Os readymades de Marcel Duchamp

Os primeiros anos de envolvimento artístico de Marcel Duchamp estiveram à sombra de seus dois irmãos mais velhos, Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon, representantes do millieu parisiense do inicio do século XX, ao qual buscará escapar. Depois dos anos iniciais de aprendizagem, em que traduz na sua prática parte do percurso da arte moderna, movendo-se sucessivamente do impressionismo ao pontilhismo à emulação de Cézanne e, por fim, ao cubismo, Duchamp se afastará da arte profissional primeiramente ao ocupar um posto como bibliotecário e, a seguir, ao fazer sua primeira viagem à Nova York, em meados da década de 1910, onde se estabelecerá após idas e vindas. Isto representará para Duchamp a possibilidade de começar uma nova vida em um cenário ainda desprovido de tradição e “escolas”, exilando-se assim não apenas geograficamente do ambiente artístico francês, mas também intelectualmente, trabalhando de uma maneira subterrânea, sem dar quaisquer notícias do que preparava em segredo.

Encontrando nos Estados Unidos um novo ambiente e estruturando, junto aos seus novos pares, uma pequena sociedade com o intuito de estimular a arte no país, a Sociedade dos Artistas Independentes, Duchamp ajudará a organizar, em 1917, o Salão dos Artistas Independentes, grande exposição para a qual, secretamente, enviará um de seus “readymades”, a “Fonte”: um urinol ordinário, produto industrializado, feito de porcelana e assinado por “R. Mutt”. Como o Salão se comprometia em aceitar quaisquer trabalhos submetidos mediante o pagamento da taxa de inscrição, a “Fonte” não será diretamente recusada, mas sutilmente escamoteada por detrás de outras obras, impedida de visualização pelo público. Será a origem de um novo rompimento de Duchamp e a sua decisão de afastar-se da “arte profissional” de maneira definitiva, após o que teria sido sua primeira tentativa de apresentação destes novos trabalhos.

A seguir, Duchamp jamais se dedicou a comercializar seriamente a sua obra. Aquilo que produzia era presenteado ou negociado por valores módicos a alguns amigos, em especial o colecionador Walter Arensberg, que doará parte considerável dos trabalhos de Duchamp no final da década de 1940 ao Museu da Philadelphia, quando o seu “Grande Vidro” (La mariée mise à nu par ses célibataires, même, 1915-1923) e os readymades serão expostos para um público mais amplo. Esta defasagem entre o momento em que foram produzidos e quando foram exibidos ajuda a entender de que maneira não há uma grande influência direta de Duchamp na arte até então, restringindo-se muito mais à sua participação, também bastante comedida, nos círculos dadaístas e surrealistas. Apenas nos anos 50 o Duchamp histórico se afirmará, redescoberto e reinterpretado por uma nova geração de artistas. Após seu período de distanciamento e indiferença ao mundo da arte (à velocidade de produção e à mercantilização nele envolvidos), que durou cerca de três décadas, Duchamp não retomará uma produção regular, mas, tornado figura pública, poderá desmistificar o seu próprio mito, esclarecendo alguns mal-entendidos e forjando tantos outros.

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“Fonte” (1917)

O readymade, em si, não representa nenhuma categoria ou modelo expressivo previamente existente, colocando em questão a própria ideia de expressão do artista e a negação/abandono da técnica, inaugurando (ou evidenciando) uma crise em que, a partir dele, distinções como “pintura” ou “escultura” parecem já não dar mais conta de novas obras de arte. Para melhor defini-lo, talvez seja positivo caracterizar o readymade como um “método”, um pressuposto criativo em que Duchamp dispensa uma concepção “original” do objeto e organiza outros já prontos em novas disposições que enfatizem aspectos imprevistos. Este “método”, afinal, não trata apenas de “elevação do objeto à obra de arte”, nem de um “objeto tomado ao acaso” – jargões comuns sobre o readymade –, mas de invenção e reconhecimento de estruturas em objetos ordinários, a partir de um deslocamento em sua interpretação literal que os destitui de suas funções utilitárias e os atribui um caráter puramente estético. 

Efetivamente, não é pelos objetos serem apresentados de maneira reconhecível que eles têm o sentido definido. No caso dos readymades, este sentido se perde pela destituição de sua função prática, tornando o aspecto compositivo mais evidente, destacando o interesse formal de um objeto industrializado e intencionalmente não-artístico, quando posto em um novo contexto. O deslocamento definitivo que o caracterizará como obra será, então, a escolha do título, cuja assimetria em relação ao reconhecimento comum do objeto cria uma distância na qual o interlocutor deve agir, buscando possibilidades de sentido entre as duas sugestões. Nesta mudança de perspectiva, essencialmente intelectual, se evidencia a consciência ambígua de uma nova força expressiva, ausente de qualquer esforço artesanal e apenas concentrada na exposição de um conceito. 

