Reflexões sobre o fazer artístico a partir da “Escola Polonesa de Pôsteres”
A real perda da transferência do meio de divulgação de cartazes das ruas para o meio virtual (mesmo que se possa argumentar o quão análogos são um do outro, ou quanto um está em vias de superar o outro) é a perda de sua qualidade de intervenção urbana. Hoje nas ruas não se vê mais espaço para a cultura do poster, tão presente e até indispensável para outros momentos históricos: do conflito armado ao do-it-yourself contracultural. O espaço agora é o da divulgação instantânea: o post, o tweet, as redes sociais e o clean design. O poster deixa de ter uma função clara e objetiva e pode agora tomar um novo lugar. Entendamos um caso histórico para que seja melhor exemplificado.
A década de 50 foi um momento de condições especiais para que florescesse no contexto específico da cortina-de-ferro uma forma de arte também muito específica. Um novo plano econômico da União Soviética previa um alto investimento na distribuição e produção cultural. Filmes, espetáculos teatrais e circenses, apresentações musicais. Foram construídos teatros, estádios e casas de ópera. Para isso, o Governo comissionava mais e mais pôsteres de divulgação dos eventos, delegando sua censura à comitês estatais que julgavam de confiança e expertise.
Com o incentivo certo e a ausência da competitividade da economia capitalista, o pôster deixou de servir à lógica da publicidade, perdeu sua função na venda de produtos e teve a pista livre para explorar seu potencial artístico. Com a “vigia” estando mais distante do núcleo central do Governo Soviético, houve um grande relaxamento da censura na área. Havia uma fatiga da burocracia soviética e os censores tomaram uma posição mais amigável com os artistas. Assim, claras alegorias políticas e ácidas críticas ao Estado passaram incólumes pela (não tão) ingênua censura.

Alguns valores culturais foram essenciais para que esta ebulição ocorresse neste recorte geográfico. É possível notar tempos antes um talento dos poloneses com a forma: “O Martírio dos Cristãos no Circo de Nero” de Jan Styka (1858-1925) tem clara influência da art nouveau, mas é ousado no seu estilo bruto, com formas fluidas e uma tipografia que se mistura totalmente como parte da composição artística. A Polônia, após tantas invasões, ataques e perseguições, parece ter formado uma crise identitária sobre a própria cultura, assim tendo uma necessidade de fortalecer suas imagens, seus símbolos e tradições. É uma das teorias, inclusive, para explicar o porquê de uma parcela tão significativa do país europeu se mantém fortemente católico.

Com estes fatores em mente, é mais compreensível como “Um Corpo que Cai” (1958), o classudo e rocambolesco filme de suspense dirigido por Alfred Hitchcock, inspirou o pôster expressionista de Roman Cieslewicz, retratando uma agonizante caveira vestida em um terno e com um colorido alvo na testa. A verdade é que, para os artistas do que se convencionou chamar “Escola Polonesa de Pôsteres”, pouco interessa representar o filme visualmente. A prioridade é sempre de formar uma perspectiva subjetiva e pessoal do artista sobre aquela obra, criando assim uma peça tangencial, mas independente.
E assim foi o caso dos pôsteres de “Os Pássaros”, “Narciso Negro” ou “Godzilla vs Hedora”, em que os artistas utilizavam ousadas experimentações, tipografias feitas à mão e metáforas visuais para transformar filmes comerciais internacionais em verdadeiras obras de vanguarda. Além, é claro, de contribuir fortemente para a formação de uma estética própria para suas produções nacionais. É inconcebível pensar um filme de Andrzej Wajda sem o pôster de um Jan Lenica ou um Wojciech Fangor.

