Li, em um folha de sala da Cinemateca Portuguesa, após uma das sessões da retrospectiva destinada ao cineasta coreano Hong Sang-soo, uma afirmação que achei muitíssimo curiosa (apesar de um bocado vulgar), realizada por Antonio Rodrigues. Por não ter o texto, parafraseio: há quem diga que todos os filmes de Hong são iguais – talvez sejam as mesmas pessoas que dizem que todos os orientais têm a mesma cara. Curioso paralelo estabelecido aqui, entre as feições humanas e as feições de narrativas. Os filmes de Hong Sang-soo, para os desavisados, possuem, de fato, feições extremamente parecidas. Os filmes, em nossa memória, acabam até por misturar-se, justamente por caracterizarem-se de uma maneira semelhante (apesar de completamente diferentes entre si, alguns traços são parecidos). Penso, portanto, em duas frases, de dois grandes cineastas. A primeira, de Jean Renoir, é justamente a máxima de que todo grande cineasta faz o mesmo filme a vida toda. A outra, de Robert Bresson, é um aforismo de suas “Notas sobre o cinematógrafo”: não mudar nada, para que tudo seja diferente.
Hong Sang-soo, por sua vez, tem uma frase que acho essencial para entender o seu cinema, que também parafraseio: o único tema do meu cinema sou eu mesmo, porque sou a única coisa que conheço. Se os filmes de Hong são tidos frequentemente como parecidos, isto acontece porque o cineasta está, em todos eles, falando sobre as coisas que conhece: homens, mulheres, comida, álcool, etc., coisas que fazem parte do seu universo. Os atores são muitas vezes, também, os mesmos. A repetição de temas em seus filmes é constante porque estes temas são, eles próprios, recorrentes em nossas vidas. Conseguimos enxergar, também, uma certa obsessão bressoniana em relação a aspectos da linguagem cinematográfica: o uso cirúrgico do zoom (que reinscreve o plano dentro dele mesmo) é uma das marcas registradas de Hong, sendo um elemento da linguagem que acaba por aprimorar-se com o tempo, através, justamente, de suas repetições.
Repetição. Aí está uma palavra essencial para entender o cinema de Hong Sang-soo. Novamente Bresson: não mudar nada, para que tudo seja diferente. É impossível entrarmos no mesmo rio duas vezes, é impossível assistirmos o mesmo filme duas vezes, é impossível realizar o mesmo filme duas vezes (apesar da receita ser similar). Quando experienciamos assistir à obra de um cineasta, fazemos um verdadeiro percurso do seu desenvolvimento, do estabelecimento do seu estilo, daquilo que o faz um autor. Algumas escolhas se repetem, outras variam, mas há sempre um acúmulo de sentido em relação à obra.
Pensemos nos filmes como estrelas: estão lá, brilhando no céu do corpus de um realizador. Quais são as relações entre estas estrelas? Quais as constelações? Esses traços entre as estrelas são dados por nós enquanto nos tornamos íntimos dos filmes, quando passamos justamente a conhecer aquilo que os conecta: acumulação constante dos sentidos que um autor apresenta. Conforme assistimos e reassistimos aos filmes, conforme este acúmulo acontece, os sentidos das imagens acabam por mudar – e, consequentemente, as relações existentes entre estas imagens, entre estes filmes. Contudo, como sabemos, as estrelas de onde as vemos têm todas elas características que acabam por se repetir, sejam elas de formato, de cor ou brilho. Ao analisar uma obra, a mesma coisa acontece: o efeito acaba por se repetir, justamente, porque alguns aspectos e procedimentos de construção entre os filmes também se repetem. Renoir, parece-me, falava de algo similar a este efeito repetitivo quando fez sua afirmação.
Entretanto, há algumas estrelas que brilham mais forte nas constelações dos autores, as obras-prima, as estrelas que acabam por nortear o sentido do caminho traçado. Filmes-síntese de toda uma exploração do cinema, filmes que acumulam em si todo o sentido de um estilo, de uma obra: este seria o caso de Right Now, Wrong Then (2017).
O filme se inicia com uma cartela: “Right Then, Wrong Now”.A história, como sempre, é simples: um homem e uma mulher se conhecem, comem e bebem, apaixonam-se, conversam, discutem. O filme acaba. Então, o filme se inicia novamente. A cartela repete-se, porém, com uma variação: “Right Now, Wrong Then”.O filme acontece de novo, as duas personagens conhecem-se novamente, passam pelos mesmos lugares, mas a repetição não ocorre sem estar acompanhada da variação. Posturas mudam, jeitos de encarar as mesmas coisas, gestos são diferentes e parecidos, os enquadramentos às vezes são e outras não são os mesmos. As coisas são as mesmas, mas são completamente diferentes.
