Algumas considerações sobre “Cuidado Madame”

“Cuidado Madame” (1970) é um filme que sugere muito mais perguntas do que respostas, em que jamais se pode ter certezas absolutas, prezando acima de tudo pela inquietação. Seu comprometimento se dá com a ausência de comprometimento mesmo – e seus questionamentos voltam-se à própria natureza da comunicação que se está por fazer. “Por fazer”, e jamais completa, encerrada, ainda que um forte de coerência lhe esteja presente, garantindo-lhe uma abertura interpretativa que fundamenta esta mesma comunicação. Este filme de Júlio Bressane comunica, deve-se bem dizer, mas o faz principalmente por aquilo que não está ali evidente, cuja ausência é a principal marca de desígnio daquilo que se manifesta, tantas vezes, apenas pela sua sugestão. É no que está fora que ele se baseia, da ficção que está fora do registro e do registro que está fora da ficção. É pela abstração que este chega à concretude e pela concretude que ele chega à ficção.

Assim, “Cuidado Madame” dispõe seus elementos dramáticos, dispersos em meio ao fluxo de sua apresentação, sem jamais articular-se em uma dramaturgia propriamente dita, em uma ordem de progressão que introduza as suas problemáticas de uma maneira linear ao seu espectador. Mais do que uma progressão, deve-se dizer, o filme confia em um acúmulo, em um sentido que passa a se estabelecer somente a medida que se tem uma apreensão mais completa de sua unidade. Desta maneira, o que temos? Duas atrizes, Helena Ignez e Maria Gladys, representando empregadas domésticas, em uma caracterização tipificada que se volta ao puro jogo lúdico da atuação. Quais são as suas ações? Uma série de assassinatos em cumplicidade, em meio a diversas perambulações, passeios, conversas que a câmera observa à distância e que o registro de som deixa mesmo de apreender por completo. O que as ameaça? A polícia, certamente, que, no entanto, deixa de ameaçar, manifestando-se somente em sua ausência de ação, em sua presença somente superficial, como instituição de poder que não o cumpre, sem figuras de representação, sem indivíduos. E onde isto se dá? Copacabana, é claro, no ano de 1970, com toda a sua representação se desenvolvendo em um espaço bastante restrito, de três ou quatro ruas, a partir dos elementos materiais que ali se articulam nas ações desenvolvidas por suas duas personagens. 

Neste filme, nada se “quer dizer”, mas, simplesmente, “diz aquilo que é”, a partir de uma absoluta abertura às possibilidades contingentes de intervenção da realidade que se associa à uma “ficção pura”, em que o peso dramático das ações e a “moral realista”, frequentemente, não intervém, por um artifício que despreza a conotação moral da realidade elementar desta morte, quando o seu interesse se volta simplesmente à caricatura da histeria agônica da morte, em um jogo lúdico de atuação. “Ficção pura” que se afigura como um elemento fundamental, uma vez que não se parte de uma narrativa, de um roteiro a seguir, mas sim do pretexto destes assassinatos, em torno do qual se articulam suas cenas. No entanto, é importante dizer que, tal como o filme o aborda, não trata de uma espetacularização deste assassinato, mas de um olhar crítico justamente ao fetiche de mostrá-lo, às tentações de se representar esta violência em sua realidade material. É pelo caráter negativo da sua mostração, pela ausência do ato implícito na tela, que no limite ele é capaz de mimetizá-lo pela repetição de uma mesma imagem do corpo já morto e estirado, resultado de uma ação passada que não se viu e nem se verá, disposta por uma repetição e fixação insistente, pelo escrutínio da câmera sobre a sua superfície, como a atestar que nesta personagem a vida já não mais existe. Ao expressar a ameaça contra estas personagens e os crimes que vêm cometendo, Bressane limita-se a mostrar somente os carros da polícia parados e vazios, sendo a sua imagem a da sua própria ausência de indivíduos e a sua aparência suficiente para apontar a inércia deste poder que jamais se cumpre e que permite que estes crimes continuem a ocorrer.

Aqui, então, este aspecto material do filme constitui um elemento central, não apenas quanto à sua locação de filmagem, mas pelo que diz respeito às propriedades relativas ao trabalho cinematográfico em si, na duração dos seus planos, na insistência da procura pela ação, nas tentativas de recriação das cenas no interior de uma mesma continuidade filmada. A câmera, que se poderia considerar como uma de suas personagens principais, atuando de maneira extremamente alinhada às presenças físicas das atrizes, seja em um movimento a favor ou contrário, se dispõe frontalmente aos fenômenos, dispondo-se à eles, ao invés do contrário convencional, em um registro que a todo o momento procura pelo ordinário e não pelo particular, que sai em busca não daquilo que possui um interesse específico e pitoresco, mas pelo banal, pela vida cotidiana, abrindo margens enormes para a contingência. Pode-se dizer que esta contingência mesma é o motivo pelo qual o filme parece não perder jamais a qualidade de seus efeitos, jamais esgotar-se em seu próprio jogo, ao mesmo tempo em que este jogo exige também a participação ativa do espectador, que deve estabelecer as relações entre os elementos pelos quais assimila esta narrativa, jamais imposta ou dada, simplesmente, pelo realizador. Se, além disto, este filme é também um documento de uma época e de um lugar, isto se manifesta de tal modo que não se prende a este dado temporal específico, não se mostra dependente desta contextualização simplesmente, não se torna apenas passado, mas é como se, desde então, deste lugar e tempo, ele continuasse a comunicar, permanecendo até hoje em construção e jamais fechado em si mesmo, jamais resumido e muito menos reduzido a ser apenas um “dado histórico”.