Duchamp reduz o trabalho a um essencial expressivo por uma operação que requere de si o menor gesto prático, manipulando o objeto somente à medida de voltar a ele mesmo, a ser apresentado de outra forma, tomando um dado óbvio da realidade e modificando o senso de percepção a seu propósito – o que é, afinal, o princípio fundamental da criação artística. Daí que o readymade, na prática, seja um método rudimentar, de resolução simples, mas que adquire uma complexidade conceitual a partir do procedimento inventado e da materialidade que lhe serve como veículo, ambos escamoteando as aparências artísticas da criação: antes de qualquer configuração formal definitiva, é o pensamento que constitui o maior interesse e novidade do trabalho, em suas associações inesperadas.

Ainda que não exista uma “originalidade” na concepção dos elementos da obra, a mudança de perspectiva efetuada por Duchamp revela sua própria contribuição particular e é decisiva para a designação desta nova composição formal, resultado de suas escolhas e manifestante da responsabilidade autoral de que procura escapar.  Assim, é possível reconhecer uma afinidade entre os seus readymades, um senso estético particular que afigura uma unidade formal do conjunto, originada pelas suas predileções materiais. Prezando pela madeira ou pelo metal, assim como excluindo a presença de cores chamativas e mantendo uma “paleta” extremamente reduzida (de cinza, preto, branco e marrom), jamais veremos neles nada que particularize a atenção ao detalhe ou que lhe remeta ao “pitoresco”.

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“Roda de Bicicleta” (1913)

“Fonte” (1917), trabalho mais conhecido de Duchamp, não pode isoladamente esclarecer a natureza particular do readymade, sendo talvez este exemplo o que mais cause mal-entendidos sobre ele. Seu primeiro readymade é a “Roda de Bicicleta” (1913), composição que consiste de uma roda dianteira de uma bicicleta comum, de cabeça para baixo e afixada a um banco de madeira, sua base de sustentação. Inicialmente, Duchamp não o considerou como um trabalho artístico, mantendo-o em seu escritório tal como se fosse apenas um elemento de decoração (“como uma lareira”, ele diz), cujo movimento da roda o divertia. Somente depois pensou a respeito do que havia feito e, após alguns anos, a partir deste primeiro objeto, surgiu-lhe a consciência e a concepção do readymade, cujos desdobramentos e variações explorou a seguir.

Tivesse sido este trabalho enviado por Duchamp ao Salão dos Independentes, talvez sua polêmica tivesse sido muito menor, uma vez que ali estavam ainda evidentes os referenciais de um repertório clássico da escultura, assim como a natureza de uma composição que, mesmo sob o mínimo procedimento, ainda guardava um caráter artesanal. Principalmente, não haveria o seu fator principal, polêmica motivada não apenas pelo readymade em si, mas por este procedimento ser apresentado pela transposição de um urinol a um salão artístico, sua mais radical contraposição entre o sentido original do objeto e o contexto em que é apresentado. Assim, para além da piada que inicialmente constitui, a “Fonte” manifesta também uma carga simbólica a respeito de seu conteúdo e não apenas quanto ao seu resultado formal, cujo procedimento é um elemento de choque.

Ainda que o readymade possa se constituir apenas de um objeto já pronto, sua disposição sempre ocorrerá de maneira distinta à de sua função ordinária. Se a “Fonte” se dispusesse verticalmente, como um urinol na parede, a sua atitude seria esvaziada de qualquer tipo de sentido, apenas uma provocação vazia, sem questionamento das possibilidades de ser daquele objeto – o que, de fato, constitui a sua inquietação principal. Ao contrário, Duchamp não traz apenas um urinol ordinário, mas ressignificado pela nova disposição e pelo título que o designa, “Fonte”, sugerindo novas possibilidades de interpretação.

