A imagem cinematográfica, assim como a fotográfica, pode ressaltar as especificidades de um objeto ou generalizá-lo. Filma-se aquele objeto, como essa caneca vermelha e metálica que tenho na minha mesa, ou um/o objeto, uma caneca. Aquela pessoa, o Matheus, ou uma pessoa, um homem. A natureza indicial do aparato cinematográfico torna seu olhar tão subjetivo quanto o nosso, sendo possível projetar em sua imagem a maior das abstrações e idealizações ou a maior aparência de neutralidade possível.
A ficção hollywoodiana, especialmente no passado, buscou, na maioria dos casos, este olhar mais genérico, abstrato, totalizante, por muitas vezes através de esteriótipos, reforçando alguns já existentes ou até mesmo estabelecendo novos. Em prol da narração (muitas vezes de cunho moral), personagens são reduzidos à tipos, e não desviam muito de curvas esperadas. Outro dia vendo Human Desire (1954) de Fritz Lang fiquei pensando quem era de fato essa personagem de Gloria Grahame, de que maneira ela ria, sobre o que falava, do que gostava. Mas nada disso interessa ao filme, ela é simplesmente a esposa jovem e bela de um marido velho e ciumento. Não pretendo, com isso, criticar o filme ou Hollywood. Apesar de não considerar um dos melhores de Fritz Lang (talvez, sim, também por conta disso), acredito que há uma coerência clara entre o que o filme deseja e como esses personagens são construídos – também não apontaria esse aspecto como uma regra na filmografia de Fritz Lang, em um filme como The Secret Beyond the Door (1947), até mesmo por sua narrativa incomum, os personagens são mais complexos, mais específicos, ainda que caiam em alguns clichês da narrativa psicanalítica da moda da época.
Desde os anos 60, quando, entre outros fatores, a tecnologia de filmagem ficou mais leve possibilitando-se filmes mais “artesanais”, aquela camada grossa de ficção e universalização que pairava sob os clássicos de Hollywood parece ter se tornado não apenas mais fina, mas mais maleável. Nos anos finais da Hollywood clássica, essa camada ficcional parece ter passado por um período em que era utilizada quase como um comentário de si mesma. Em um filme como Vertigo (1958) observamos as diversas facetas dessa ficção dentro da própria ficção. Em um filme como Johnny Guitar (1954), vemos seus esteriótipos confrontados ao serem reconfigurados. Alguns anos mais tarde, saindo de Hollywood, em um filme de Jean-Luc Godard começamos a ver pessoas que entram e saem de suas camadas ficcionais, que vestem a ficção, que varia de tom como uma troca de roupa, e em um filme de Éric Rohmer vemos pessoas que quase não carregam uma camada ficcional. É a diferença do que vemos quando olhamos Marilyn Monroe em Gentlemen Prefer Blondes (1953), uma mulher (ou uma loira), e Marie Riviére em Rayon Vert (1986), aquela mulher (onde a personagem Delphine poderia muito bem se chamar Marie, enquanto Lorelei Lee é um nome costurado à persona da personagem de Marilyn). É claro que, talvez assistindo os filmes uma segunda ou terceira vez, podemos também ver Marilyn em suas especificidade, e Marie Riviére em sua universalidade, mas suas personagens são evidentemente construídas de formas muito distintas afinal o trabalho das atrizes é distinto, o modo de narrar é distinto. O filme de Howard Hawks não busca um naturalismo em seus diálogos rápidos, muito menos Marilyn em sua Lorelei de voz afinada e sexy; essa camada parece inclusive cair por um segundo quando Lorelei indica que apenas se faz de burra para os homens, o que poderia muito bem ser Marilyn dizendo o mesmo para todos seus espectadores – afirmando o óbvio, afinal, que era uma atriz performando papéis.
