Entrevista com Darezhan Omirbayev

Esta entrevista foi conduzida no dia 6 de agosto de 2022, no lobby do Ibis Hotel Locarno, em inglês e russo, com a tradução de Yuliya Kim, a quem agradecemos. Gabriel Linhares Falcão conversou com Darezhan Omirbayev a respeito dos seus últimos dois filmes, o longa-metragem “Poet” (2021), exibido no Brasil pelo Festival Olhar de Cinema, e o curta “Last Screening” (2022), que estreava mundialmente em Locarno na ocasião desta entrevista. Além dos lançamentos, buscamos ouvi-lo não apenas como diretor, mas conhecer mais de seu lado cinéfilo, sua atuação como professor, seus trabalhos com a crítica e com a matemática antes de começar a fazer filmes.

Darezhan Omirbayev em “Poet” (2021)

Gabriel Linhares Falcão: Você parou de fazer filmes por quase dez anos, e agora, felizmente, você voltou com dois novos. O que você fez durante esses anos?

Darezhan Omirbayev: Foi por motivos pessoais, porque primeiro minha mãe morreu e depois minha esposa. Então, eu estava numa crise na minha vida e não podia filmar mais nada. Mas durante todos esses anos eu continuei trabalhando na faculdade de cinema e ensinando a novos jovens cineastas.

GLF: Sinto muito pelo que aconteceu com a sua família. Eu gostaria de lhe perguntar se a experiência com o ensino mudou sua abordagem nos filmes. Como são suas aulas?

DO: Eu ensino história do cinema, o que é muito importante. Meus estudantes são críticos de cinema e diretores. Não mudou em nada as minhas filmagens. É um tipo de trabalho que você pode fazer entre os filmes, para sobreviver.

GLF: Os cinéfilos brasileiros ficaram felizes por “Poet” ter sido exibido online no Festival Olhar de Cinema. Neste filme, um poeta não consegue viver de sua poesia. E nesse novo filme que você está exibindo aqui em Locarno, “Last Screening”, você também está lidando com um jovem aspirante a artista. Ambos apresentam visões muito pessimistas, mas, por outro lado, eles ainda parecem considerar uma força possível de sobrevivência contra as circunstâncias.

DO: Ficamos felizes de exibir “Poet” no Brasil. Nós podemos olhar para isso de maneira global e podemos falar sobre criatividade. Para resolver todo problema, nós precisamos fazer algo criativo e toda sociedade precisa disso em algum nível. Por exemplo, essa é a uma história que aconteceu com um amigo meu:

Em um local de construção, muitas pessoas precisavam apresentar seus relatórios para serem aceitos para o trabalho. Havia uma mulher que estava recebendo esses documentos e lá estava o meu amigo, que era o último da fila, e haviam muitas moscas. A mulher disse: “Não aguento mais essas moscas!”. O meu amigo percebeu e saiu, atravessou a rua e foi em uma loja comprar uma tela para mosquitos para a janela. Então, ele voltou e foi entregar a tela para a mulher ao mesmo tempo que os relatórios, e ela os assinou imediatamente. Então, você precisa ser criativo para resolver os problemas. Quando não há criatividade assim, tudo que nos resta é a nossa cultura de vivência, nossa tolerância, e não há criatividade nisso, apenas a nossa civilização e cultura. Baseado apenas em cultura, nós não podemos criar nada e não podemos ir longe. Apenas com a criatividade, que acompanha a arte, nós podemos seguir adiante.

GLF: Em seus filmes, sonhos e salas de cinema abrem portas para escapar da realidade. Em “Last Screening”, você faz uma comparação entre a tela da sala de cinema e as múltiplas telas presentes na nossa vida cotidiana. Seus trabalhos sempre pareceram muito materiais e este estabelece um diálogo com o mundo virtual, de algum modo. Você poderia comentar sobre esta mudança?

DO: Os sonhos dão uma chave para o mundo interior de uma pessoa e eu penso que a arte moderna também deve ajudar as pessoas, deve ser esta chave para sua personalidade interior. As pessoas têm essas telinhas com elas apenas porque elas vivem neste mundo computadorizado agora. É um fato e é bom filmar isto. Eu não estou julgando a internet e o telefone, nós temos de viver com isto, e eu sei que não posso resistir ou ser contra isto.

GLF: Você falou sobre arte moderna, sonhos e cinema. Você tem interesse no surrealismo, seja como movimento ou como teoria? Existe um impacto dessa arte nos seus filmes?

DO: Sim, eu adoro “Un Chien Andalou” (Luis Buñuel, 1929). Meus trabalhos têm muito de sonhos neles e alguns deles são inteiramente feitos como sonhos. [Andrei] Tarkovski também me mostrou que se pode mostrar os sonhos de alguém em um filme.

GLF: Nós sabemos muito pouco sobre a sua cinefilia e as referências que você tem.

DO: Em primeiro lugar, é [Robert] Bresson. Eu tenho todos os seus filmes e livros. Foi ele quem demonstrou que o cinema não é teatro, mas uma arte totalmente diferente e explicou, pelo menos para mim, que é melhor filmar pessoas de verdade do que pessoas atuando. Eles podem ser atores profissionais ou não-profissionais, mas de qualquer maneira você filma uma pessoa. Se o ator é interessante para mim por conta de sua personalidade, então eu trabalho com a sua personalidade, mas isso não tem nada a ver com a sua experiência de atuação.

