A condição híbrida de “Robocop” (1987)

No início dos anos 80, quando o capitalismo, impulsionado por políticas neoliberais em diferentes países do ocidente, começava a consolidar o aspecto onipotente e onipresente que tem hoje, propagando e fomentando a indústria cultural através de uma variedade cada vez maior de mídias comunicativas, tornou-se uma prática comum no meio artístico [1] e mesmo na indústria cinematográfica [2], a ideia de se utilizar o próprio sistema contra ele mesmo – ideia que não chegava a ser nova, afinal desde os anos 60 arte e cultura de massa vinham se contaminando mutuamente, seja com Andy Warhol ou Jean-Luc Godard. É no epicentro desse contexto, nos Estados Unidos governados por Ronald Reagan, que Paul Verhoeven é contratado para dirigir o filme hollywoodiano “Robocop” (1987), sobre um policial que é assassinado e “ressuscitado” como robô controlado por uma corporação corrupta que financia o crime, acabando por se voltar contra a mesma.

O filme anterior de Verhoeven, o fracasso de bilheteria “Flesh + Blood” (1985), já havia sido produzido por um estúdio hollywoodiano, mas será “Robocop” que irá de fato consolidar sua entrada no cinema americano. O título do filme anterior já prescreve aquilo que irá guiar seus filmes americanos: carne e sangue. Se em “Flesh + Blood” temos uma aventura medieval na qual o estupro e a carne contaminada de lepra são elementos centrais na narrativa, “Robocop”, apesar de ser uma ficção científica situada numa Detroit de um futuro próximo dominada por grandes corporações, será também guiado por questões absolutamente materiais; o cinema americano de Verhoeven será um de contrastes entre grandes expectativas e realidades violentas.

A dimensão evidentemente política de “Robocop” não é uma novidade introduzida pelo diretor, visto que o ambiente corporativo, a privatização da polícia, a indiferença do telejornal e a supressão quase fascista do crime cada vez mais intenso numa cidade em vias de gentrificação já estavam prescritos no roteiro de Edward Neumeier e Michael Miner, assim como o tom satírico em meio à narrativa quadrinesca. Se Robocop já era caracterizado como um herói/produto que se volta contra seu criador/corporação, será por conta de Verhoeven que o filme irá agir como um agente infiltrado, subvertendo o cinema de blockbusters dentro de sua própria indústria.

O principal contraste em “Robocop” será, assim, entre esse universo corporativo, que comporta também a “Nova Detroit” gentrificada, e a realidade brutal do crime. O filme começa com a chegada do policial Murphy, o futuro Robocop, na delegacia para onde foi transferido, na qual a situação crítica dos funcionários já é exposta ao lhe designarem o escaninho de outro policial que acabou de se confirmar haver sido assassinado por criminosos – destino que Murphy logo irá compartilhar, sendo brutalmente assassinado após perseguir os mesmos criminosos. Passamos, então, da desordem suja da delegacia à organização acinzentada e homogênea de uma reunião da corporação. Dois mundos que, na verdade, dependem um do outro: a corporação financia o crime que gera a necessidade de intervenção policial, para a qual a corporação irá buscar a “solução” que não necessita de pagamentos de salários ou qualquer “fator humano” – justamente a pauta da reunião inicial.

O primeiro projeto apresentado será do vice-presidente Dick Jones, que introduz o aspecto inventivo da empresa que “conseguiu lucrar em áreas ditas não-lucrativas, como hospitais, prisões e exploração espacial”, junto à telas que apresentam imagens exemplificando essas áreas de atuação junto a legendas como “SPACE”, “ENERGY” “MILITARY”; para a corporação, essas instituições são apenas nomes em telas, tão virtuais como a especulação da bolsa de valores. Jones apresenta, então, sua proposta, “um policial que não precisa comer ou dormir”: o robô “ED-209”, uma grande máquina truculenta que acaba acidentalmente metralhando um dos funcionários, que cai ensanguentado e esburacado sobre a maquete totalmente branca do projeto da “Nova Detroit”; um glitch no robô, justifica Jones, que será o primeiro glitch, também, dessa máquina empresarial. A cena, assim, não apenas introduz a necessidade de um robô mais humanizado, à qual Robocop irá atender, mas já funciona como um prelúdio para o que está por vir, para as falhas produzidas por esse próprio sistema.

