A espectadora alegre

Em determinado momento de “Alvorada do amor (The Love Parade, 1929), a personagem de Maurice Chevalier, irritada e deprimida, absorvida por suas crises matrimoniais, senta-se em um banco no jardim do palácio e pega uma fruta de uma árvore. Um cachorro o encara com brilho nos olhos. “Você é o único aqui que me admira” diz Chevalier, que depois de ter se casado com a Rainha, passa a ser tratado como um rostinho bonito ao lado de sua esposa, sem poder decidir nem mesmo o horário do café-da-manhã.

Mas estaria o cachorro vidrado em Chevalier ou na fruta que ele está comendo? Me parece que qualquer pessoa na mesma posição com a fruta na mão seria olhada desta maneira pelo animal. Apesar do cachorro não ter praticamente nenhum peso narrativo no filme, a verdadeira natureza do desejo ou, mais especificamente, a relação entre desejo e aparência é uma das questões centrais e mais recorrentes no cinema Ernst Lubitsch. 

Talvez um dos exemplos mais marcantes da maçã lubitschiana que passa de mão em mão seja Claudette Colbert dividindo os segredos da sedução com a aristocrata Miriam Hopkins ao final de o “Tenente Sedutor (The Smiling Lieutenant, 1931). Se em um primeiro momento, a troca de sorrisos e canções entre Colbert e Chevalier evoca algo de genuíno no amor e no flerte, o final do filme prova que desejo de Chevalier não é por Colbert ou por Hopkins, mas por uma aparência, um modo de ser e agir que pode ser ensinado, copiado, interpretado.

No cinema de Lubitsch somos na mesma frequência constantemente seduzidos e convidados a nos retirar, somos comovidos pelos prazeres ao mesmo tempo que cultivamos a suspeita e a desconfiança. Ao analisar as estratégias de aproximação e distanciamento do realizador em relação a sua audiência, Dan Sallitt comenta o trabalho de direção de atores [1]: 

Mas Lubitsch tanto deseja a comunhão direta com o público que  desenvolve estratégias de atuação para o produzi-la mesmo quando a personagem não é um substituto da perspectiva do público.  Para ilustrar uma destas estratégias: numa cena de The Smiling Lieutenant (1931), Chevalier, convidado a educar a princesa ingênua Miriam Hopkins em assuntos mundanos, tenta explicar o que significa dar uma piscadinha.  Após um momento de incerteza, Chevalier encontra uma explicação: um piscar de olhos transmite não só afeto, mas também o desejo de fazer algo a respeito. Hopkins, percebendo que a conversa entrou em um território perigoso, se recompõe subitamente e diz: “Basta por hoje”.

Essa comunhão com o espectador, que no exemplo citado funciona como uma piscadinha entre Hopkins e aqueles que assistem o filme, prova que Hopkins aprendeu bem a lição. Também serve como uma nota pouco realista de atuação, uma maneira de lembrar aos espectadores que eles estão assistindo a uma história sendo encenada.

Mas outra estratégia lubitschiana, que me chamou atenção em especial quando vi recentemente “A Viúva Alegre (The Merry Widow, 1934), é o constante reposicionamento do espectador em sua relação com a “história de amor” narrada em primeiro plano. A organização do filme – a sua trama repleta de idas e vindas, a intromissão das personagens secundárias e o cenário cenário que se abre incessantemente para palcos e platéias –produz um estranhamento, invadindo aquilo que supostamente deveria ser a identificação primeira do espectador: com os sentimentos dos personagens principais do filme.

Ao contrário de “O Tenente Sedutor, “Ladrão de Alcova(Trouble in Paradise, 1932), “Uma Hora Contigo (One Hour with You, 1932), “Sócios no Amor (Design For Living, 1933) e “Anjo (Angel, 1937), nos quais a ameaça ao amor e ao casamento são encarnadas concretamente por uma terceira personagem (Miriam Hopkins, Kay Francis, Genevieve Tobin ou Melvin Douglas), em “A Viúva Alegre a história de amor é continuamente interrompida por múltiplos personagens, por vezes até por multidões, que funcionam como a encarnação das pressões sociais ao mesmo tempo que espectadores desse romance.

O filme começa pelas ruas de Marshovia, um pequeno reino do leste europeu, cuja economia se encontra dependente do dinheiro da viúva Sonia (Jeannette MacDonald). Ela por sua vez, não é uma aristocrata purista de nariz em pé; apesar de manter os votos de viúva, não se incomoda quando ao lado de sua mansão, os funcionários bebem cerveja, tocam e festejam. Em um fundo musical popular, ela logo começa a cantar e assim os súditos a observam, tornando a varanda da viúva um palco e o bar um camarote.

