crime, que as expectativas se invertem, voltando-se a este novo esforço intelectual de observação e interpretação dos gestos e objetos que estão à sua frente, que deve ser maior que o primeiro, à medida de superá-lo.

Surge, então, uma ocasião propícia em que Rupert fala, por conta própria, sobre suas teorias do assassinato, das quais Brandon antes havia se gabado frente à Janet, como motivo de orgulho em relação ao antigo professor. Sua abordagem, entretanto, diferentemente da interpretação literal que Brandon faz delas, tem um sentido puramente hipotético e absolutamente humorístico, divertindo a todos ao redor. É aqui que entra o “Assassinato como uma das belas artes” de De Quincey e se distancia o “Super-homem” (Übermensch) de Nietzsche. Rupert é, efetivamente, “uma farsa”, “alguém sem coragem de levar a cabo a ação”, como diz Brandon. Suas teorias são “arte”, pois não se presta a qualquer propósito efetivo, sendo somente pretexto para a representação cômica que apresenta aos convidados da festa. Interpretando uma personagem, Rupert parece parodiar as teorias que exaltam os ânimos de Brandon, que dá continuidade aos argumentos em sentido muito mais grave, deixando até mesmo seu antigo professor desconfortável. Rupert é o artista que Brandon deseja ser, mas não é.

O grupo se dispersa e cada um vai atrás das sobremesas que estão sendo servidas. Em pequenas reuniões, os diálogos que acontecem pouco a pouco colocam abaixo as intenções de Brandon: Janet e Kenneth se questionam sobre o esforço do anfitrião para reuni-los ali novamente e, em pouco tempo, percebem as contradições de suas falas, a falha em sua representação, revelando parte de seu plano. Mais adiante, enquanto Philip toca o piano, sozinho e fragilizado, será questionado por Rupert a propósito da negação anterior, enquanto Brandon está com os outros na sala adjacente, tratando dos livros que o Sr. Kentley viera buscar. A luz do abajur que o professor acende aos olhos de Philip e o metrônomo que por ele será ligado (denotando o caráter de interrogatório policial desta cena) tornarão Philip mais nervoso com as perguntas que lhe são feitas por Rupert, que o viu, em outra ocasião, “demonstrar as suas habilidades” com as galinhas. Esta passagem, chave para o direcionamento detetivesco desta narrativa, cresce quando, ao final, Philip se distrai horrorizado ao perceber a corda amarrada nos livros que o pai de David carrega, reconhecendo ali o “toque final” de Brandon, que oferece ao Sr. Kentley o próprio instrumento usado para tirar a vida do filho. Se, como Brandon diz no começo, a corda é um artigo doméstico ordinário, é justamente a reação de Philip que revelará algo por trás do objeto, tirando dele qualquer aparência natural e inofensiva; o que ele justificará afirmando que os livros estão “mal amarrados”. Em uma investigação baseada nos objetos e reações das personagens, o susto a partir de um algo tão banal quanto uma corda é o que, de uma vez por todas, denuncia a Rupert a ligação deste com o crime.

Após uma ligação da mãe de David, os convidados começam a se preocupar com o paradeiro do jovem e Sr. Kentley, a pedido de sua esposa, decide voltar para casa para ligar para a polícia. Ouvindo esta palavra, Philip novamente se amedronta, o que é percebido por Rupert ao seu lado. Todos começam a ir embora, bem como o hesitante Rupert que, ao buscar os seus pertences junto à governanta, veste por engano um chapéu muito menor, que percebe não ser o seu; neste momento preciso, um travelling se direciona ao interior do objeto, onde estão marcadas as iniciais “D.K.”. Esta prova final deixa Rupert atordoado, saindo sem ao menos se despedir, aparentemente convencido, a despeito de todas as desculpas oferecidas pelos anfitriões, de que um crime efetivamente ocorreu.