É então que outro funcionário da empresa, ansioso por subir de posição na carreira corporativa, apresentará seu próprio projeto, “Robocop”, pronto para ser lançado e à espera, apenas, de um voluntário. Robocop, em sua condição de ciborgue, será um híbrido entre humano e robô constituído a partir de uma combinação de titânio com partes do corpo de Murphy, declarado legalmente morto – o filme deixa em aberto se ele estava de fato “completamente” morto – sobre os quais a corporação tem total direito de intervenção. Esse direito é explicitado pelo funcionário responsável pelo projeto quando estão construindo o robô e os médicos indicam que conseguiram salvar um dos braços do cadáver de Murphy, ao que o ele pede para cortá-lo fora e substituí-lo por uma prótese de titânio. Não apenas a instituição foi privatizada, então, mas também os corpos dos policiais são propriedade da empresa, inclusive para mutilá-los e “remontá-los” a seu dispor; a virtualidade das privatizações exibidas nas telas anteriormente tem, afinal, consequências materiais. No fim, essa hibridez do ciborgue acaba por implicar, também, em seu duplo status a favor e contra a corporação que o criou: ao invés da luta homem x máquina típica da ficção científica, trata-se de homem x grandes empresas, ou ainda policial x corporação, o que circunscreve no filme questões concretas de classe. Afinal, o nome do ciborgue não é “Roboman”, mas Robocop, o que é antes uma marca registrada do que um nome de super-herói.

As telas estão por todos os lados em “Robocop”, seja nas televisões por toda a cidade que parecem sempre exibir o mesmo programa de comédia, onde um homem bigodudo rodeado de mulheres loiras repete seu bordão “I’ll buy that for a dollar” – uma espécie de síntese de uma programação televisiva genérica, reduzida ao absurdo – ou nas notáveis “mediabreaks” que interrompem o filme com noticiários e propagandas. Estas aparecem sem distinção inicial da narrativa central, como se fossem, de fato, intervalos comerciais (Verhoeven afirma ter se inspirado pelas pinturas de Piet Mondrian para essas transições bruscas e diretas) [3], tornando, assim, a própria constituição do filme híbrida como Robocop.

Também o ponto-de-vista de Robocop será mediado por uma tela: acompanhamos os instantes finais da vida de Murphy no hospital através de ocasionais planos pontos-de-vista até a sua morte indicada por uma tela preta, que continua até seu despertar como Robocop e sua visão eletrônica. A sugestão de que há algum resquício de humanidade e subjetividade no ciborgue – de que há alguém lá dentro, junto conosco, neste ponto-de-vista que acompanhamos – já está implícita, portanto, desde sua ativação. A presença dessa subjetividade se confirmará quando lampejos de imagens do assassinato de Murphy – a partir de seu ponto-de-vista – irromperão nas telas que acompanham as câmeras internas de Robocop durante seu sono induzido e observado por técnicos; uma espécie de sonho, de confirmação de que tem uma camada subconsciente, que fará o robô “acordar” e começar a agir como se por conta própria. Como o robô ED-209, Robocop também manifesta um glitch em sua programação, mas nesse caso justamente por haver algo vivo, humano, por detrás de sua armadura de titânio, alguém que carrega uma memória, um passado – como um Frankenstein, um morto-vivo que irá alimentar um desejo de vingança contra seus criadores – e mesmo um nome, Murphy, que será particularmente importante para a recuperação da identidade do robô, que na cena final do filme se autodenomina assim.

Não será apenas em seu subconsciente, em seu interior, que Robocop exibirá sinais de que ainda é Murphy, mas também haverão manifestações externas, como num gesto específico, que é o modo que gira sua arma antes de guardá-la. No início do filme, o policial conta à sua parceira, Lewis, que está treinando o gesto por conta do filho, que assiste a um programa de televisão no qual um personagem gira a arma dessa forma. Já após a sua morte e “ressurreição” como Robocop, na delegacia, depois de uma demonstração da superioridade do robô em relação aos companheiros humanos numa sessão de treinamento de tiros, ele irá repetir o gesto de Murphy, o que não passa despercebido de Lewis, que algumas cenas depois o chamará pelo seu verdadeiro nome – curiosamente, o gesto que denota a subjetividade de Murphy em Robocop provém também de um programa televisivo.

Assim como os assassinos de Murphy fizeram com o policial antes de matá-lo e assim como os médicos fizeram com seu corpo depois de sua morte, durante o seu treinamento Robocop também destrói primeiro completamente o braço do alvo em que atira. O assassinato de Murphy, talvez a cena mais violenta do filme, situada em uma fábrica abandonada  – referente à decadência industrial de Detroit – onde a gangue criminosa explode o braço do policial e então o fuzilam repetidas vezes, rindo, foi pensada por Verhoeven a partir da crucificação de Cristo [4], na qual é descrito, de acordo com o diretor, que os passantes ao redor da cena riam. Verhoeven pensa em Robocop e sua história de ressurreição como um “Jesus Americano”, comentando como o que lhe interessou no roteiro foi a ideia de um “paraíso perdido” para Murphy quando retorna a sua casa como ciborgue e cenas de sua vida passada oscilam entre imagens dos cômodos abandonados [5]. É possível associar também à narrativa bíblica o fato da primeira aparição de Robocop na delegacia – antes o acompanhamos apenas pelos planos ponto de vista – ter um quê de milagroso, onde o robô entra em cena através de um vidro embaçado, chamando a atenção de todos os policiais que saem correndo para vê-lo através das grades em que fica contido.