Até aqui falo de filmes que trabalham bem esses aspectos, que sabem quando estão lidando com um estereótipo ou com algo específico, com o artificial ou com o natural, com o ficcional ou com o documental (termos que, apesar de uma associação evidente, estão longe de ser sinônimos e que raramente se encontram em estado “puro” em um filme). Acredito que uma ignorância quanto a esses aspectos seja um dos grandes problemas do cinema das últimas décadas. Apesar de grande parte do “cinema de arte” ou “cinema de festivais” buscar, desde os anos 60, mostrar o específico, e mais ainda desde os anos 90, a retirar as camadas de artificialidade da imagem cinematográfica, não é o que na prática se observa. Agravada ainda com os discursos engessados que costumam cercar as pautas identitárias nos últimos anos, a especificidade no cinema contemporâneo parece funcionar, paradoxalmente, como um artifício para uma aparência mais “documental”, “realista”. Os planos são mais próximos, as câmeras balançam mais, os diálogos são menos formais e assim se “monta” uma realidade específica artificial – que portanto nada tem de realidade, tampouco de específica.
Este não é exatamente um apelo à especificidade. Acredito que por vezes o artifício seja um caminho muito mais interessante, seja em Hitchcock, De Palma, Verhoeven, Carpenter ou Tarantino, e um que talvez esteja vivendo uma crise ainda maior, os filmes propositalmente artificiais e interessantes hoje são ainda mais raros. Mas se o caminho escolhido for a especificidade, esta precisa ser trabalhada a partir da realidade, junto à feitura do filme. Quando não se observa o objeto filmado mas deseja-se falar sobre ele em um nível específico, íntimo, supostamente real, acaba-se aplicando a intimidade como uma fórmula, nem um pouco diferente dos roteiros hollywoodianos, com a exceção de que estes em geral não se pretendem buscar a realidade – além de que, no caso da Hollywood clássica, esses roteiros eram extremamente bem elaborados. A realidade específica adentrou no cinema contemporâneo mas apenas como tema, como substituta das grandes histórias.
No livro Vidas Imaginárias, de Marcel Schwob, ou em um filme de Werner Herzog, desde a história semi-original de Aguirre, passando por uma releitura como Nosferatu, até algo sem precedentes como Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans nos surpreendemos com a imprevisibilidade dessas vidas contadas, desses personagens que parecem soltos em um mundo que os determina, carregados para destinos arbitrários. Suas vidas não são necessariamente grandiosas mas são singulares, e como coloca Schwob, aí é que reside o nosso interesse: “A arte é contrária às ideais universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único. Não classifica; desclassifica. Pelo tanto que nos interessam, nossas ideais universais podem até ser similares àquelas vigentes no planeta Marte, e três linhas cruzadas formam um triângulo em qualquer ponto do universo.” – como explicitado anteriormente, diferente de Schwob não acredito que toda a arte seja contrária às ideias universais, mas acredito ser o caminho mais interessante a se percorrer em uma biografia, ainda mais em uma auto-biografia.
Em filmes recentes como “Call me by your name”, “Roma”, “Lady Bird”, nos quais supostamente estaríamos vendo histórias únicas, pessoais e íntimas, parecemos ver imagens feitas por algoritmos alimentados por “palavras-chave”. É curioso, assim, que as histórias supostamente tão distintas de um jovem se descobrindo gay na casa de campo dos pais nos anos 80 (Call me by your name), uma empregada de uma família rica mexicana nos anos 70 (Roma), e uma adolescente californiana nos seus últimos anos de escola no começo dos anos 2000 (Lady Bird), sejam tão previsíveis, tão próximas de tudo aquilo que já vimos. Esses filmes parecem não olhar para seu próprio conteúdo e trabalham a imagem como uma mera ideia perpassada, palavras soltas num roteiro. O que conta é meramente que o conteúdo generalizado esteja ali e não como mostrá-lo ou suas particularidades. A especificidade parece estar presente apenas no fato de que o roteiro, que é filmado como outro “filme de arte” (ou filme de Sundance) qualquer, é semi-auto-biográfico, o que na prática significa apenas que compartilham uma vaga semelhança com porções das vidas desses cineastas. O mesmo roteiro que em si contém os mesmos conflitos e turning points tradicionais, só que mal colocados e sem a força das grandes histórias.
