De l’autre côté (2002)

“In this decayed hole among the mountains / In the faint moonlight, the grass is singing / Over the tumbled graves”

T.S. Eliot, The Waste Land

Em um determinado momento de De l’autre côté (2002), vemos uma mesa de jantar em que há um grupo de imigrantes mexicanos sentados. A câmera está posicionada frontalmente (como é o costume dos outros relatos filmados por Akerman ao longo do filme), mas há uma diferença primordial desse relato em relação aos outros: é a primeira vez que vemos o grupo de imigrantes como, de fato, uma força coletiva (apesar de apenas um dos membros dirigir-se à câmera e falar). Nos outros momentos, as falas sobre as agruras e as tentativas de ir “para o outro lado” se dão de maneira individual, com a entrevista sendo feita apenas por uma pessoa. É claro que nessas entrevistas a memória de outras pessoas é evocada, mas elas nunca estão materialmente em campo, somente nas falas, nas lembranças, nos sonhos interrompidos de uma vida melhor. Nesse jantar, o homem que fala, centralizado no enquadramento, lê uma espécie de “manifesto” destas pessoas. É um momento de posicionamento. As pessoas que o rodeiam estão cabisbaixas, ouvindo o que o homem fala. Até que, repentinamente, no lado direito do quadro, vemos um homem reagir ao discurso: limpa suas lágrimas e seus olhos, assoa o seu nariz. Então, o interlocutor diz: “só peço a Deus que nos ampare e que nos perdoe por nossas invasões. Do nada viemos e ao nada voltaremos. Isso é tudo.” Como é costumeiro nas outras entrevistas do filme, a montadora Claire Atherton e Akerman decidem manter um momento de silêncio, em que não há mais nada para dizer. É somente aí que as outras pessoas sentadas na mesa (inclusive o homem que chorava) levantam a cabeça e olham por cima da câmera, muito provavelmente para a própria diretora do filme. Estão esperando que ela diga algo também? Talvez. Mas isso nós não sabemos, pois a resposta se dá a partir de um corte: saímos da mesa de jantar e passamos a observar um dos muitos travellings laterais do filme, neste caso mostrando um dos muros que separa o México dos Estados Unidos. Por entre as frestas do muro, as luzes de um poste elétrico, que teima em atravessar essas fendas.

Nesse primeiro parágrafo, a estrutura de De l’autre côté acaba de ser resumida. O filme se relaciona a partir de dicotomias constantes, mas principalmente entre o embate do indivíduo e do discurso com o espaço e o silêncio. Vemos várias entrevistas, feitas por pessoas diferentes, em contextos diferentes, mas sempre com o mesmo tema: a imigração ilegal aos Estados Unidos. Akerman, por sua vez, sempre filma essas entrevistas da mesma maneira: frontalmente, quase sem profundidade alguma de campo. A outra parte do filme, por sua vez, é composta majoritariamente por planos observacionais de exteriores, em que o horizonte não tem fim, e vemos o cotidiano das pessoas ao redor daquelas montanhas. Quando há fala, não há espaço para observar, só escutar; quando há possibilidade de observar, não há o que escutar.

Os planos de exteriores têm, ainda, dois tipos diferentes de abordagem: uma delas é a do plano estático, digno de um filme de James Benning; a outra parece um retorno de Akerman à estrutura de outro filme dela própria: D’Est (1993), um filme composto quase que exclusivamente por travellings laterais. No caso de D’Est, no entanto, o que acabamos por ver são os indivíduos, enquanto aqui os travellings laterais são quase sempre o motivo do sofrimento dessas pessoas, aquilo que as separa “do outro lado”, dos Estados Unidos da América: o muro. Chantal Akerman filma a divisão quase sempre nesse movimento lateral, como se esse próprio muro se estendesse infinitamente. E, de fato, no universo de De l’autre côté, a dor e o muro não têm fim. Acompanhamos as pessoas que morreram, as que ficaram, as que querem atravessar, tudo isso para ter uma melhor qualidade de vida, minimamente digna e justa. Não é de hoje que sabemos que um dos atos mais políticos que um diretor de cinema pode realizar é um travelling, e nesse filme Chantal Akerman radicaliza ainda mais essa discussão eterna da cinefilia. Ao filmar o muro infindável, Akerman nos mostra que a única opção de o ultrapassar é derrubando-o. Não é possível que exista um lado de cá nem um lado de lá se as condições para que isso aconteça são essas filmadas por ela.

Vale a pena ressaltar outra jogada entre Atherton, a montadora, e Akerman, a diretora: acontece numa das primeiras entrevistas feitas no filme, com uma senhora que perdeu seus dois filhos em tentativas de imigração. Da mesma maneira que a cena do jantar termina com silêncio e com o olhar das pessoas para o fora de campo, a fala emocionada da senhora também acaba em mudez. O que é tão emocionante, entretanto, não é somente o seu silêncio. O que ocorre? Um corte. Vemos outra pessoa, dessa vez um homem, em outro lugar (o enquadramento continua frontal). Ao invés de começar falando, a entrevista começa em silêncio, com o homem limpando suas lágrimas e justificando sua dificuldade de falar sobre o assunto. Atherton e Akerman unem os silêncios dessas duas pessoas a partir desse corte. No silêncio uníssono percebemos a força da dor compartilhada, da dor que poderia ter sido evitada. É na consonância dos silêncios, também, que a possibilidade de mudança reside. É preciso falar, é preciso ficar em silêncio, é preciso mostrar e é também preciso esconder. É também preciso percorrer o muro que separa os dois lados.

Chantal Akerman, entretanto, atravessa o muro e termina o filme mostrando os estadunidenses da mesmíssima maneira que mostra os mexicanos: frontalmente, majoritariamente em interiores. Porém, há pouquíssimo silêncio, porque há pouquíssima dor. O que vemos dentro dos restaurantes, naquele mesmo enquadramento frontal, é uma bandeira vermelha, azul e branca hasteada. O que escutamos quando aquelas pessoas falam são em grande parte atrocidades, posições absolutamente preconceituosas sobre a presença de imigrantes na terra (desolada) que só pertence a eles. O mais curioso é que os planos de exteriores são similares, nem parece que estamos em outro país: as montanhas, a areia e até as crianças brincando estão lá também. Contudo, Akerman encerra o filme na escuridão, em um travelling frontal, em que vemos uma estrada e a iluminação dos carros que a percorrem. Em voz off, escutamos a sua voz contando a história de uma imigrante desaparecida, que nem o filho nem Chantal sabem do paradeiro, mas que talvez a tenham visto de volta ao México. Ninguém sabe onde está a mulher. Chantal Akerman disse que acha que a viu uma vez, mas provavelmente foi uma miragem.

Paulo Martins Filho