Mas ainda que o ciborgue apresente, por vezes, uma aura milagrosa, sua constituição é completamente material, a começar por sua armadura pesada – adereço que nas filmagens era, inclusive extremamente desconfortável para o ator. O robô se alimenta, também, de uma gororoba amarronzada, que já indica algo orgânico (talvez humano) em seu interior, bem como aparenta algum tipo de excreção corporal e tem gosto de papinha de bebê, de acordo com um dos funcionários da corporação que a prova – elemento que remete, inevitavelmente, aos croquetes feitos de ração de cachorro em “Spetters” (1980), filme anterior de Verhoeven [6]. Posteriormente será comprovado que sua alimentação se tratava, de fato, de papinha, quando, ao se revoltar contra a corporação, Robocop arruma a comida por conta própria e utiliza as embalagens com rostos de bebê para recalibrar a mira de seu revolver –descalibrado após o robô ser metralhado pelos próprios policiais, a comando da corporação. Além de ser um exemplo dessa violência cômica que rege o tom de grande parte do filme (e da filmografia de Verhoeven), a cena será uma das tantas em que objetos de consumo serão simbolicamente explodidos. Um exemplo emblemático será o carro “6000 sux”, anunciado em uma mediabreak e depois comprado e explodido pelos criminosos; mais enfático ainda, serão as inúmeras telas destruídas ao longo do filme.

A dualidade do filme se apresenta, assim, tanto no constraste entre a esfera corporativa e organizada e a realidade suja e desordenada das ruas quanto na combinação entre esses signos cristãos e o tratamento visceral – por vezes quase escatológico – de certos efeitos, operando sobre algo semelhante àquilo que chamei, em um texto anterior sobre “Spetters”, de “baixo-materialismo” [7]. Assim como “Spetters”, “Robocop” oscila entre um tom trágico e cômico, que vai da mutilação brutal do protagonista do filme à transformação instantânea de um dos criminosos em um monstro distorcido quando entra em contato com lixo tóxico – violência exagerada e bem-humorada que é, nesse caso, também informada pelas histórias em quadrinho que serviram de referência ao roteiro. O embate final entre Robocop e os criminosos será, assim, tanto épico (e até mesmo bíblico) – com Robocop andando sobre a água  – quanto concreto, quando ele será quase vencido por enormes barras de ferro jogadas nele por um trator e os disparos finais serão feitos por todos os personagens caídos sobre uma grande poça de lama, na mesma fábrica abandonada onde Murphy foi assassinado.

É num sentido, assim, tanto simbólico quanto concreto que o filme irá trabalhar essa relação entre alto e baixo: após renascer nas alturas dos arranha-céus corporativos, Robocop desce às profundezas das ruínas industriais, à lama, para enfrentar os vilões. Depois, entretanto, deverá subir novamente na corporação para enfrentar seus próprios criadores, exibindo uma gravação que comprova o envolvimento de Dick Jones com o crime organizado, nas mesmas telas utilizadas na reunião corporativa do início do filme; Robocop não apenas se volta contra seus próprios criadores, mas o faz através do meio de comunicação utilizado por eles para dominação e alienação: as telas.

Paula Mermelstein

Notas:

1 – Desde a arte de cunho mais evidentemente crítico como de Cindy Sherman, Barbara Kruger,  Sherrie Levine ou Richard Prince (a chamada “Pictures Generation”), até a obra mais polêmica de Jeff Koons.

2 – Diferentes filmes dos anos 80 aos anos 90 parecem lidar de maneira mais ou menos crítica com questões que refletem esse contexto dentro de um cinema “espetacular” de efeitos especiais e ação, sejam os Terminators de James Cameron (1984 e 1991), “They Live” (1988) de John Carpenter, “Videodrome” de David Cronenberg (1983) ou “Die Hard” (1988) de John McTiernan.

3 – Entrevista com Paul Verhoeven, “Robocop: the oral history”: https://www.esquire.com/entertainment/movies/a27322/robocop-oral-history/

4 – Idem.

5 – Idem.

6 – https://limiterevista.wordpress.com/2020/12/29/spetters-o-baixo-materialismo-de-paul-verhoeven/

7 – Idem.