Os pôsteres poloneses foram um crescente sucesso nas décadas que se seguiram, preenchendo as paredes cinzas das construções brutalistas com cores vibrantes e rabiscos expressionistas, fazendo com que a população, sedenta por cor, rapidamente “surrupiasse” os cartazes para pregá-los em algum ponto central de sua sala-de-estar. Uma verdadeira invasão ao espaço público. O pôster de Waldemar Swierzy para o filme “Blow Up” (1966) acumulava multidões de pedestres confusos que se aproximavam e afastavam dos murais para observar os pontinhos coloridos transformarem-se em uma mulher pop-art. Viraram uma preciosa exportação cultural. Exposições por diversos países foram organizadas em museus e galerias, aumentando o orgulho soviético e, consequentemente, o apoio estatal. O pôster, inevitavelmente intrínseco à sua época, é uma cápsula do tempo. E assim o movimento dissipou-se em meados dos anos 90, cristalizando-se como história e tendo como reminiscência possível a homenagem e a referência.

A verdadeira relevância deste movimento vai muito além do estilo, ele se integra e acrescenta à um antiguíssimo sonho de artistas idealistas através da história: uma integração tão profunda entre as artes e a vida que todos os processos estariam embebidos dos mais ricos espíritos criativos. Uma pesquisa que consumiu a vida de todos os Blaue Reiters do expressionismo alemão, mas não antes de coletarem algumas esculturas babilônicas, pinturas naif e sons da natureza profunda; tesouros espirituais. Os expressionistas alemães seguiam, sim, uma lógica diferente da destes artistas soviéticos que aqui pensamos, mas funcionam como um exemplo ideal desta busca.
Olhemos para a arte destes leste-europeus não com a curiosa visão do arqueólogo, mas com o faminto apetite do artista. Um fenômeno desses é tão ímpar na história moderna porque depende de algo que foi tão raramente conseguido: uma liberação da arte de qualquer lógica mercadológica. André Breton e Leon Trótski retomam, em seu texto “Por uma arte revolucionária independente”, uma ideia de Marx: “O escritor deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro.” É irônico que este texto seja um grande ataque ao regime soviético, enquanto é nele que foi possível este cenário que descrevo. Evidentemente, a ditadura facilitou para este grupo de artistas devido aos outros fatores que já comentei aqui, quando o mesmo não aconteceu para tantos outros, e muitas das críticas feitas por Breton e Trotsky são muito válidas.
A questão é que, deixando de ser meramente um produto, uma obra artística como um filme não tem mais suas barreiras delimitadas pelo tempo do início e do fim da exibição, está livre para explorar seu potencial múltiplo. Por ser vista de forma majoritariamente comercial, o cinema ainda tem uma imaturidade perante à outras artes, que já desafiaram esse limite há muito. Mais importante que o fechamento, é o processo, processo eterno que sempre se desdobra em novas existências.
Um interessante exemplo de obras que se utilizam desta liberdade em relação aos filmes são as pinturas que Roberta Pedrosa fez utilizando “O Cavalo de Turim” (Béla Tarr, 2011) como referência. Misteriosas pinturas de giz pastel que parecem menos uma imagem do longa e mais uma impressão retinal da pintora. Deixo aqui as palavras da própria:
“Como pelo menos desde 2019 eu vejo praticamente um filme por dia, eu sinto que essas imagens acabam por fazer parte do meu repertório visual, tanto quanto os objetos e paisagens reais que eu observo no cotidiano. Há uma grande diferença em desenhar a partir de uma fotografia (ou de um frame) e desenhar uma situação de observação. A fotografia está “resolvida” de certa maneira, parada, a lente da câmera já previamente traduziu os ângulos daquela imagem. Não quero que necessariamente tenha uma relação forte entre o desenho e o filme, que se procure uma relação que eu acho que não existe, para além de uma fascinação com um frame específico.”

A relação das pinturas de Roberta com o filme não é de significação direta ou referência; a pintura como um fruto da relação da artista com o filme, seja ela qual for.
Vinícius Dratovsky
Referências
Dorota Kopacz-Thomaidis. The Polish School of Poster.
André Breton e Leon Trótsky. Por uma arte revolucionária independente.