Dramaturgia de “Barão Olavo, o Horrível”

Em “Barão Olavo, o horrível”, filme de 1970 de Júlio Bressane, percebe-se uma construção dramatúrgica distinta de outras obras do realizador, ainda que esta jamais se complete em um sentido convencional, mantendo sempre um aspecto lúdico, autorreferente e mesmo banal. A partir de um núcleo dramático bem definido, sob o peso das relações e da divisão de funções entre os seus personagens, o filme guarda a tensão de um conflito que pode a qualquer momento se configurar e aos poucos revela a lógica das suas movimentações pelos cerceamentos deste universo diegético.

Dono do casarão neocolonial e de todas as terras nas quais a narrativa se passa, detentor de um poder que submete todas as outras personagens às suas intenções, Barão Olavo (Rodolfo Arena) é uma figura abjeta, que come a sujeira dos pés e a terra do jardim com uma colher. É abjeto, principalmente, pelo aspecto mais “horrível” que aqui se desenvolve: a sua necrofilia, que acompanha uma série de mortes de jovens mulheres que ocorre na região, explicitadas já em uma de suas primeiras cenas, em que todos os personagens se encontram reunidos em um funeral.

Dentro de sua casa, há uma personagem interpretada por Isabella, cuja função dramática não é muito bem estabelecida – mas que é, possivelmente, a atual esposa do Barão. Outra personagem, Isabel (Helena Ignez) – da qual o Barão em determinado momento esclarece não ser o pai, mas ex-marido de sua mãe, já morta –, é sempre acompanhada de Ritinha, personagem de Lílian Lemmertz, que, seja como babá ou enfermeira, afirmam de maneira mais precisa o poder (econômico) do Barão, definindo com mais profundidade a organização social do pequeno núcleo de personagens. Ambas, temendo as mortes ao seu redor, se aproximam e estabelecem um relacionamento amoroso que continuará até o final e será determinante para as relações dramáticas que o filme deve traçar.

Há ainda o Padre, que também é coveiro e cuja função dramática principal é ajudar o Barão a dispor dos corpos para violá-los; e, principalmente, um personagem interpretado por Guará, que aparece somente em duas ou três cenas logo no início, alertando a todos, bem como ao espectador: “As coisas vão mal! Cuidado com o Barão!”. Enquanto os outros personagens apontam para um núcleo de relações sociais fechadas, Guará o expande para uma sociedade que está fora do âmbito desta casa. Sua presença tem, acima de todos os outros, um caráter mais fortemente teatral, como uma espécie de coro, no sentido de que através dele se projeta a existência de uma sociedade ao entorno do recorte dramatúrgico do filme, a quem ele alerta – bem como ao espectador – instituindo, desde um primeiro momento, o conflito dramático ao redor do Barão e o mal que ele representa.

Vemos apenas uma destas mortes ocorrer, a da personagem de Isabella, estrangulada na sala do casarão pelo Barão e que sugere que todas as outras possam ser também de sua autoria. Morte por estrangulamento, é preciso dizer, a morte mais física, mais “atuada”, mais gestual e que melhor valoriza as relações entre os seus atores – a mais adequada, portanto, ao filme que Bressane constrói. Se é lúdica a representação de Bressane, é importante dizer que ela não foge às relações materiais e se baseia, tão simplesmente, em sua máscara mais primordial: o ator, em sua mais imediata materialidade e expressão. Aqui cada um deles interpreta de maneira bastante distinta um do outro, sem compromissos definidos, implicando outro conflito, de caráter propriamente formal, que surge a partir destes próprios modelos distintos e da dinâmica que se configura em suas relações cênicas. O caráter lúdico que marca esta atuação se evidencia na cena em que o Padre repete por diversas vezes a frase “Eu sou o melhor ator do mundo”, como se quem o dissesse fosse o ator que o interpreta e não o seu personagem, dissociação presente por vezes no filme e que aponta também um gesto de distanciamento na sua representação.

Esta condição, essencial para compreender a natureza de “Barão Olavo”, se expressa também no que diz respeito à imagem do filme, em que, ainda que em certos momentos se imponha um rigor de composição, este compete com uma precariedade do registro que tende a escapar às suas tentativas de formalização. Em primeira instância, esta precariedade se dá na própria postura da câmera que, tantas vezes, possui movimentações irregulares, trepidantes; depois, é a própria inserção deslocada de algumas das falas e dos sons artificiais normalmente associados ao “filme de terror”, como os uivos e os barulhos de vento que, sem qualquer tipo de referencial diegético, parecem tomados de um banco de arquivos ordinário, confrontando e ironizando estes mesmos propósitos narrativos, reconhecendo a todo momento o gênero a que nem parece se esforçar muito para emular.

