Jessica Holland, ontem e hoje

De “I Walked with a Zombie” (1943) a “Memória (2021)

Jessica Holland. Um nome, duas atrizes; um nome, dois filmes. Em A Morta-Viva (1943), de Jacques Tourneur, vimos a personagem ser encarnada (ou desencarnada) por Christine Gordon; em Memória (2021), de Apichatpong Weerasethakul, a atriz que a encarna (ou desencarna) é Tilda Swinton. Dos trópicos lunares da América Central às selvas colombianas, what ever happened to Jessica Holland? Se Buñuel, em Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977), dispunha de duas atrizes para uma única protagonista, podemos nós sonhar com a hipótese segundo a qual, de um filme a outro, de uma ficção a outra, uma mesma personagem sobrevive, ou seja, persiste em figurar em diferentes corpos como um fantasma que não quer conhecer descanso?

No filme de Tourneur, Jessica é uma zombie. Entre a vida e a morte, entre o sono eterno e a vigília, entre a religião e a ciência, a personagem habita o entre-dois que caracteriza, em última instância, o cinema de seu autor. Quando afogada nos mares do Caribe, assujeitada ao vodu ou ao seu antigo amante, a morte trágica lhe surge como a possibilidade última de escapar do ciclo infernal e paralisante dos ressentimentos familiares e das chagas coloniais. Encerrada em sua enfermidade, a morte é o indício, portanto, de uma saída do estado de zumbificação; é a linha de fuga que traça uma abertura. 

Quase 80 anos depois dessa fuga, Jessica retorna. Em Memória, evadida do reino dos mortos, a personagem volta a habitar o mundo dos (seres) vivos. Estamos novamente em território estrangeiro – neste caso, na Colômbia. Uma vez que a linha de fuga já foi traçada pelo filme anterior, a personagem não retorna mais como uma zombie. Trata-se, ao contrário, de uma presença que, em vez de oclusa na própria doença, representa a potência de abertura ao universo do visível e do invisível – abertura resultante do próprio casting (ou possessão) de Tilda Swinton, a mais camaleônica das atrizes. 

Christine Gordon em “I Walked With a Zombie” (1943)
Tilda Swinton em “Memória” (2021)

Em Tourneur, Jessica é convocada pelos tambores do Humfort, de forma que a figura que melhor lhe alegoriza é a boneca de vodu; em Joe (Apichatpong), por outro lado, Jessica é quem conduz a investigação do som acusmático que, como o ruído dos tambores, lhe chega aos ouvidos. Se, no primeiro caso, Jessica é como um corpo passivo em um universo de contradições veladas, no segundo ela é a agente e o centro da ação para onde os seres (in)visíveis convergem e transitam (ela é como um “transmissor”, diz o cineasta tailandês). Antes uma personagem paradoxalmente aprisionada na liberdade do entre-dois, ela agora é uma habitante soberana da fronteira entre-mundos. Onde a inflexão de Tourneur é sobre a morte, em Joe ela é sobre a vida: primeiro como tragédia, depois como fábula. 

Não deve surpreender, nesse caso, que a Jessica de Tourneur renasça no universo ficcional de Joe. Para além do fato de que A Morta-Viva é um dos filmes preferidos do diretor tailandês, há algo de mais profundo que une as duas poéticas. Embora diferentes em muitos aspectos, trata-se de cineastas que compartilham uma crença fundamental na existência de outros mundos – mundos que insistem em manifestar sua presença através de vestígios ou fendas que se produzem na realidade sensível. É este o sentido primeiro do ruído metálico que chega aos ouvidos do protagonista de Memória: ele é como um rasgo por onde se revela o eco fantasmático e penetrante de outro mundo. 

Primeiro Christine Gordon, depois Tilda Swinton: Jessica, como se vê, prefere os corpos magros, pálidos, altos e andróginos. Por outro lado, a forma como os dois cineastas se apropriam desses corpos na imagem é substancialmente diferente. Em Tourneur, enfatiza-se constantemente a verticalidade: o formato da imagem ressalta os corpos esguios (além de Jessica, não esqueçamos de Carrefour) e o filme é um inventário de objetos perpendiculares ao chão (a estátua cravada de flechas, o canavial, o logo da RKO!…). Em Joe, pelo contrário, a ênfase recai sobre a horizontalidade, na medida em que todas as linhas dramáticas e plásticas parecem convergir para a segunda metade do filme e, mais especificamente, para a cena em que um dos personagens se deita sobre a relva para dormir um sono sem sonhos: a grama, a linha das serras, a cama, o rio…

Quanto ao som, curiosamente, as coordenadas se modificam. Em A Morta-Viva, o ruído dos tambores é um continuum horizontal que permite a união de dois universos. No interior da montagem paralela que alterna o mundo dos brancos e o mundo dos negros, as imagens se intercalam como eixos verticais, mas o som permanece contínuo: os batuques da trilha sonora, nesse sentido, são o elemento que ligam ontologicamente as duas instâncias, estabelencendo uma espécie de ponte ou de contiguidade entre elas. Em Memória, por outro lado, a montagem paralela é substituída pelos longos planos-sequências, dentro dos quais o tempo se infiltra como uma duração horizontal. Cabe ao som-fantasma, nesse caso, intervir como uma força vertical que perfura a horizontalidade do plano, abrindo um intervalo pontual em seu interior. Das imagens verticais e os sons horizontais passamos ao avesso contemporâneo das imagens horizontais e os sons verticais. 

Gosto de imaginar, como em um delírio, que todas essas inversões estruturais estão relacionadas com um elemento muito simples: a vestimenta de Jessica. No filme de Tourneur, o vestido branco cobre seus pés e a personagem flaina como uma alma flutuante, perdida no entre-dois. Já em Memória, Jessica veste calças durante todo o filme, e como resultado vemos seus pés calçados tocarem o chão. É deste contato com a terra (ou com a memória desta terra) que parece se produzir a propensão horizontal do filme de Joe. Com os pés firmes no chão, conectados ao solo, ela pode se tornar o receptor de outros mundos, lá onde, no passado, seu corpo descolado da terra era um sintoma da alienação colonial (esta mesma alienação que levava a personagem da enfermeira, em A Morta-Viva, a olhar para a beleza da ilha de São Sebastião e concluir que aquele destino teria sido uma “sorte” para os escravizados). 

Jessica sobrevive e, com ela (a partir dela), o filme de Joe propõe uma série de “dissemelhanças semelhantes”. São essas variações estruturais que fazem de Memória um dos filmes tourneurianos mais interessantes dos últimos 30 anos, junto de obras como Chasse Gardée (Jean-Claude Biette, 1992), Casa de Lava (Pedro Costa, 1994) e Marcas da Violência (David Cronenberg, 2005).  

Luiz Fernando Coutinho