O caráter histórico e reflexivo da linguagem

1 – Da experiência ao experimentalismo

O trabalho em cada gênero artístico, bem como em cada atividade humana, se dá sempre em um âmbito de conhecimento comum, que fundamenta suas possibilidades de comunicação. Existem sempre as “regras do jogo”, no interior das quais novos problemas poder ser encontrados, frequentemente exigindo que se descubram novas soluções. Surgem assim os novos campos, as novas experiências, as novas possibilidades reveladas – nunca simplesmente alheias àquilo que havia antes. O sujeito que descobre essas possibilidades, sim, pode-se dizer que está inventando uma “variação da roda”, mas nunca a roda em si mesma, porque o cinema antes já existia, bem como as casas, os carros, as máquinas, quase todo o tipo de ferramenta em geral. Ele não é capaz de inventar um “novo cinema”, senão uma variação, uma atualização ou uma ruptura com aquilo que havia antes – cujo precedente jamais é ignorável, uma vez que o seu referencial de comparação é essencial à definição das características particulares deste novo objeto criado.

O grande esforço de compreensão da contribuição de um sujeito em relação a este conhecimento, no cinema, na arte, e em todo lugar, deve se dar em relação aos parâmetros estabelecidos por uma tradição. O que se coloca propositalmente de fora de qualquer tradição e exige para si critérios de avaliação particulares, que define seus próprios parâmetros de crítica, é, no mínimo, suspeito, pois reivindica para si qualidades que mais ninguém pode ter, e que só fazem sentido no contexto específico que o sujeito forja para sua obra – criando um jogo em que só ele pode jogar e em que não se perde porque se é dono da bola. Em sua atitude deliberadamente conformista, se faz apenas o elogio da trincheira, daquilo que nenhum artista admira, que é a marginalização.

Neste sentido, a existência dos “festivais de cinema experimental”, particularizados em relação a todo o cinema restante, faz com que os filmes sejam recebidos através de valores forjados a partir de uma dissociação de toda uma tradição de cinema que é anterior. Frequentemente, o que se vê nestes cineastas é apenas uma “experiência” pré-planejada, manifestada pela repetição dos mesmos signos e procedimentos já conhecidos, na produção de simulacros de filmes “experimentais”– em que as ideias de cinema e de experimento são superficialmente compreendidas, muitas vezes. Assim se percebe o quanto esta produção guarda apenas alguns clichês estilísticos ou um vago sentido “poético”, que aspira à poesia enquanto efeito e não como linguagem, resultando este cinema experimental em um puro “experimentalismo”, em que a tentação de criar novas surpresas, novos efeitos, é maior do que o caráter de experiência que o filme mesmo comunica em continuidade à produção artística anterior de um mesmo sujeito e do cinema, em geral.

Este forjamento de efeitos não está muito distante do cinema que pensamos ser “convencional”, pois a mesma atitude está presente também naquilo que se pretende mais “autoral” no cinema narrativo, definido por uma malícia estilística alinhada às tendências “esteticistas” de seu contexto imediato na exposição de motivos conteudísticos ordinários, em uma pura exterioridade que jamais se volta ao interior de suas próprias relações. No fracasso de sua comunicação, motivado, em grande medida, pela negligência de fundamentos e precedentes históricos, se produz um lamento sem sentido, uma vez que o realizador (ou qualquer outro artista), sendo o único responsável por encontrar novas soluções para sua expressão, é “aquele que não tem direito de reclamar”, como já afirmava o jovem Truffaut

Se existe de fato uma semelhança entre a poesia e o cinema (ou qualquer outra arte), isto se dá justamente pelo aspecto “poético” com que se trabalha a linguagem, isto é, o entendimento por parte do sujeito dos aspectos que compõem a materialidade expressiva de seu meio e de seus objetos, movidos pela sua capacidade de articulação. O que também pode haver é, certamente, uma semelhança em relação à ligeireza da prática, quando se trata de um cinema despojado, realizado através de pequenas câmeras, sem equipes, por uma economia extrema de meios que se assemelha à liberdade, espontaneidade e contingência do trabalho de quem escreve seus poemas tendo apenas caneta e papel.