Assim, após Brandon e Philip pedirem para que tragam o carro da garagem até o apartamento, acreditando ter se safado de toda a sua empreitada e preparando-se para finalmente evadir com o corpo, estes são surpreendidos pela volta de Rupert, a propósito de ter esquecido a sua cigarreira. Obviamente, isto não será senão um pretexto para se fazer novamente ali e levar a fundo sua investigação. Sua desculpa não persistirá, pois sua interpretação não é suficientemente convincente para iludir os assassinos, que se mantém atentos a todos os seus gestos. Instigado por Brandon, que acha engraçada a hipótese levantada por Janet de que os dois haveriam raptado David, Rupert começa a detalhar os passos que teria tomado nessa situação “hipotética”, enumerando-os um a um, de modo a fazer crer que estaria de acordo com um tal procedimento – por um breve momento, o suspense de todo este final estará na concordância ou não de Rupert com estas atitudes, se ele deixará ou não impune o crime que descobre que seus ex-alunos cometeram.

Aqui, a câmera assumirá o ponto-de-vista de Rupert, dispondo-se subjetivamente aos elementos que ele descreve e fazendo projetar nos móveis e no espaço as ações que teriam acontecido enquanto a câmera estava ainda fora do apartamento, no primeiro plano do filme. Se antes já nos identificávamos com este personagem, que se revela aí o nosso herói, agora a identificação é completa, pois “vemos” do mesmo modo que ele “vê”. Quando a câmera chega finalmente à arca, Brandon entra em quadro e sua mão no terno é focalizada em primeiro plano, indicando que segura uma arma. Imediatamente a seguir, um novo corte seco para um primeiro plano da reação de Rupert, ao que uma panorâmica transforma novamente este plano em seu ponto-de-vista; novamente, a câmera acompanha seu olhar, perpassando os novos detalhes de sua argumentação, cujo rumo é alterado propositalmente, ao perceber a ameaça. Provar com exatidão como a ação ocorreu seria fatal neste momento, pois o perigo de sua própria morte é eminente; Rupert aguardará o momento preciso para inverter a situação e, por enquanto, finge não saber onde o corpo de David poderia ser escondido. A tensão que se acumula é extrapolada por Philip, que atira sua taça para longe e expressa: “Gato e rato, gato e rato: mas qual é o gato e qual é o rato?”.

Diante da exaltação de Philip, Rupert se arrisca a mais um passo adiante na investigação, afirmando nunca ter pensado que Brandon poderia fazer algo com David, se não fosse o revólver que estivesse guardando em seu bolso. Brandon o justifica sorridente, a propósito de estar levando a arma para a casa no campo, onde houveram roubos recentes, deixando-o de lado, sob o piano. “É estranho como se transformam fatos simples em fantasias”, diz Rupert, a seguir retirando do bolso a corda que, implicitamente, buscou junto ao pai de David fora do apartamento, para desespero dos assassinos. Após um confronto físico com Philip, Rupert terá a arma por sua vez e assumirá o controle deste desfecho dramático. Cansado, afirma que verá o que existe dentro da arca. “Eu espero que goste do que verá!”, é a resposta de Brandon. No movimento de abertura da arca ocorre, finalmente, a passagem para o último plano do filme, que se inicia com o olhar horrorizado de Rupert após haver descoberto o corpo que jazia ali. Como uma última tentativa de salvação, Brandon assume sua inspiração pelas teorias de Rupert, que apenas então se torna consciente de seu papel no assassinato, defendendo um comportamento moral radicalmente contrário às suas teses e denunciando o seu fracasso intelectual anterior. Mesmo que seja impossível salvar o rapaz morto, é pela prisão e sentença de morte àqueles que o assassinaram que Rupert poderá, então, livrar-se a si mesmo.

Tal como o grito no começo do filme ocorre somente após a câmera se voltar à janela, desde logo nos avisando que o perigo não está na rua, mas no interior deste espaço privado, os três tiros disparados por Rupert para fora do apartamento nesta última cena são como a “quebra da parede” deste teatro particular inaugurado pelas cortinas abertas por Brandon, permitindo agora a entrada das vozes que anunciam a chegada do crime ao público, tornando-o imediatamente um fato social e rompendo o pequeno círculo das relações antes apresentadas. Em um último gesto, Rupert senta-se em uma cadeira na “boca de cena”, postando-se de costas para a câmera, enquanto, de arma em punho, observa os criminosos à espera da polícia chegar – como se, para fechar definitivamente as cortinas, acima dos joguetes das personagens, o filme devesse voltar a se revestir do que originalmente possuía de mais teatral.

Matheus Zenom