Esta disposição, como uma nova perspectiva que se lança a propósito desta mesma materialidade, imbuída de um título que completa seu deslocamento em relação à origem, é o que efetivamente o caracteriza como um fato novo, um objeto de arte, reafirmado pela assinatura no canto inferior da obra, como na maior parte da tradição pictórica. Sob a disposição convencional de um urinol, verticalmente em uma parede, esta assinatura estaria na parte de cima, pintando na parte de fora de uma tela ou acima de uma escultura, o que não faria sentido, evitando o reconhecimento por parte de seu espectador. Muito mais do que um detalhe casual, esta assinatura é talvez o principal ponto de tensionamento do trabalho, que tensiona todos os seus elementos ao eleger o nome fictício de “R. Mutt” como autor da “Fonte”, colocando em questão um suposto artesanato e “originalidade” reinvindicados no próprio trabalho.

“Pharmacy” (1914)
“L.H.O.O.Q.” (1919)

Sob este aspecto lúdico, que denota o humor e a ironia recorrentes em Duchamp, “Pharmacy” (1914) e “L.H.O.O.Q.” (1919) são notáveis como dois dos seus readymades mais singelos, pequenas modificações feitas em reproduções pictóricas em cartão-postal que mantém a sua integridade, meramente “corrigidos” pela intervenção de Duchamp, exemplificam a natureza de seu gesto mínimo de manipulação. O primeiro, uma gravura com um riacho cercado de alguns troncos secos, é uma imagem que tem em si um sentido poético, de inspiração romântica e autoria anônima à qual qual Duchamp atribui sua própria autoria, como se lhe completasse o que lhe faltava para dar-lhe uma dignidade – um “estatuto”, digamos. Isto se dá apenas por duas gotas de tinta vermelha e verde que ali introduz, em oposição ao preto e branco original da fotografia, o suficiente para inserir materialmente sua intervenção, que explora o cartão-postal apenas como suporte inicial para uma nova criação – mínima, a se dizer, mas o bastante para alterar o seu sentido.

Esta atitude está posta com ainda maior evidência em “L.H.O.O.Q.”, no qual, justamente, subvertendo uma das autorias mais notórias da história da arte, Duchamp pinta um bigode e cavanhaque sobre uma cópia da Mona Lisa, inscrevendo sobre ela o novo título que lhe deu. Por trás do gesto deliberadamente irônico e banal, ampliado pelo sentido que a escrita adquire em uma pronúncia francesa (“Elle a chaud au cul”, isto é, “Ela tem fogo no rabo”), se guarda um sentido mais profundo: profanar a Mona Lisa é, de algum modo, reconhecer a sua tradição e autoridade, ainda que para revisitá-la de maneira transgressora e sarcástica. Não se trata de ridicularizar Da Vinci, mas de incorporá-lo também ao seu processo artístico, pois a manipulação sobre o quadro não teria o mesmo sentido em outro retrato qualquer: “Mona Lisa” não é apenas uma mulher pintada, mas todo o peso que carrega como obra canônica, bem como a banalidade à qual ela decai a partir de sua reprodução contínua enquanto cartão-postal.

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“Com ruído secreto” (1916)

Essencialmente, os readymades guardam um mistério, uma inibição, cujo manifesto simbólico, “conceitual”, está presente em “Com ruído Secreto” (1916), trabalho constituído de duas placas de latão, conectadas paralelamente por quatro parafusos e porcas, com uma bola de barbantes ocupando o volume entre as duas placas. No entanto, a descrição da disposição visual deste trabalho não poderia dar conta de sua totalidade expressiva, pois no manuseamento do objeto se denota a presença de um objeto desconhecido no interior da bola de barbantes e que produz um “ruído secreto”, complexificando o trabalho por este complemento sonoro à composição material, sendo o único dos elementos do trabalho que não se revela ao observador. Tendo este objeto sido introduzido no readymade por Walter Arensberg, sem que mesmo Duchamp soubesse do que se tratava (o que reforça ainda mais o seu “segredo”), este elemento do ruído altera decisivamente a percepção a respeito deste trabalho. 

Considerando sua estrutura hermeticamente fechada, pode-se pensar que o “Ruído secreto” não dispusesse de certos aspectos complementares presentes em outros trabalhos, como a contingência da “Roda”, em que o vento ou a ação humana pode gerar o movimento, ou o caráter ameaçador do “Porta-Garrafas” (1914), com todas os seus lados pontiagudos, como se fossem objetos perfuradores apontados ao espectador – semelhante a “Armadilha” (Trébouchet, 1917), um cabideiro que, posto ao chão, pode surpreender aos caminhantes desatentos. O “ruído secreto”, afinal, é o elemento decisivo responsável pela “realização” deste readymade, não apenas pelo elemento desconhecido, mas pela nova propriedade sonora que particulariza a sua expressão.

