A pintura de Luc Tuymans

Há uma parcela da pintura figurativa contemporânea das últimas décadas que partilha de algumas características semelhantes o suficiente para que possa ser referida em conjunto, ainda que englobe obras de artistas essencialmente distintos, entre eles Luc Tuymans, Peter Doig, Marlene Dumas, Wilhelm Sasnal, Kerry James Marshall e Mamma Andersson.

Essa pintura é figurativa e, na maioria dos casos, óleo sobre tela – o que a aproxima inevitavelmente da tradição da pintura –, mas é informada por imagens reprodutíveis, processos análogos à montagem cinematográfica ou à colagem, e relaciona-se de diferentes maneiras aos ready-mades, aos objets trouvés e à arte conceitual. A relação que estabelece com o modernismo é ambígua. Por um lado, parece evitar as premissas utópicas, principalmente no que diz respeito à sua veiculação na abstração formal; por outro lado, essa pintura não é necessariamente contrária, por exemplo, à planaridade do meio pictórico (1) ou “a ênfase no toque, na textura e no gesto” (2), características da pintura moderna.

Essa pintura se dá, justamente, a partir da contradição entre planaridade e ilusão, entre matéria e imagem, objetividade e subjetividade, passado e presente. Este texto irá se ater a Luc Tuymans, artista belga que parece de certa forma encabeçar o conjunto e cuja obra evidencia algumas dessas principais contradições. Tuymans pinta a partir de outras imagens, fotografias, cartões-postais ou mesmo de outras pinturas e desenhos, por vezes de sua autoria, por outras não. Sua pintura, entretanto, está longe de um fotorrealismo, sempre deixando evidente seu aspecto pictórico, re-trabalhando os sentidos das imagens que parte nas condições específicas da pintura, que incluem sua carga material, histórica e, para usar um termo do pintor, shamanística (3). O que gostaria de observar aqui é, justamente, o que Tuymans faz a partir destas imagens pré-existentes, como ele sugere, através de diferentes recursos formais, possíveis sentidos e significados em suas pinturas.

1. Cascas Vazias

O que Tuymans busca ao pintar a figura humana – o retrato, mais especificamente – parece um bom ponto de partida para uma compreensão mais ampla de sua obra (ao menos da parcela mais interessante desta, que aqui será discutida e que vai até meados dos anos 90). Os retratos de Tuymans não buscam caracterizar as personalidades dos retratados, mas evitam qualquer tipo de  interioridade, buscando esvaziá-las completamente de qualquer vestígio de psicologia e pintando o que sobra: suas “cascas vazias”, como o próprio pintor as caracteriza (4). E o que seria a pintura se não uma casca vazia, com vestígios de sentido, de ilusão? O que é a pintura senão uma pele morta, fabricada e maquiada para aparentar viva? As melhores obras de Tuymans são essas peles mortas, cascas vazias: pinturas que são pura superfície, pura aparência, puro exterior, pois ainda são, afinal, retratos pintados a partir de fotografias, retratos de retratos; seu objeto é antes a imagem do que a pessoa retratada.

Um exemplo emblemático desses retratos é sua série “Der Diagnostische Blick” (1992) (“O Olhar Diagnóstico”), que pinta a partir de imagens de um livro de medicina com retratos de doentes com manifestações visíveis de sintomas na pele. O uso desse livro como fonte, parte, justamente, da busca por retratos sem objetivo psicologizante, pois as pessoas retratadas nessas fotos são apenas portadores das doenças que carregam, páginas em branco onde se pode ver esses sintomas desenhados, e utilizá-los como tipologia para futuros sinais, em outras peles/páginas. O que Tuymans faz em sua pintura diante dessas imagens é apagar os desenhos, os sinais, os sintomas, voltar à página em branco. Fazendo este caminho inverso, ele alcança sua casca vazia, esvaziando essas cascas    manchadas. Para isso, desvia o olhar das figuras retratadas, que nas fotografias olhavam diretamente para a câmera, utilizando uma pincelada horizontal, que reforça justamente o ato de apagar e constrói  um muro de opacidade.

