Kikí (1989), de Adolfo Arrieta

Em aproximadamente 4 minutos de filme, um homem e uma mulher se conhecem em uma festa, formam um casal, começam a morar juntos e apresentam sua primeira desavença rotineira: ela, que passou a infância na África rodeada de animais selvagens, tem dificuldade de conviver com o animal de estimação de seu novo companheiro, a dócil gata Kikí. Poucos minutos que causam estranheza e rapidamente nos acostumam à velocidade ágil da narração, que reduz a totalidade de algumas cenas à pouquíssimos segundos de tela. A história de Kikí (Adolfo Arrieta, 1989), que poderia facilmente se aproveitar dos diferentes tempos de um épico em um prologamento narrativo ou se estender ao máximo como uma telenovela, apresenta-se completamente em apenas 22 minutos de um episódio da série televisiva espanhola Delírios de Amor. A montagem de Arrieta não parece almejar um tempo certo, exato, mas sim o tempo necessário, o suficiente para comunicar, seguindo assim uma agilidade impressionante.

À primeira vista, se ater narrativamente ao “necessário” para Arrieta seria apresentar com estreiteza apenas o que é indispensável à compreensão da trama, como no sentido corrente da dramaturgia clássica; entretanto, rapidamente percebemos que o necessário adquire novas diretrizes. A princípio, a narrativa é hiper-condensada, traça sempre linhas retas entre os pontos conseguintes objetivando o desenvolvimento temporal da narrativa e economiza ao máximo os tempos das cenas, provocando uma rapidez que estranha. Assim que se depara com a problemática motora (a desavença entre a mulher e a gata), submete o desenvolvimento narrativo à exploração de pequenas intrigas psicológicas desse estranho e insondável embate. Um episódio televisivo que até então se deslocava pelo espaço-tempo de maneira tão acelerada, a partir de agora se desprende da necessidade de progressão narrativa e do desencadeamento temporal distribuindo os tempos de maneira mais anárquica. Observa por quase um minuto a mulher bater no tom-tom da bateria do companheiro com o objetivo de incomodar a gata que mora no bumbo rasgado do instrumento; por mais de um minuto o casal decidir em o que farão naquela noite, e, em um caso ainda acelerado, por dez segundos a mulher jogar água no gato enquanto ela se banha na banheira.

A definição de necessidade é abalada assim que se centra no fator psicológico,  especificamente, quando a narrativa mescla projeções imaginárias e sonhadas com a realidade cotidiana, uma das marcas do diretor espanhol. Em filmes como Flammes (1978), em que essa mescla ocorre já na primeira cena, a noção de realismo no cinema de Arrieta parece nem existir, sendo uma etapa desconsiderada na posta em cena brincalhona. O filme se inicia com uma menina sonhando com um bombeiro invadindo seu quarto e isto se torna uma obsessão sexual para ela nos anos de juventude, fazendo-a agir a todo custo em prol da realização material de seu desejado sonho; já em Kikí, a gata é alvo de narrativas inventadas ou pressentidas da mulher, que assimila o animal como um affair do seu companheiro.

Arrieta tem pressa para chegar ao seu ponto de real interesse que é, como o título da série televisiva já sugere, o delírio de amor. A comicidade surge como consequência das manobras de condensação do lado psicológico da narrativa, por vezes muito superficial pois se condensa estritamente pelo jogo entre os atores (e a gata), por vezes surreal pois figura-se livremente pelo uso abstrato dos artifícios fílmicos (cenográficos, luminosos, sonoros), evocando assim um paradoxo. Por um lado, os objetivos das intrigas ainda são diretos e simples (o casal precisa decidir o que fazer a noite, a mulher busca maneiras para atormentar a gata, e talvez, vice-versa), por outro, os artifícios fílmicos começam a impregnar de maneira não justificada e assombrosa estas intrigas, misteriosamente sem afetar suas estreitezas, mantendo a concisão e sem implicar em expansões da história. Assim que é apresentada a problemática motora, as intrigas apontam para diferentes direções, destituindo-se do modelo narrativo consequencial. Arrieta, então, continua traçando linhas retas entre os pontos, porém, se permite distanciá-los para esticar as linhas, assim como traçá-las com diferentes cores ou materiais que não afetam a trajetória direta do traço.

As escolhas do diretor misturam um tanto de vontade caprichosa impregnada com estreiteza narrativa, além de carregarem positivamente a dúvida das limitações fílmicas em sua sombra: o cineasta tinha poucos rolos a sua disposição? Tinha pouco tempo de tela concedido para o episódio televisivo? Questões amplificadas por uma forma de fazer cinema que segue em frente independente das condições orçamentárias e materiais. 

Em Kikí, após diversos embates entre a mulher e a gata enquanto o namorado não estava em casa, ela decide ir embora e abandoná-los. E assim se encerra abruptamente o filme, pela via superficial e estrita. A confiante obstinação de Arrieta não se interessa por nada mais além do que quer filmar, vai ao coração da obra o mais rápido possível e abandona-o assim que este se esgota. A estranheza é a porta de entrada e também a de saída. Na maioria de seus filmes, o fim acontece como uma decisão repentina surpreendendo o espectador, mas ainda assim temos a certeza de que vimos tudo que tínhamos para ver.

Gabriel Linhares Falcão