Entretanto, mesmo que a poesia moderna tenha se desprendido em grande medida das formas clássicas (desde, pelo menos, o verso livre com Whitman), jamais se criou uma dissociação para o que nela fosse “experimental”, ainda que poetas como Mallarmé, Cummings ou os concretistas se afastassem cada vez mais de qualquer lógica “prosaica” de exposição. É interessante lembrar o entendimento da proposição de Ferreira Gullar a propósito do “tensionamento da linguagem”, definido por ele como um esgarçamento do sentido original das palavras, expandindo suas possibilidades de comunicação, sob o pretexto da expressão de um novo objeto: em outras palavras, um deslocamento do significante em relação a um determinado significado, o que provoca um novo caráter de significação. Assim, se configura uma disputa de forças entre forma e conteúdo, onde se percebe a maneira como determinadas escolhas formais atuam na contenção de um determinado conteúdo que se pretende comunicar. Isto é, a síntese, a unidade do objeto artístico, através do próprio trabalho de lapidação formal, da sensibilidade às materialidades expressivas, do deslocamento das expectativas, que particulariza o novo sentido proposto, sendo responsável também pela descoberta de novas formas e a abertura a novas possibilidades de linguagem.

É por este mesmo trabalho de lapidação que o caráter do experimento se manifesta não apenas no “cinema experimental”, mas em qualquer outro cinema que não se aproprie deste rótulo, pois o que ele designa é uma inteligência que dirige seus elementos expressivos na descoberta de uma linguagem particular. Ao ignorar este caráter de tensionamento, o experimentalismo deixa de corresponder a uma tradição, de superá-la, de aumentá-la, pois é precisamente por apenas reproduzir procedimentos já conhecidos, reafirmando os critérios de seu contexto imediato, ignorando o desenvolvimento de um pensamento e guardando somente os seus efeitos superficiais, que ele não pode fazer parte desta tradição, limitando-se a associar-se a ela apenas pelo comentário, sem dar um passo adiante em um sentido distinto – o que leva, fatalmente, estes comentadores a estarem deslocados de qualquer experiência histórica.

2 – Da tradição à assimilação histórica

A “tradição”, ou “uma tradição”, não se refere a um conjunto de valores consolidados e inquestionáveis (gesto conservador que não faria avançar as formas artísticas),mas a um conjunto de obras que são, sim, referenciais, pelo seu caráter histórico, às novas produções, cujo diálogo estabelecido é justamente uma maneira de evitar a cristalização dessa tradição. É entre as brechas dos modelos já existentes, por certo caráter de correspondência e continuidade, que se pode criar algo novo e particular, que pode vir a se tornar histórico de acordo com o seu grau de inovação e particularidade. Isto implica, efetivamente, um conhecimento a propósito destas possibilidades de criação, uma noção básica dos resultados das experiências realizadas anteriormente e um comprometimento do sujeito com o próprio trabalho que desenvolve, consciente de que esta inovação acontece somente à medida que ela guarda em si certos aspectos das obras anteriores.

Quando pensamos nos primeiros anos de produção de Stan Brakhage, nome que se impõe com maior gravidade quando falamos a propósito da tradição do cinema experimental americano, os filmes realizados neste período se revelam decisivos para o entendimento desta questão. Se, a princípio, seus primeiros filmes refletem as experiências de James Broughton e Sidney Peterson –realizadores de dramalhetes de um caráter “lírico” e “lúdico”, distintos de uma produção convencional, mas limitados a pequenos teatros filmados, oferecendo muito pouco em potencial imagético, para além de alguns truques casuais –, será Maya Deren que mais decisivamente irá se impor como uma influência para os procedimentos presentes em Brakhage. Em Deren a linguagem constitui de maneira mais radical a narrativa em si, dependente de seus procedimentos de montagem, de sua articulação espacial e de sua fotografia, o que desloca a experimentação sobre a narrativa, não apenas dispondo o onirismo como um tema, mas manifestando-o agora diretamente no próprio caráter de sua linguagem. Nela, é somente através de uma forma nova que um conteúdo novo se expressa, desenvolvendo uma poética muito particular. Seu gesto é histórico, afinal, pois inaugura um novo domínio, uma nova tradição, que aprofunda de maneira muito mais grave e incisiva as possibilidades expressivas do “filme experimental”.

Assim, após sofrer a influência dos primeiros cineastas, Brakhage toma de Maya Deren uma lição que desenvolve em um sentido cada vez mais particular, partindo da assimilação de uma tradição anterior, sendo capaz de encontrar também, para si, novas abordagens que oferecerão um sentido dinâmico na expressividade do filme, na identificação das possibilidades presentes no interior de sua obra, pensando em novos caminhos que possam ser percorridos, cuja influência se afirmará em um cenário de efervescente interesse pelas possibilidades do cinema experimental.