O que acontece nas histórias, em ambas às vezes, é o seguinte: um diretor de cinema chamado Han Chumsu (Jeong Jae-yeong) chega à cidade de Suwon para apresentar um de seus filmes em um festival e realizar uma conversa com o público. O diretor chega um dia antes da exibição de seu filme e então decide visitar um templo, onde conhece Yoon Heejun (Kim Min-hee), uma jovem pintora. Conversam um pouco, decidem tomar um café e depois vão ao ateliê de Yoon Heejun. Depois, jantam, bebem e visitam alguns amigos dela. Chumsu e Heejun caminham pelas ruas de noite até a casa dela. No dia seguinte, Chumsu apresenta seu filme. Na primeira variação da história, tem uma discussão com o público. Na segunda, reencontra Heejun enquanto ela assiste a um de seus filmes. A primeira versão da história possui narração em off, coisa que não acontece na segunda vez. A linha narrativa é basicamente a mesma, excetuando pequenas mudanças. Contudo, parece-me que a cor da tinta desta narrativa acaba por mudar quando a olhamos novamente.
Tinta. É uma metáfora simples, banal: um diretor de cinema realiza um filme como um pintor faz um quadro. O próprio Hong Sang-soo, em entrevistas, já realizou comparações similares a esta, ao dizer ter “inveja dos pintores que podem exercer sua disciplina diariamente”[1]. Apesar de Hong diferenciar as duas atividades em sua afirmação, ainda é possível pensar a metáfora da tinta utilizada pelos pintores e da “tinta” utilizada pelos cineastas. Tanto um quanto o outro escolhem determinadas cores e pincelam-as de uma determinada maneira. Em Right Now, Wrong Then, por exemplo, Hong Sang-soo realizauma vinculação da própria construção formal do filme com a atividade artística de uma das personagens, a pintora Heejun.
Como sabemos, o filme acontece duas vezes. O filme repete-se. Duas vezes Chumsu e Heejun vão ao ateliê, duas vezes Heejun pinta um quadro (somente uma vez tomam chá, curiosamente). Repetição. Na primeira vez, observamos o pormenor de um pequeno prato com tinta (filmado da esquerda para a direita) enquanto Heejun ajusta a tonalidade da cor. Quando está bem, a câmera produz um zoom out. Neste momento, agora posicionada em plano médio, vemos Heejun ao lado do seu quadro realizando uma pincelada. Temos uma visão geral do quadro:


Na segunda vez que a cena acontece, contudo, Heejun pinta de outra maneira (Hong Sang-soo, também, filma de outra maneira — desta vez o que está sendo enquadrado é o verso do quadro, filmado da direita para a esquerda). A cor produzida pela pintora e o pincel utilizado também são diferentes: ao invés do cor-de-rosa alaranjado do primeiro momento, o que temos agora é um verde fosforecente. Quando Heejun termina de ajustar a tonalidade de sua tinta, a câmera produz mais uma vez um zoom out. Entretanto, desta vez, vemos Chumsu observando ostensivamente o quadro e vemos Heejun realizando a pincelada. Não sabemos o teor do quadro, justamente por estar sendo filmado a partir de seu verso (na verdade, filma-se muito mais a sua lateral). A pintura é omitida e assim permanecerá ao longo de toda a cena:


Outra palavra essencial para pensar em relação ao cinema de Hong é a variação. Creio que seja impossível repetir a mesma ação sem que haja variações de elementos nessa repetição. Caso você queira colocar um copo no exato mesmo lugar que você o colocou anteriormente, seria preciso uma marca exata de onde este copo fora colocado. Se você, às cegas, tentar colocá-lo no mesmo lugar, uma pequena variação de posição irá acontecer. É isto o que acontece com o cinema de Hong Sang-soo: repetição, variação.