Neste sentido, podemos considerar a maneira como o readymade é diversificado a cada novo trabalho, buscando algumas vezes mais e outras menos uma fidelidade à apreensão de um objeto “já feito”. Se a “Roda” era ainda a reunião de dois objetos distintos e “Ruído Secreto” possuía ainda mais elementos em sua composição, “Fonte” e “Porta-Garrafas” permanecem absolutamente fiéis à unidade original – principalmente no segundo, pois ainda que a “Fonte” não sofra modificações em sua estrutura, a mudança em sua posição impunha já uma mudança na apreensão de seu sentido, acentuada pelo novo título que lhe é designado. 

“Porta-Garrafas” (1914)

Mesmo que haja em Duchamp a espontaneidade da criação, está nele excluída a “inspiração” como fato determinante de sua produção. Sua “expressão particular” diz respeito menos ao indivíduo e suas intenções do que à dedicação ao objeto propriamente dito, de maneira desapegada. Assim é que cada um de seus trabalho é feito, em certo sentido, como encomenda, seja sob a efeméride de uma exposição, seja como presente a alguém próximo, sem ambicionar a uma “realização” como fim em si mesma. O “desinteresse” que afirma ter sobre seus trabalhos pode ser compreendido como uma falta de aplicação direta, um distanciamento que tem em si algo de automático, mas que revela sua parcela subjetiva pela coerência do conjunto. Duchamp não deseja “aplicar-se” aos readymades, seja no sentido de dedicação, seja no sentido de pessoalidade; sua obra não pretende ter a marca da autoria, mas o caráter inovador do seu gesto está mesmo neste anonimato, neste ocultamento do sujeito por trás do objeto. As preocupações temáticas, então, se manifestam de maneira secundária à materialidade do objeto em si, que oculta qualquer intenção e, a princípio, apresenta somente a suas propriedades físicas, sua aparência exterior.

Dado o caráter efêmero e ausente de valor intrínseco dos objetos industriais utilizados, não fabricados pelo artista, parece natural que os readymades se perdessem, que os originais fossem descartados e que restasse à posteridade somente suas múltiplas réplicas, produzidas pelo galerista e historiador Arturo Schwarz na década de 1960, seguindo os modelos originais em que foram conhecidos. A partir deste desaparecimento de seus suportes originais, o readymade existente já se não trata mais de um objeto convencional despido de sua utilidade, mas passa a ser mesmo a produção de novos objetos industrializados e seriais que copiam os primeiros, dispensando a autoridade deste original. Isto nos leva a dizer que a natureza expressiva do readymade não reside propriamente no objeto que lhe dá forma, mas na formulação conceitual que precede a sua exposição como “obra”, sendo consequentemente replicável sem que se perca as qualidades expressivas do trabalho.

Cada um de seus readymades parece buscar uma expressão distinta e ter deixado de fazê-los mostra também que não estava interessado em explorar o que já havia descoberto, em se repetir para garantir a circulação de seus trabalhos, mas na superação de si mesmo. Assim é que o xadrez adquire uma importância maior na compreensão de seu trabalho, sendo não apenas a atividade a que recorre em seu período de “silêncio”, mas, o jogo em si, em sua alta atividade intelectual, jamais concretamente aplicada e sempre efêmera, parece definir este próprio desinteresse de Duchamp pela perpetuação de seus trabalhos: o mais importante é o procedimento que leva até eles, o desafio da descoberta – como, no xadrez, o estético não é somente toda a partida, mas o novo problema que cada movimento implica.

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“Armadilha” (1917)

Todo gesto radical guarda a inteligência de uma oposição, pela consciência das experiências anteriores e a representação do seu negativo – ou a sua negação. Necessariamente, o readymade deve guardar certos pressupostos da tradição (particularmente escultórica, da qual se aproxima) para que se possa considerá-lo como “anti-arte” – isto é, como uma oposição a um modelo vigente que, indiretamente, critica. Considerar esta oposição é fundamental, uma vez que a negação a um meio expressivo em sua totalidade não apenas excluiria o sentido de se estar trabalhando sobre ele, como ignoraria os processos históricos e as mudanças em seus modos de representação. A atitude de Duchamp, justamente, prevê a mudança e, neste sentido, reconhece a necessidade de superação histórica, movida pelo contexto, pelo material e pensamento crítico da nova composição formal. Sem o reconhecimento de uma tradição, jamais a oposição oferecida pela “anti-arte” seria concebível, uma vez que o seu tratamento literal em relação às obras tornadas convencionais sugeriria se tratarem de coisas distintas e não relacionadas, anulando o tensionamento presente nos readymades.