Ainda que representem pessoas, assim, essas figuras são tratadas como objetos e é aí que reside o efeito desconcertante de seus quadros. Qualquer retrato carrega este efeito, em algum nível: seja este fotografado ou pintado, já carrega a imagem de uma pessoa ausente, denuncia a presença de sua ausência, transforma a pessoa em objeto. A “dúvida de que um ser aparentemente animado esteja de fato vivo ou, inversamente, de que um objeto inanimado esteja vivo” (5) é mencionada, afinal, como um dos exemplos para a definição do conceito de “inquietante” de Freud.

Tuymans escolhe pintar a partir deste livro médico em busca de uma indiferença, sim, mas escolhe estampar essa indiferença em retratos justamente porque é impossível alcançar plenamente uma indiferença ao representar a figura humana, ainda mais o rosto. É precisamente dessa impossibilidade que Tuymans parte, e o mais interessante é que não chega a nenhum resultado novo: a indiferença continua impossível, mas a sua busca, o seu esforço, está estampado nessas carcaças e no próprio ato de pintar, condenado histórica e materialmente à relevância. Ao elencar estas imagens e refazê-las não apenas em tinta, mas em tinta a óleo, Tuymans lhes denota justamente de uma diferença, as insere no circuito de um meio artístico que, não por acaso, foi dominante na história da arte ocidental até meados do século passado.

Mas não é apenas sua história que a tinta carrega. Tuymans pinta uma tela por dia, alla prima (6), utilizando pouca tinta, pois, como relata: “eu não posso trabalhar de outra forma. É sobre realmente se focar, e isso é carregado sexualmente.” (7). Por trás das camadas de indiferença (ou talvez por cima), sua pintura é, assim, carregada de investimento libidinal. Se a fotografia, afinal, – e particularmente esses retratos produzidos para fins científicos que Tuymans utilizou – pressupõe uma limpidez em sua representação da realidade, reconfigurando mecânica ou digitalmente a realidade material em imagem, a pintura – e particularmente a pintura de Tuymans – devolve uma materialidade que haveria se perdido, “ressuscita” os retratos, refazendo-os manualmente, recriando-os em outra pele e carne. Evidentemente, essa “ressurreição” não passa de uma impressão, de um efeito, certamente realçado pelo gesto alla prima, propositalmente imperfeito, de Tuymans.

Em seu livro The Love of Painting, Isabelle Graw sustenta que a pintura, tanto como “um conjunto de práticas artísticas”, “quanto um conjunto de regras historicamente situadas que podem continuar efetivas sob novas condições históricas”, carrega “fantasias vitalísticas”. Graw engloba nessas fantasias diferentes crenças de vida na pintura, sejam associações fantasmagóricas entre a obra e seu criador, nos “sinais de atividade das pinceladas” ou na “corporeidade do pigmento”. A autora então contrapõe essa fantasia à realidade concreta da pintura, como objeto inanimado, matéria morta, e mesmo como uma commodity submetida ao fetiche da mercadoria (8), ainda que uma “commodity ideal”, sujeita à regras e consequentes valores especiais, valorizada precisamente por carregar em sua própria materialidade o seu processo de trabalho.