Trazendo um exemplo mais próximo, da cinematografia brasileira e do cinema ficcional, pode-se dizer também que para que Glauber Rocha realizasse o seu díptico cangaceiro “Deus e o Diabo” e “O Dragão da Maldade”, foi antes necessário que ele tivesse assistido e assimilado os westerns hollywoodianos de John Ford ou os filmes pós-guerra de Rossellini, apreendendo do primeiro a construção narrativa, do segundo a materialidade do filme e de ambos o caráter histórico da representação. Sem eles, a inovação de Glauber Rocha não seria possível, pela que ela comporta de uma dramaturgia rigorosa, de uma teatralidade representacional, de uma pobreza de meios e uma contingência material que o cineasta é capaz de contornar em uma radicalidade formal, em uma nova expressão, absolutamente diferenciada das anteriores, que influencia grande parte do cinema moderno que se desenvolveria na Europa a partir de meados dos anos 60.

Se “a poesia é sempre, em certa medida, um contrário da poesia”, como diz Bataille sobre Baudelaire, esta negação implica, necessariamente, um conhecimento a propósito da poesia anterior, para que a ela se possa estabelecer uma oposição. Pois tal como a “anti-arte” jamais é o avesso da “arte” que antes existia, também o “anti-cinema” nunca pode ser o avesso do cinema, em si. O “anti” é sempre uma revolta contra os valores vigentes de seu contexto imediato, em uma tentativa de superação de suas limitações expressivas através do resgate de pensamentos, de atitudes passadas, de uma tradição que é revitalizada por esta contribuição, pela própria consciência estética que está implica em seu novo direcionamento.

Todo novo gesto de criação trata de um diálogo com a história, portanto, sempre por meio de um confronto, de uma relação dialética, e não simplesmente pela reprodução dos procedimentos estilísticos comuns, que cada vez mais se repetem sem qualquer tipo de consciência profunda em relação ao seu passado. Desta maneira, estes dois procedimentos se encontram, definidos pela assimilação que o sujeito faz do passado e a sua capacidade de elaborar uma nova articulação a partir desta tradição, complementando-se, sempre, um caráter histórico e um caráter reflexivo da linguagem.

Obviamente, a chave de acesso a estes processos históricos, ou a esta “tradição”, nunca é cronológica. Sempre é um objeto posterior que faz com que algo anterior se torne mais evidente: é sempre a repercussão do objeto que faz com que sua origem seja definida. Nada nasce “histórico”, mas se torna de acordo com as relações e influências que se desenvolvem a partir dele. Lumière, figura tão misteriosa e fundadora para o cinema como Homero é para a literatura, não era histórico até que se fizessem outros filmes e os primeiros movimentos de câmera, as primeiras entradas e saídas de quadro, ou mesmo as primeiras encenações as mais simples se tornassem evidentes nos seus filmes, de maneira que quando assistimos a um filme de Straub ou de Garrel, inevitavelmente voltamos a estes primeiros filmes.

Toda experiência se desenvolve a partir do conhecimento das experiências de uma geração anterior, redefinidas então novamente pelo caráter da contribuição particular de um sujeito. Logo, o valor desta experiência também supera este sujeito, para influenciar gerações futuras, para se tornar história. O caráter da experiência jamais está excluído do trabalho de qualquer artista comprometido com o jogo de sua criação, enquanto também persistir um olhar, uma atenção que lhe favoreça um gesto crítico ao interior de sua própria obra, na identificação de problemas e soluções em relação aos seus mecanismos expressivos.

3 – Da crítica à realização formal

A atividade crítica, ao tratar da assimilação e da exposição de determinadas obras cria, muitas vezes, o contexto necessário para que esta obra se destaque. Ao mesmo tempo, é esta atividade também tantas vezes responsável para que um determinado sujeito, ao se dedicar às obras de outros cineastas anteriores, tendo de apresentá-los de uma maneira rigorosa e consistente para esse público leitor, apreenda em maior medida as particularidades que definem o caráter expressivo destas obras, lhe conferindo uma maior consistência reflexiva em uma ocasião passagem da crítica à realização.