A inutilidade compreendida na destituição das funções de um objeto ordinário atesta também a progressiva perda de função social da obra de arte com o passar dos séculos e a inutilidade do próprio objeto produzido. Se, por exemplo, na idade média, um vitral ou um afresco possuíam uma função didática, cumprindo uma ilustração das passagens bíblicas para uma população não-letrada, a arte moderna já não possui em si qualquer público potencial a atingir, menos ainda a necessidade de encomenda por parte de uma instituição, como cabia à Igreja nestes tempos. Em sua condição histórica de desamparo, a maneira como o readymade pode interagir com o público se dá, então, como uma espécie de jogo, de código a ser decifrado, de um trabalho de um forte caráter lúdico e bem humorado, que frequentemente coloca como problema conteudístico as questões de seu meio expressivo, seu próprio fazer – desde que desprendido do “gosto”, conceito fundamental em Duchamp.

Este “gosto”, segundo ele, é o resultado do conformismo, do hábito, da reprodução de uma convenção. Esta, repetida e bem aceita, fixando-se nos mesmos procedimentos de um contexto vigente, equivaleria também à cristalização da tradição. “Remover o gosto”, então, é remover o caráter de uma convenção, de ideias fixas a propósito da escultura e da funcionalidade do objeto. Se o urinol é deposto de sua função e atribuído de outro nome, o “gosto”, ou seja, as ideias pré-concebidas que se têm a partir dele também são destituídas e outro sentido pode ser atribuído a partir deste gesto. Afastando-se da condição de “artista profissional” e das tendências momentâneas, Duchamp pôde surpreender a si mesmo e, logo, a abordagem desta tradição. 

Duchamp igualmente opõe-se ao que chama de “arte retiniana”, isto é, a arte de valor puramente visual, buscando aproximar-se de uma tradição anterior ao Renascimento, na qual as cargas alegóricas que, segundo a sua interpretação, desempenhariam uma função significativa, histórica, mítica ou religiosa comum ao público ao qual este quadro se destinava. Isto significa que, então, o objeto artístico, para além da sua expressividade visual – isto é, seu aspecto meramente contemplativo, como obra fechada em si mesma –, apontava um contexto exterior muito mais amplo, do qual manifestava um lastro histórico de nexo conceitual bem discernido pelos seus contemporâneos. A este questionamento responde a “anti-arte”, que representa, acima de tudo, uma oposição aos valores imediatos de seu tempo: no caso de Duchamp, uma revolta contra a primazia do visual que representava a “arte retiniana” (figurativa ou abstrata), a favor de uma arte que explore possibilidades intelectuais, de representação e de participação do interlocutor.  

Os propósitos de “indiferença visual” e de “caráter anti-estético” que movem a reação de Duchamp contra o “gosto”, entretanto, não podem ser confundidos com descaso em relação à composição. Seus readymades se apresentam como unidades essenciais e não fragmentadas, sob grande concentração e solidez formal. Para confirmá-lo, basta pensar que, invertendo as relações da “Roda” e dispondo o banco sobre a roda da bicicleta, que toca o chão, jamais esta escultura se “elevaria”, estando fadada a sempre cair e permanecer estirada, sob aspecto flácido, frustrado, abandonado – algo com o que talvez se parecesse a “anti-arte”, se esta ideia fosse considerada literalmente. Isto não apenas reforça o que os readymades guardam dos preceitos fundamentais da escultura, mas como, ao devolver um olhar à esta tradição mesma, cujas propriedades podem ser ali melhor ressaltadas pelo caráter de exceção em que se dispõem, o gesto de Duchamp acaba por guardar, em si, algo de pedra-de-toque na sua renovação. Neste sentido, o readymade é o atestado de um limite para a arte, definição de um gesto mínimo ao qual não se pode superar. Se é uma provocação, é no sentido de sugerir um retorno a estes gestos básicos, a uma construção artística voltada para o questionamento de si mesma, para as estruturas dessa criação.

Matheus Zenom

Referências bibliográficas:

AIRA, César. Pequeno Manual de Procedimentos. Arte & Letra Editora: Curitiba. 2007.

CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. Perspectiva: São Paulo. 2008.

CROS, Caroline. Marcel Duchamp. Reaktion Books: Londres. 2006.

PAZ, Octávio. Marcel Duchamp e o Castelo da Pureza. Perspectiva: São Paulo. 2002.

TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp: The Afternoon Interviews. Badlands Unlimited: Nova York. 2013.

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