“Last Screening” (2021)

GLF: Como foi sua experiência como cinéfilo no Cazaquistão? Haviam dificuldades para ver filmes diferentes quando você era um estudante, um aspirante a cineasta?

DO: Eu nasci em uma pequena vila e lá havia apenas um cinema. Uma vez exibiram um filme que se passava no Brasil, “Capitães de Areia” (“The Sandpit Generals”, 1971), que toda a União Soviética assistiu. Nós assistíamos principalmente filmes soviéticos, mas também haviam filmes dos Estados Unidos, Índia, França, Irã, Brasil, Japão e alguns outros países. Hoje você não consegue mais encontrar filmes do Irã, do Japão e desses outros lugares.

Eu não sei quanto ao Brasil, mas no Cazaquistão não existem muitos cinéfilos que assistem aos meus filmes. Os cazaques assistiam principalmente Bollywood, mas hoje em dia vêem Hollywood e, algumas vezes, comédias cazaques.

GLF: Qual é a sua relação com a crítica de cinema? Eu li que você costumava ser crítico e que também publicou textos sobre teoria do cinema.

DO: Antes de fazer o meu primeiro filme, eu trabalhei por dois anos como crítico de cinema. Antes disso, eu estive trabalhando como matemático. Eu acredito que conheço muito bem a história do cinema. Os textos que eu costumava publicar devem estar provavelmente em alguns jornais, mas você os encontraria apenas em alguma biblioteca no Cazaquistão, porque é algo muito antigo. Eu fiz o meu trabalho de formatura sobre [Pier Paolo] Pasolini, sobre o seu texto “Cinema de Poesia”.

GLF: Você elaborou muitas ideias como crítico que iria pôr em prática como cineasta?

DO: Como [Michelangelo] Antonioni certa vez falou: “Um ator não deveria ser inteligente demais, senão ele corre o risco de se tornar um cineasta”. Para os críticos, se você cavar demais, você corre o risco de se tornar um diretor, como [Jean-Luc] Godard ou [François] Truffaut. Eu suponho que eu cavei demais, então eu acabei como diretor.

GLF: Você se formou em Matemática na Universidade. Isto está implicado na maneira como você cria os seus filmes? É algo que influencia sua montagem e decupagem?

DO: Eu acredito que a matemática dá a uma pessoa um ponto-de-vista. As teorias matemáticas nunca irão envelhecer e são uma beleza da ciência. O cinema também é uma arte moderna e, principalmente, uma arte urbana. De alguma maneira, eu vejo uma conexão entre as duas. A linguagem do cinema é feita de diferentes imagens, mas quando você as põe lado a lado, algumas vezes isto te dá uma solução bonita, e algumas vezes isto me faz pensar na resolução de algum problema matemático ou em encontrar alguma solução arquitetônica. Para fazer um filme, há sempre uma meta que você deve atingir – por exemplo, mostrar a dor, mostrar o calor, mostrar a felicidade. Na matemática, você sempre deve resolver um problema e eu vejo que há um paralelo entre isto e quando você encontra uma maneira de dirigir uma cena e como mostrar a dor, o calor ou alguma outra emoção, você tem o sensação de ter resolvido um teorema matemático ou algo assim.

GLF: Isto é o que me lembra o cinema de Bresson, precisamente.

DO: Godard também tem isso. Para filmar uma cena, é preciso encontrar uma solução diretorial. Quando eu era jovem, li uma coisa do Antonioni em que ele dizia que uma vez havia escrito uma cena em que um trabalhador batia na esposa em sua casa, e então mostrou isto a um trabalhador de verdade, que disse que não faria isso. Ele disse que bateria na sua esposa na rua. Então Antonioni entendeu que era provavelmente melhor reescrever o personagem e pensou que um secretário que fingia ser um bom marido poderia bater na esposa dentro de casa. Mas um trabalhador “machão” poderia bater na esposa no meio da rua para que todos vissem.

Então, o diretor deve ter uma ideia e saber como desenvolvê-la em cada cena. Em comparação, por exemplo, com a cinética, você pode ser ruim em fazer contas, mas se você sabe resolver ou conhece o caminho para resolver um problema… se você tem um entendimento sobre como filmar uma cena, você irá fazer isso, mesmo que os atores não sejam bons atores ou que os outros aspectos técnicos não sejam perfeitos, você pode fazer uma boa cena de qualquer modo se você sabe o caminho, para onde quer ir. Por exemplo, em “Poet”, uma das minhas ideias diretoriais era que a única garota que aparece na leitura do autor fosse uma garota com problema de gagueira e isso diz muito sobre a personagem.

Há uma cena de assassinato em “Student” (2012) e para mostrá-la eu filmei uma florzinha que estava abaixo da janela de um carro, que estava reagindo à luz e estava abrindo e fechando. Em “Last Screening”, nós precisávamos filmar o protagonista se movendo de ônibus ao longo do filme e havia uma questão sobre como nós poderíamos mostrar isso, e eu pensei que seria interessante mostrar as telinhas das personagens ao longo da estrada.

GLF: “Last Screening” parece um filme-carta. A quem você está endereçando esta carta?

DO: Aos cinéfilos de todo o mundo e aos cinéfilos do Brasil.