É claro que nos exemplos de Schwob e Herzog, há uma busca por vidas extraordinárias enquanto nos outros casos buscam-se realidades íntimas e corriqueiras. Mas quando penso em exemplos da literatura contemporânea que seguiram uma corrente semelhante, a da “auto-ficção”, como Elena Ferrante e Karl Ove Knausgaard, ambos os quais priorizam a intimidade e vulnerabilidade, penso na importância da forma para ambos os autores. Esta com certeza é mais perceptível em Knausgaard, que discorre não linearmente sobre sua vida em relatos, paisagens e ensaios, mas não deixa de ser extremamente trabalhada em Ferrante, na forma límpida e ao mesmo tempo neutra e extremamente tenra que olha para seu passado (ou partes dele, como não sabemos ao certo quem é a autora).
Observo, então, dois filmes que também poderiam ser enquadrados nesse “gênero” da auto-ficção, ambos dos anos 90, Buffalo 66 de Vincent Gallo, e Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles de Chantal Akerman. Ambos semi auto-biográficos, ambos com formas narrativas tão específicas quanto suas histórias. Em Buffalo 66 temos, por exemplo, inserts de vídeos caseiros durante um diálogo da família na mesa de jantar, este filmado de uma maneira extremamente anti-naturalista, planos com a câmera centralizada em cada personagem de tal forma que não seria possível todos estarem ao mesmo tempo naquela mesa, e com um humor peculiar que consiste basicamente em evidenciar como os pais do personagem o tratam mal. Temos ainda momentos performáticos, como cenas de um musical, que irrompem de uma história que poderia estar em um thriller ou uma comédia mas acaba sendo um drama. Em Portrait d’une jeune fille temos uma boa parte do filme apenas de diálogos falados de forma rápida e seca, também anti-naturalista, enquanto os personagens andam pela cidade. Ao longo do filme também temos momentos mais musicais, incluindo uma longa cena de jovens dançando em uma festa, durante a qual as cartas são postas na mesa sem diálogos, apenas pela troca de casais dançando e troca de olhares, onde percebemos tanto o desejo coibido da protagonista por sua amiga quanto a improbabilidade de concretizá-lo.
Ambos são filmes únicos na História do cinema, em forma e em conteúdo, pois as duas coisas estão tão entrelaçadas que é difícil ver onde acaba uma e começa outra. É impossível imaginar suas histórias sem suas estruturas, tons e performances específicas. O anti-naturalismo e os momentos performáticos e musicais em ambos os filmes também evidenciam a possibilidade de uma abordagem específica sem a necessidade de uma naturalidade na representação, de um aspecto “documental”; a consciência, enfim, de que ainda que pessoal e específica, trata-se de uma representação.
Talvez a questão temporal seja de grande importância aqui, levando-se em conta que os dois filmes se passam na duração de um dia, enquanto os três exemplos anteriores abrangem semanas, meses ou anos. Talvez a condensação temporal exacerbe o conteúdo específico, afinal, o que há de mais específico do que um dia peculiar na vida de uma pessoa particular? Ou talvez esse efeito de condensação temporal funcione por desestruturar a estruturada esperada da biografia. Ao invés de escolher os “melhores momentos” ou momentos que se encaixem de tal forma a contemplar um arco narrativo clássico, esses filmes se constroem de forma orgânica – o que não se resume ao improviso, essa forma orgânica pode ser prevista no roteiro – e pontual, como diz Schwob: “A arte do biógrafo consiste justamente na escolha. Não lhe cabe a preocupação de ser verdadeiro; ele deve criar em meio a um caos de traços humanos.”.