As cascas vazias de Tuymans também estão absortas nessas fantasias: apontam ao mesmo tempo para a vida – nas pessoas retratadas, no material pictórico (“corporeidade do pigmento”, nos termos de Graw), na contingência da pincelada – e para a morte – no rosto congelado em pintura, na na figura como objeto inanimado, na tinta como matéria morta. É interessante observar assim, o próprio termo fetiche, que surge da palavra “feitiço” em português. O termo aponta tanto para suas ramificações psicanalíticas, da relação libidinal entre sujeito e objeto, quanto para suas interpretações materialistas, na relação também libidinal do sujeito com o objeto de consumo, quanto para as origens do objeto de arte, na crença mágica e fantasmagórica no objeto. Esta crença não parece tão distante de um artista que fala que a “superstição poderia ser um pseudônimo para a arte” (9), ainda que esta seja evidente e calculadamente encenada. Mas assim o é, afinal, com tantos objetos de arte: a crença mágica já não existe mais, mas os resquícios de seus efeitos permanecem – aquilo que defende Freud, justamente, a respeito do que nos é “inquietante”: “Parece que todos nós, em nossa evolução individual, passamos por uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos, em que em nenhum de nós ela transcorreu sem deixar vestígios de traços ainda capazes de manifestação, e que tudo hoje nos parece ‘inquietante’ preenche a condição de tocar nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação.” (FREUD, 2010, p.359).

Não é de se surpreender, assim, que Tuymans tenha um interesse particular por certas figuras que estão em algum lugar entre o humano e o objeto, e que explore, justamente, através dos mecanismos formais da pintura, efeitos sugestivos nesse sentido “inquietante”. Na exposição “Intrigue: James Ensor by Luc Tuymans” (10), da qual foi curador, Tuymans dispõe em um lado da sala o quadro de James Ensor que dá título à exposição, Intrigue (1890) (Imagem 1), e no outro lado, de frente, um quadro de Léon Spilliaert, Portrait de Andrew Carnegie (1913). O quadro de Ensor, como grande parte de sua obra, apresenta algumas figuras mascaradas, e aquela que está no centro do quadro, virada de frente para nós, tem os olhos quase inteiramente pintados de preto, como os buracos da máscara, à exceção de dois pequenos pontos vermelhos. O quadro de Spilliaert também retrata sua figura com o que parecem buracos no lugar de olhos, e Tuymans achou interessante que as duas figuras estivessem frente a frente, quem sabe se olhando (11).  

Imagem 1

Ambos os pintores são grandes influências para Tuymans, e as máscaras de Ensor, afinal, não estão muito distantes de sua ideia de casca vazia. Para Ensor, também, não parece haver nada por trás da máscara, como é o caso em diversas de suas obras em que as figuras não mascaradas são simplesmente esqueletos. Mas se as máscaras de Ensor ainda teriam algum significado satírico em sua representação carnavalesca, as cascas vazias de Tuymans são apenas peles deixadas para trás, transformadas em pintura, essa outra pele.

É interessante observar, nesse sentido, outras obras de Tuymans como Geese (1987) ou Body (1990). Em Body temos um corpo infantil cuja cabeça e parte dos membros foram aparentemente cortados pelas margens do quadro. O enquadramento, aqui, escancara o aspecto fragmentário da imagem a tal ponto que mutila sua figura. Ao menos é esta a sensação de mutilação que os traços pretos horizontais ao longo do tronco do corpo também parecem corroborar, como cisões cirúrgicas. Tuymans conta que pintou a figura a partir de uma imagem de uma boneca de pano que tinha um zíper que a abria para enchê-la de seu recheio – zíper que imaginamos serem os tais traços pretos. Novamente, o corpo como uma casca vazia, um boneco sem recheio. Mas o zíper aponta também para outra ideia, que permeia a obra de Tuymans, mais uma “superstição”: a ideia de um buraco na imagem, uma entrada no quadro.

O buraco nos olhos volta em sua pintura Geese, no que poderia ser uma cena de um filme de animação infantil, onde dois gansos atravessam o quadro em primeiro plano e um caminho leva até uma casinha no fundo. O olho do primeiro ganso é um grande borrão preto, sobre o qual Tuymans fala: “Não é realmente o olho, é mais como um ponto preto. É um elemento através do qual você pode desaparecer, através do qual você poderia ser deslocado ou engolido. Na pintura há sempre um ponto fraco: uma pintura deveria sempre ter uma entrada ou buraco pelo qual você pudesse entrar” (12). 