Neste sentido, é positivo precisar que o contexto em que a Nouvelle Vague se afirmou não se deu de uma hora pra outra. Ao longo de toda a década de 50, a atuação dos “jovens turcos” na Cahiers Du Cinéma criou um público e apresentou uma ideia de cinema pra esse público, de maneira que quando eles também puderam chegar a fazer os seus próprios filmes, também este público estivesse preparado para as ideias cinematográficas que, então, gostariam de propor. Se o conjunto dos resultados estéticos atingidos por esta geração é um dos mais notáveis dentro de um determinado período da história do cinema, e suas influências se fazem sentir até hoje, isto se deve a estes anos de aprendizado e preparação, não apenas uma preparação de seu público, mas sobretudo deles mesmos, pois desde o princípio a grande contribuição desta geração se deu no sentido de tornar evidente que o tamanho de um realizador não se mede pela dimensão dos projetos que assume, mas pelo caráter do pensamento que há por trás dos filmes que fazem. Assim, o “autorismo” de um determinado cineasta pode se definir não simplesmente pelos “traços estilísticos” de sua obra, mas pelo próprio “pensamento autoral” que define nos gestos de sua criação.

A filmografia do Godard nos anos 60 é extremamente representativa quanto a esta assimilação de uma tradição anterior, pela forma como basicamente tratou de se associar às tradições de gêneros diferentes em cada um dos filmes que fez. Ali está o filme o policial, o musical, a ficção cientifica, mas se superficialmente seus filmes guardam ainda este nexo com os gêneros cujos códigos convencionais o público já está habituado, Godard é capaz também de tensioná-los através dos interesses que movem, a cada vez, a formação de sua linguagem, na tentativa de encerrar os seus objetos de comunicação, dos quais os gêneros, em si, não funcionam senão como pretextos ou pontos de partida, afinal.

Aqui se deve apontar, entretanto, que não apenas a produção de “Acossado” se deu a partir de uma limitação de meios materiais muito grandes, mas em seu resultado final interveio também de maneira decisiva as exigências dos distribuidores para que o corte original de três horas de duração fosse reduzido pela metade, intervenção responsável pela composição pela qual conhecemos este filme hoje e sempre. O resultado absolutamente imprevisto, fora de qualquer intenção original do cineasta, fez com que Godard tivesse que se confrontar com as possibilidades surgidas desta alteração, explorando os seus efeitos estéticos nos filmes seguintes para muito além do jump-cut e movendo uma verdadeira e nova experimentação entre as relações de som e imagem.

Não é simples acaso, então, que mesmo Godard tornando-se um enorme cineasta, dotado de quaisquer permissividades que os produtores pudessem tolerar, jamais ele se disporia a realizar outro filme com mais de noventa minutos (pelo que esta duração implica mesmo a necessidade de uma concisão expressiva), nem mesmo de abrir mão, com raras exceções, de certa limitação de meios econômicos para suas produções, trabalhando ainda com baixos orçamentos. Pois é a partir destas limitações, desta economia financeira e material, que a sua economia estética pode surgir com maior expressividade, inspirando a invenção de novas soluções expressivas e se tornando mais imediatamente responsável pela constituição de uma nova linguagem.

A realização de “Acossado”, portanto, contém em si uma experiência decisiva para sua formação, não apenas pela maneira com que ali se aplica o seu gênio na
disposição dos elementos (formais e conteudísticos) do filme, mas exatamente por como este gênio se impõe à identificação de problemas e à busca de novas soluções. Sem estes problemas, e sem esta atitude impositiva sobre eles, Godard
não seria Godard, pois é a disposição à mudança, à inquietude, que lhe possibilita encontrar em um filme o problema a ser resolvido no próximo, quando “as circunstâncias, ou seja, a história”, como dizia Blanchot, “pronunciam esse fim que falta, e o artista, libertado por este desenlace, por um desfecho que lhe é imposto, pura e simplesmente, vai dar continuidade em outra parte ao inacabado”, seguindo uma consciência crítica voltada aos elementos de cada obra, no desenvolvimento de suas experiências anteriores.

A atitude do cineasta frente ao filme que faz, na continuidade de um projeto estético determinado, na formação e consolidação de uma linguagem particular, é semelhante à atitude frente ao texto crítico, quando o escritor observa as relações presentes no objeto criticado, o grau de sua composição, ao mesmo tempo em que busca, para o seu texto novas relações a partir destes elementos. Seu trabalho de criação impõe, acima de tudo, que este texto represente uma nova composição formal, definidora de sua autonomia e unidade fundamental. Esta forma é a imagem de suas relações, cuja coerência interior é determinante, também, da consistência de sua linguagem.

Matheus Zenom