Conde Danilo (Maurice Chevalier), fascinado e obstinado em ver o rosto da viúva que insiste em usar um véu, sobe na varanda comprando a fidelidade dos cães de guarda com carnes de boa qualidade. Apesar de num primeiro momento McDonald não se interessar por Chevalier, a investida faz ela olhar a vida com outros olhos, abandona o luto e viaja para Paris em busca de uma nova vida. Mas quando ela sai do país, Marshovia entra em crise e o Rei envia o maior galã marshoviano (Chevalier) para seduzir a viúva de volta para o território nacional.

Assim como o oficial sedutor, em termos cinematográficos, Lubitsch já logo de cara também nos oferece um pedaço de carne, como escrevem Bernard Tavanier e Jean Pierre Coursodon [2] sobre este mesmo filme: “sentimos uma euforia perante a coreografia épica, a sumptuosidade dos cenários, o cenário das canções, que nunca mais encontraremos, mesmo perante os melhores musicais dos anos cinquenta”.

Mas as constantes reposições de dentro e de fora, colocam o espectador em um novo lugar e nesse filme elas são incessantes: são inúmeras portas que se abrem e de fecham, novos ambientes que se criam e pessoas que escutam atrás das portas e paredes, incluindo por vezes os próprios espectadores. 

Para citar um exemplo, quando McDonald chega a Paris, ela se arruma em seu quarto, enquanto do lado de fora seus futuros pretendentes, gentlemans da sociedade interessados em seu dinheiro, esperam por ela. Aqui eles funcionam como um público, esperando sua deixa atrás das coxias (quem sabe um deles seja o escolhido e possa subir no palco principal). Mas ela escuta da janela Chevalier passando, e de sua varanda, antes palco principal, ela passa a ser também espectadora.

Nesse momento, tal qual Hopkins e Colbert, McDonald sai de sua persona de “mulher de classe” para se portar como uma dama de cabaré (Fifi), que seduz o gosto previsível de Chevalier sem muitos esforços [3].

Como é de se esperar, são esses os momentos mais encantadores do filme, afinal ninguém filma o flerte e as primeiras chamas do desejo como Lubitsch. E apesar dos eternos intrusos, espectadores de Fifi, que por vezes têm que ser tirados à força do filme por Chevalier (incluindo entre eles um retrato de Napoleão), a química entre os dois vence, ainda que até aqui Chevalier talvez só goste de Fifi enquanto uma dama do cabaré Maxim.

A partir deste ponto, o filme encena o conflito entre a história de amor programática, a ordem do rei para que McDonald e Chevalier se casem, a qual todos os personagens secundários conspiram para que aconteça, e a história de amor orgânica entre duas personagens que se encontraram e decidiram se amar. Irreverente, Chevalier se recusa a seguir o roteiro, agora apaixonado por Fifi, deprimido e bêbado ainda no cabaré, precisa ser arrastado por uma legião de mulheres afim de cumprir sua missão primeira: se casar com a rica viúva. Desde o cabaré até a embaixada é preparado como um ator nos bastidores, o vestem, passam perfume e o empurram para dentro do palco para ele performar seu número.

Mesmo se, em tese, as intenções da sociedade e do casal caminham para o mesmo lugar, o fato em si de haver um roteiro imposto e espectadores cheios de expectativa cria para o romance problemas, postergando e resignificando a comunhão amorosa das personagens principais. Numa cela de prisão (aliás nada mais emblemático para a concepção lubitschiana de casamento), o brilho nos olhos de Chevalier e McDonald contrastam com a patifaria armada pelos dirigentes de Marshovia, que os prendem na cela até que eles se casem. Os diretores e articuladores acompanham cada movimento do casal por um buraco na fechadura, mimetizando a nossa própria postura na sala de cinema.

Ao fim, Lubitsch parece nos jogar a maçã de Chevalier, mas o final feliz dos dois apaixonados não é assim tão doce quanto sua superfície lustrosa prometia. Lubitsch nos deixa fora dos muros de seu palácio e de seu palco. É por sermos sempre lembrados do fato de estarmos de fora, observando não apenas uma história, mas atores encenando os seus papéis, que seus filmes sempre deixam um gosto amargo na boca. Por detrás da comédia, da aparente leveza e das gags, não há em Lubitsch finais felizes.

Roberta Pedrosa

Notas:

1 – Disponível em: http://www.panix.com/~sallitt/lubitsch.html.

2 – 50 ans de Cinéma American, no verbete sobre Ernst Lubitsch.

3- Nesse primeiro encontro de ambos, que dentro da lógica do filme, apenas nós e McDonald sabemos ser na verdade um segundo, Chevalier tem um acesso de risos quando ela diz não conhecê-lo. “Ela não me conhece” ele repete sem conseguir parar de rir, em um lapso de consciência no qual Chevalier parece saber mais sobre o filme do que Conde Danilo. Essa situação me parece ser exemplar para o argumento de Sallitt que eu expus acima.