Se pegamos outros filmes próximos temporalmente, como Les Baisers de Secours (1989) de Philippe Garrel e L’eau Froide de Olivier Assayas, percebemos a diferença entre uma busca verdadeira por uma especificidade na tela e sua simulação. Em Les Baisers de Secours o protagonista, interpretado pelo próprio Garrel, deseja fazer um filme sobre sua vida, onde pretende buscar uma atriz para interpretar sua esposa, interpretada por Brigitte Sy, esposa de Garrel, que deseja interpretar a si própria e se incomoda com a situação. A realidade da produção entra em conflito com o próprio conflito ficcional do filme, uma vez que Brigitte Sy está, afinal, interpretando a si mesma – ainda que os personagens tenham outros nomes. O filme parece confirmar que é impossível se retratar um conteúdo pessoal, íntimo, específico, sem pensar em uma forma pessoal, íntima e específica e assim, não apenas constrói sua narrativa de forma orgânica à vida “biografada”, mas de forma ainda meta-linguística, semelhante àquela que será reelaborada por cineastas iranianos como Mohsen Makhmalbaf e Abbas Kiarostami.
À primeira vista Olivier Assayas pode parecer um grande precursor de um cinema mais íntimo e específico, mas o grão da película engana. Em L’eau Froide parecemos assistir a uma versão enfadonha de um coming of age americano. Como tantos coming of age, supostamente lida com a angústia de um casal de jovens ao demonstrar seus contextos familiares problemáticos, mais especificamente, aqui, as consequências que os dois sofrem após roubarem juntos um disco. De maneira que hoje é tão familiar, o filme parece dispor uma série de situações recorrentes do sub-gênero completamente esvaziadas de conteúdo. Nem a menina ou o menino tem um jeito particular de falar, andar ou se vestir, nem falam sobre nada meramente memorável. Até as múltiplas músicas que tocam no rádio são todas genéricas, “hits” dos anos 70, à exceção de Nico – talvez o momento em que a música de Nico toca seja o mais especial do filme, talvez apenas lembre um filme de Garrel. É curioso pensar que em coming of age clássicos como Rebel Without a Cause ou Sommaren med Monika, por mais pré-estabelecidos que sejam seus personagens, ainda conseguem passar uma angústia da juventude e uma presença concreta de seus espaços com muito mais intensidade e especificidade; tanto o personagem de James Dean quanto Monika se tornaram icônicos mas nasceram específicos – é difícil definir até que ponto dialogam com certos “tipos” do jovem americano ou sueco da década de 50 ou se não foram os próprios filmes que consolidaram estes estereótipos.
O filme ainda veste a roupa de “cinema de arte” com mais destreza do que os contemporâneos (ou talvez, novamente, o grão da película engane), mas possivelmente por isso mesmo consiga ser ainda mais incômodo. A câmera se movimenta de maneira aparentemente arbitrária pelas paredes, revelando seus personagens de forma oscilante, não como Tarkovsky que também filma paredes para revelar texturas e camadas ou como nos filmes de Hou Hsiao-Hsien, onde em seu interesse evidente pelos aspectos plásticos e sensíveis das cenas, o minimalismo da representação torna-se ao mesmo tempo um hiper-realismo destas. No caso de Assayas este movimento da câmera parece ser completamente dissociado da narrativa, como se uma ausência completa de ímpeto formal fosse revelar melhor um conteúdo, entretanto revela apenas a parede de relance, sem se atentar a esta, sem detalhes, sem drama, não há sequer um sentimento de vazio, seria impossível com os hits tocando no rádio. Me parece apenas uma maneira de manter a câmera em movimento, de fingir uma mise-en-scéne. A parede parece significar o mesmo que a folha em branco no final do filme – nada.
(Assayas, entretanto, pelo menos tenta e falha, enquanto Call me By Your Name, Roma e Lady Bird nem chegam a tentar criar algo novo pois já contam com o sucesso garantido pela empatia de seus temas e pelo “atestado de qualidade” de seus diretores devido a recorrência de seus nomes em festivais e premiações – e no cinema de festivais parece que basta colocar assuntos em cena para lidar com eles)

Paula Mermelstein