A cabeça do segundo ganso está fora de quadro, como se o filme tivesse pausado no meio do movimento. A escolha do enquadramento, novamente, mutila a figura, corta sua cabeça: afinal, na pintura, diferentemente do cinema, não existe movimento ou som –  isto é, a possibilidade de um fora de campo – que possibilite uma percepção da continuidade deste corpo em outra instância. Toda essa pintura parece falar de movimento: entra-se pelo olho/mancha do ganso, segue-se o caminho curvado até a casa, onde sai-se pela porta, também preta e no local onde seria o ponto de fuga da perspectiva  (que o quadro evidentemente não segue à risca, apesar de haver uma mínima concordância nesse  sentido em relação à escala das figuras).

2. Tempo congelado

Este não é o único quadro de Tuymans cujo enquadramento parece provir de um momento aleatório de um filme pausado. O pintor, que durante uma época chegou a fazer filmes experimentais, trabalha frequentemente com imagens que parecem frames cinematográficos escolhidos ao acaso, que sozinhos não significam nada, indiferentes. Sua escolha por este enquadramento, entretanto, não deve ser tomada como arbitrária, pois a contingência do frame cinematográfico ganha diferentes conotações na tela de pintura. O frame cinematográfico, afinal, é algo passageiro, que nos costumeiros 24 frames por segundos, passa despercebido. Na pintura, não: a mais insignificante das imagens está fadada ao congelamento, se não perpétuo – afinal, ainda que nos engane com sua aura de eternidade, a pintura também se desgasta com o tempo –, um congelamento material, em um objeto físico e, como comentado anteriormente, precioso.

Acrescenta-se, então, mais uma justificativa para sua preciosidade: o aspecto unitário e imóvel da imagem na pintura. Ainda que exista uma narrativa por trás da imagem de Jesus, sugerindo esta narrativa escrita na Bíblia e recitada oralmente de forma fragmentária nas cerimônias religiosas, é sua imagem que recebe a adoração, sendo ela a contenção de toda essa potência narrativa em uma figura comensurável. A arbitrariedade é, novamente, impossível na pintura: quanto mais é buscada, mais evidente é a inutilidade da busca.

Na série de quatro pinturas intitulada “Die Zeit” (“O Tempo”, 1994), estas cascas vazias ganham ainda outro sentido quando enfileiradas em uma sequência. Uma vista aproximada de uma cidade com as palavras escritas “nada à vista” (13), prateleiras vazias, dois tabletes circulares e uma figura de óculos escuros, que parece, novamente, uma máscara (no caso o rosto foi de fato colado sobre a pintura). Cada uma das imagens é, a seu modo, uma casca vazia, um espaço/objeto/pessoa sem movimento, sem vida. Ao serem ordenadas e apresentadas como uma série, essa sequência de imagens parece colocar em funcionamento as potências cinematográficas imbuídas nos enquadramentos contingentes, remetendo a uma espécie de montagem fílmica, incentivando possíveis associações, possíveis narrativas. Nenhuma resposta é certa, entretanto, nenhuma associação é evidente, e qualquer tentativa de compreensão apenas nos afunda ainda mais no que nem sabemos mesmo se é um mistério ou apenas a pura arbitrariedade. O título poderia ser a chave para a solução; estariam cada uma das imagens, à sua maneira, falando sobre o tempo? A representação de momentos congelado no tempo, talvez; mas não seria toda pintura uma representação de um momento congelado no tempo? Se essas pinturas representam momentos, afinal, são momentos esvaziados, contidos em si mesmos,   contidos na tinta; não momentos passageiros, mas o tempo em si: Die Zeit.

Outra série de Tuymans, talvez a mais visualmente próxima do cinema, explora essa   materialidade de um tempo congelado, com pinturas como The Swimming Pool (1989), The Cry (1989), The Murderer (1989), Suspended (1989) e Birdwatching (1990). A proximidade com o cinema começa pela cor, que nestas pinturas é saturada, até mesmo vibrante, com algo do Technicolor do cinema dos anos 50, que já lhes denota de uma certa artificialidade e lhes insere no âmbito da ficção. Também lembram a obra do pintor Edward Hopper, cuja aproximação com o cinema já é lugar-comum, que, para Tuymans, “não pintava figuras reais. Para mim, elas são como bonecos.” (14).