Assim é que a ficção surpreende como contraponto de um registro objetivo, documental, de um tempo e um lugar, pelo que é o caráter irreal da sua narrativa, das suas ações, dos seus eventos, da liberdade destas personagens, da caricatura, da ausência de moral. O filme, afinal, existe apenas a partir deste tensionamento entre a ficção e o documental, sem margens que os reparem, sempre realizando passagens sutilíssimas e inesperadas entre um e outro, sempre as atrizes ou a câmera procurando evadir-se, romper esta relação, para que no plano seguinte ela possa voltar a ser construída. Ou, no limite, que esta relação seja rompida e restabelecida no interior de um mesmo plano, como no plano do calçadão em que Ignez e Gladys somem em meio aos passantes na profundidade de campo, para retornar alguns minutos depois, gerando um momento de absoluta suspensão que se manifesta como a imagem decisiva de seus procedimentos estéticos e que representa muito bem uma retomada e um desdobramento daquilo que já estava presente no plano final de “O anjo nasceu”. Pois o documento nunca é simplesmente fundo aqui, mas sim um de seus objetos principais, uma vez que a performance de suas atrizes não pode ser dissociada desta relação direta com o espaço em que ela se dá, pois esta representação se constituição das interações, das relações que se constroem no interior destes espaços, do preenchimento do tempo mesmo, do vazio, do rolo do filme a ser emulsionado.

O filme revela o seu próprio dado material de produção, a sua própria feitura, posta em evidência, também pelas pessoas que se juntam ao redor da câmera, que passam a sua frente ou que interagem com suas atrizes demonstram as contingências de uma produção que não se dá em um circuito fechado aos estritos interesses do filme, mas imediatamente disposta e exposta à realidade ordinária, a um mundo indiferente a este filme que é feito, que não para para a sua realização, e que sobre ela intervém positivamente, revelando também a precariedade deste sistema de produção, a sua carência, a sua redução às menores estruturas possíveis. Assim, tantas vezes, há um aspecto de material bruto neste filme que revela a sua filmagem “ao vivo”, sem interrupções no rolo do filme, na repetição de takes em continuidade, em tentativas de movimentos de câmeras, na repetição de certas ações, sem que se interrompa a filmagem para iniciar logo depois uma nova tentativa. Veem-se, assim, as tentativas de se dar conta de uma determinada passagem, de um determinado objeto, cujo sucesso de apreensão deveria ser guardado pela montagem e utilizado na construção narrativa do filme e cujas sobras, em qualquer outra montagem convencional, seriam naturalmente descartadas, uma vez que este sucesso já realizaria suas intenções pretendidas. Aspecto material ao qual se contrapõem as cartelas que iniciam o filme, cuidadosamente ali dispostas, pela sua particularidade, seu preciosismo, sua delicadeza plástica, seja na tipografia como na transição entre os planos, que se contrapõe absolutamente à estética de todo o filme e se dispõe tal como uma moldura necessária para atribuir ao filme uma credibilidade, para encerrá-lo nos limites desta apresentação, garantindo-lhe uma credibilidade que toda sua materialidade filmada irá procurar renegar.

Se aqui não há uma decupagem estabelecida a priori e câmera e atrizes se encontram sob uma enorme liberdade de movimentação, jamais o filme se deixa prender a uma fixidez de relações estabelecidas de abordagem; ao contrário, o que se mostra, por fim, é uma extrema inteligência que se impõe a cada vez por suas variações, estabelecendo maneiras distintas de se apreender esta matéria narrativa que desenvolve. É quando esta câmera se dissocia das personagens em muitos destes planos, assumindo plenamente seu elogio ao plano geral, que de maneira mais evidente esta potência do registro documental se manifesta, em que o extra-fílmico adquire um lugar de destaque, como o principal motivo em que o filme se detém. É por estes planos que se vê também em que medida a mise-en-scène de “Cuidado Madame” está articulada a partir das pequenas ações realizadas pelas duas atrizes e a escolha da câmera de dissociar-se ou segui-las até o fim, tal como tantas vezes parte de outros objetos para encontrar estas personagens ou as deixa para se dispor a outros objetos. Existem, em realidade, diferentes percursos que se desenvolvem, diferentes caminhos pelos quais a câmera chega a abordá-las, por “improvisações” que enfatizam, antes de quaisquer propósitos dramáticos propriamente ditos, suas “variações sobre o tema”, apontando, para além das cenas cantadas e dançadas aí muito presentes, também um filme “musical” pela sua própria estrutura de sua representação.

Matheus Zenom