Este é também o caso da imagem tantas vezes reincidente do trem fantasma no parque de diversões, que, dissociada da diegese estabelecida ao redor do Barão, parece ter tão somente a função de evidenciar o próprio gênero a que (não) corresponde, presença que aponta novas relações e aprofunda as possibilidades de significação para além dos atores, em um gesto de distanciamento em relação à própria narrativa. Neste sentido, o filme ri de si mesmo também em momentos como quando o Barão, violando a personagem de Isabella morta no caixão, diz “Eu sou terrível, eu sou terrível!”, enquanto Isabel olha e ri, explicitando também a falta de moral, a abjeção aqui presente – no que é, possivelmente, uma apropriação desconcertante da música de Roberto Carlos (“Eu Sou Terrível”) e, ainda, uma uma brincadeira com seu próprio título em referência aos créditos iniciais, em que a palavra “Horror” se substitui por “Terror”, desde o princípio um destaque ao gênero que promete assumir.

Na estrutura que pouco a pouco se forma, se impõe a repetição de algumas cenas deslocadas cujo entendimento é enigmático a priori, tornando ambíguo e imprevisível o seu direcionamento a seguir, mas que, pouco a pouco, encontram o seu lugar, em um movimento de ordenação das relações dramáticas. Este é o caso das discussões entre o Barão e a personagem de Isabella, que resultam em seu estrangulamento e que continuam a se repetir mesmo após ele já ter ocorrido, e, principalmente, da cena da morte de Isabel. Subitamente, ela se mata a primeira vez, mas logo já está viva e outras cenas com ela se passam, ignorando completamente a significação desta imagem anterior e evidenciando o deslocamento desta imagem em relação à cronologia. Será somente mais tarde, depois que o Barão, em um princípio de ameaça, diz que a viu com Ritinha, que se verá Isabel pegar a faca com a qual, no plano seguinte, repetição deste outras vezes visto, irá se matar. Então, se desenvolverão mais dois ou três episódios ao redor de seu corpo, confirmando esta morte e dando prosseguimento a sua conclusão dramática.

Logo, o corpo de Isabel será mais um dos que o Padre irá roubar, sendo flagrado por Ritinha e confessando, então, esta descoberta ao Barão. No entanto, logo na cena seguinte, esta descoberta não atrapalhará os planos do Barão e, junto da mesma Ritinha, eles irão violar o corpo de Isabel, fechando o círculo de relações entre estes personagens centrais pela chave da abjeção e da completa ausência de moral. Bressane, entretanto, não escandaliza, pois mantém uma decisiva distância de registro momentos: quando Ritinha sobe na cama, avançando em direção ao corpo de Isabel, o Barão abre a sua capa, escondendo tudo o que se passa a seguir, enquanto a câmera de Bressane também faz uma panorâmica deixando a janela pela qual observava esta cena interior e voltando-se para o jardim, mantendo como sugestão tudo aquilo que se passa em off.

Assim, quando, depois de ter seu corpo violado pelo Barão e por Ritinha, Isabel sai pela porta da casa junto desta, em uma lenta caminhada pelo jardim, no qual se beijam e abraçam lançando olhares e sorrisos à câmera, existe uma nova e completa ruptura com o tom anterior, que, no entanto, é imediatamente contextualizada pelo contracampo com o primeiro plano do Barão, a observá-las. Ao que parece, não se trata mais de uma recuperação de um momento anterior, deslocado cronologicamente, mas de uma continuidade em que se configura uma espécie de ressurreição de Isabel, bem como, no prolongamento destes olhares, o reconhecimento do espectador, provocado neste plano de gestos e movimentos medidos, de uma suspensão absoluta – de uma transcendência que marca o ponto culminante de todo este filme e que aponta, em certa medida, a uma espécie de fantasmagoria de sua representação.

Então, inicia-se uma sequência que será o epílogo do filme e romperá, finalmente, com todo o sentido dramatúrgico que anteriormente se desenvolveu, devolvendo o seu registro mais imediato e material: desprovidos dos nexos anteriores, das relações enquadradas pelo ambiente bucólico do casarão, seus personagens parecem saltar, de alguma maneira, da diegese para as ruas do Rio de Janeiro. Na transposição deste universo ficcional à realidade ordinária, dão continuidade às mesmas ações que anteriormente as definiam, e Guará, mesmo agora utilizando roupas comuns, continua repetindo a única frase que dizia em momentos anteriores, “Cuidado com o Barão!”, como se todas estas novas pessoas que encontra também devessem ser alertadas e a ameaça do Barão permanecesse, mesmo que sua figura se ausente destas imagens.

Matheus Zenom

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