As obras desta série de Tuymans foram feitas a partir de modelos de brinquedo cuja imprecisão de detalhes (não conseguimos ver nenhum rosto) e rigidez parece ser mantida. Essa informação deturpa um pouco a ideia de uma imagem cinematográfica: não são imagens pausadas, pois as próprias figuras originais são inertes – não apenas como bonecos, como as obras de Hopper, mas, de fato, bonecos. Aqui, Tuymans parece brincar justamente com a qualidade inerte da pintura: assumimos que as figuras estão congeladas pelas limitações do meio pictórico, quando na verdade elas partem de figuras estáticas – uma contradição que permeia toda sua obra e de outros pintores contemporâneos que pintam a partir de imagens. Mas, ainda que não partam de frames, as figuras nas imagens parecem, de fato, congeladas em meio a movimentos, o que já é diferente dos exemplos anteriores. Essas imagens, sim, parecem representar cenas, personagens em meio a ações interrompidas, suspensas – como diz o título de uma das pinturas e da exposição em que foram exibidas em 1990 na Antuérpia, “Suspended”.

O tempo contido nesses quadros se condensa em tensão narrativa, sem, entretanto, que revelem qualquer possível história. Os títulos de alguns fornecem algumas pistas: The Cry, nos sugere que a mulher representada esteja chorando; The Murderer nos sugere que o homem representado é um assassino; Birdwatching nos sugere que a figura esteja observando pássaros. A imprecisão de detalhes não nos permite, porém, garantir que a mulher esteja de fato chorando: há apenas a inclinação de sua mão sobre seu rosto, parcialmente sombreado por algumas poucas pinceladas. Da mesma forma, não há nada na imagem de The Murderer que nos indique um assassinato, tampouco pássaros em Birdwatching. Como qualquer ação interrompida, podemos apenas supor o que aconteceu antes ou depois, ou, como essas imagens dialogam diretamente com o cinema, o que apareceu antes ou depois. Assim, não necessariamente acompanhamos os personagens, mas as imagens, como se no plano seguinte após o de Birdwatching pudéssemos ver os tais pássaros, sob o ponto-de-vista da    personagem representada no quadro.

Mas essas pinturas não parecem apenas recortadas de um tempo narrativo, mas também de um espaço; como Body e Geese anteriormente, parecem enquadramentos fragmentários. Como se essas pequenas cenas fossem elencadas de um cenário mais amplo, isolando essas figuras em meio à suas ações, como um zoom. Parecem declarar, assim, um ponto-de-vista parcial, subjetivo, mais do que simplesmente um recorte; como se alguém estivesse observando essas figuras com um binóculo: algo próximo, afinal, de Birdwatching, pintura que parece complementar as outras da série nesse sentido, como um contra-plano ao plano ponto de vista, onde essa figura observadora poderia estar observando as outras, dos outros quadros, e não pássaros como se indica no título.

Há algo voyeurístico nestes recortes que sugerem subjetividade, uma observação escondida, que nos permite uma aproximação, por exemplo, dos filmes de Alfred Hitchcock, onde a trama detetivesca é delineada pelo olhar, como coloca Luiz Carlos Oliveira Jr.: “Em filmes como ‘Janela indiscreta’, ‘Vertigo’ e ‘Os Pássaros’, o ato de olhar é em si o motivo, o ‘tema’ da narrativa, além de ser o ponto nodal da decupagem e da trama. O olhar produz a ficção.” (15). Aqui, também, essas imagens parecem não apenas permeadas por um certo olhar, um certo ponto de vista, mas produzidas por este. A aproximação imediata que essas imagens parecem ter com o cinema, afinal, talvez provenha mais especificamente desse “plano hitchcockiano” que “fecha o campo visual sobre o objeto suspeito, aquele que, em meio à totalidade do real, torna-se um operador de ficção, um foco de intriga.” (Imagem 2).  