As duas cenas prosseguem, como já visto, de jeitos completamente diferentes. Há uma variação de uma cena para a outra, como há uma variação da primeira para a segunda parte do filme. Enquanto na primeira vez Chumsu parece querer impressionar Heejun ao elogiar seu quadro, chegando até a parecer emocionado com a pintura, na segunda vez ele critica a pintura abertamente. Enquanto na primeira cena ela não se chateia (por ele muito provavelmente haver mentido), na segunda ela chateia-se justamente por ele ter falado a verdade, a sua verdadeira opinião sobre o quadro que pintou. Temos uma conduta completamente diferente de Chumsu e, consequentemente, uma reação completamente diversa também de Heejun. Vamos do cor-de-rosa ao verde.
Outra questão essencial para pensarmos a dupla-vida deste quadro no filme é a elipse que Hong realiza na segunda parte do filme. Vemos claramente o quadro uma primeira vez; na segunda, não vemos absolutamente nada. Sabemos, entretanto, que a tinta e o pincel utilizados por Heejun são diferentes. Se Hong revelasse o conteúdo do segundo quadro, teríamos uma aproximação concreta entre as duas obras. Saberíamos no que elas se assemelham e no quê elas se diferenciam, dinâmica muito parecida com a estabelecida por nós para enxergarmos as duas partes do filme. Entretanto, ao não explicitar o segundo quadro, Hong quebra com a possibilidade de comparação entre as pinturas, como se o mais importante fosse o estabelecimento da distinção entre os dois quadros e não os pormenores exatos que diferenciam as duas pinturas. Sabemos apenas que um tem a pincelada cor-de-rosa, enquanto o outro possui o traço verde brilhante.
Por quê fazer uma coisa de uma determinada maneira e não de outra? Por qual motivo Chumsu, age de um determinado jeito na primeira vez e age de um jeito completamente diferente na segunda? Por qual motivo Heejun pinta da primeira vez o quadro de rosa, e da segunda de verde? Por qual motivo Hong Sang-soo opta por mostrar o quadro da primeira vez e não mostrá-lo da segunda? Nenhuma destas perguntas possuem respostas: ainda bem! O que Hong Sang-soo faz em seu filme é estabelecer perguntas e apenas possibilidades de respostas. Atribuir algum motivo a qualquer uma destas decisões parece-me equivocado: as diferenças e semelhanças entre as duas partes estão presentes justamente para ficarem uma ao lado da outra, ou melhor: uma depoisda outra. Há uma questão primordial entre estas duas partes de Right Now, Wrong Then que é o conceito da acumulação. Hong Sang-soo constrói sua narrativa (e sua obra), portanto, a partir destas três vigas estruturais: repetição, variação e acumulação. Vejamos como acúmulo narrativo entre as duas partes de Right Now, Wrong Then opera.
O filme somente se repente, somente “acontece de novo” depois de uma hora da sua primeira parte. A duração é essencial para a sensação acumulativa entre a segunda parte e a primeira, justamente por haver um passado existente entre todos nós, uma memória comum entre o espectador, as personagens, os atores e o realizador. Toda a segunda parte do filme acontece com toda a presença do passado da primeira, há verdadeiramente um acúmulo de experiência. Como quando lemos um poema que gostamos muito pela segunda vez, o passado da primeira leitura ainda estará vivo e influenciará a segunda vez que nos relacionamos com a obra.
A lembrança do que se passou (e o fato desta ação nunca ser plena – nunca lembramo-nos de tudo) é imprescindível para que as duas partes passem a existir juntas. Se as duas partes do filme fossem os quadros pintados por Heejun, poderíamos colocá-los lado a lado e compará-los, apesar de Hong Sang-soo não nos deixar fazer isto. Por se tratarem de dois momentos que acontecem um depois do outro, somos obrigados a lembrar do momento anterior quando estamos apreendendo o seguinte, mais ou menos o que sempre acontece quando assistimos a um filme ou vivemos a nossa vida, o passado está aqui conosco e influencia completamente a nossa apreensão do presente. O sentido de Right Now, Wrong Then se dá pela acumulação deste passado e da possibilidade de sua repetição, de sua variação. Quando me lembro de Right Now, Wrong Then, enquanto escrevo este texto, as tintas parecem estar misturando-se cada vez mais.
Paulo Martins Filho
[1] Segundo entrevista ao Télérama, durante o Festival de Cannes de 2017. Disponível em: https://www.telerama.fr/cinema/la-methode-de-tournage-de-hong-sang-soo-je-m-adapte-a-la-meteo-et-je-laisse-les-idees-venir,159229.php
Uma consideração sobre “As tintas de Hong Sang-soo”
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