Imagem 2

As similaridades não terminam com Hitchcock, pois esse enquadramento pode funcionar tanto para um olhar investigativo – como neste plano de “Janela Indiscreta” (1954), onde o ponto-de-vista do binóculo do personagem detetivesco (interpretado por James Stewart) enquadra o assassino (Imagem 3) –, quanto para um olhar ameaçador, que elenca sua vítima – como o ponto-de-vista de um atirador, figura que, junto com um uso abundante de zooms, ganha proeminência nos anos 60-70 (como Davi Braga coloca em seu texto sobre “Targets”, filme de 1968, na edição anterior da Revista Limite) (Imagem 4). No caso da imagem única da pintura, da ausência de um contraplano que revele o dono do ponto-de-vista (ou quaisquer outras pistas narrativas), não sabemos quem olha essas figuras, não sabemos quais são suas intenções e se é um olhar investigador, ameaçador ou mesmo apenas voyeurístico. Podemos associar este papel ao observador de pássaros de Birdwatching, mas não há nada que indique que essas pinturas sejam parte de uma mesma narrativa; o observador de pássaros parece funcionar mais como um “intermediária[o] de nossa posição”, como diria Daniel Arasse (16), em relação aos outros quadros do que, de fato, o dono desse olhar. Em The Murderer, assim, resta a dúvida, quem é o assassino? O homem representado, talvez indo ou vindo do local do assassinato? Ou quem o observa e planeja seu assassinato? Ou seja, na prática: o pintor e consequentemente, nós, os observadores do quadro. 

Paula Mermelstein

Imagens 3 e 4

Notas:

1 – Para Clement Greenberg, “foi a ênfase conferida a planaridade inelutável da superfície que permaneceu, porém, mais fundamental do que qualquer outra coisa para os processos pelos quais a arte pictórica criticou-se e definiu-se a si mesma no modernismo. Pois só a planaridade era única e exclusiva da arte pictórica.” Em “Pintura Modernista”, 1960 (em “Clement Greenberg e o debate crítico, orgs. COTRIM, Cecília e FERREIRA, Glória).

2-  Fala de Meyer Schapiro mencionada em “Pintura: tarefa do luto” de Yve-Alain Bois (trad. por Taís Ribeiro, revista ARS: http://www.revistas.usp.br/ars/article/view/2966)

3 – Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

4 – “I take all the ideas out of individuality and just leave the shell, the body”, em entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003. No mesmo catálogo, Ulrich Look utiliza em seu texto o termo “empty shells”.

5- Em “O Inquietante” (1919), texto de Freud. Tradução disponível no livro “Freud (1917-1920) – Obras completas volume 14: “O homem dos lobos” e outros textos”.

6 – Pintar diretamente sobre a base enquanto a tinta ainda está molhada.

7 –  “I cannot work otherwise. It’s about truly focusing, and that is sexually loaded.”. Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

8 – Informada, aqui, por Karl Marx.

9 – “Superstition could be a nom de plume for art.” Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

10 – Que esteve na Royal Academy of Arts, de 29 de Outubro de 2016 à 29 de Janeiro de 2017

11 – https://www.youtube.com/watch?v=vQPmtvmA8-8&t=234s&ab_channel=FinancialTimes

12 – “It’s not really an eye, it’s more like a black dot. It’s an element through which you can disappear, through which you could be displaced or swallowed. In a painting there is always a weak spot: a painting should always have an entrance or hole through which you can enter.” Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

13 – “Nichts in Sicht”.

14 – “I have always liked Edward Hopper because he didn’t paint real figures. To me they are like puppets.”. Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

15 – Ver tese “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno” (2015), de Luiz Carlos Oliveira Jr..

16 – Em seu ensaio “A Mulher na Arca”, no livro “Nada se vê: Seis ensaios sobre pintura” (2019), tradução por Camila Boldrini e Daniel Lühmann.