Um poema e duas posturas ébrias distintas

Tal como mencionado em O livro no Brasil de Laurence Hallewell, até 1954 a produção primordial da editora José Olympio consistia predominantemente de textos ficcionais e técnicos. De acordo com o pesquisador de nacionalidade duplamente inglesa e norte-americana, este cenário teria sido modificado pelo êxito comercial de uma publicação que reuniu a obra completa de Manuel Bandeira. Ora, encontramos aqui ao menos uma inconsistência na transmissão dos textos, porquanto, segundo a bibliografia constante na Poesia completa e Prosa seleta (2020)de Manuel Bandeira que foi publicada pela Nova Aguilar, a única publicação de Bandeira pela José Olympio no ano de 1954 foi a sexta edição do livro Poesias (1924), que reuniu praticamente todas as obras autorais do poeta publicadas ao longo dos trinta anos entre a primeira e a sexta edição. Atentemos para o advérbio “praticamente”, porque a publicação da José Olympio não coligiu a obra Mafuá do malungo (1948).

Findada esta digressão, gostaríamos de valorizar a pesquisa de Hallewell na medida em que ele menciona a existência da Coleção Rubáiyát, conjunto de traduções de obras poéticas, sobretudo orientais, que foram publicadas pela José Olympio a partir de 1935. É a obra que inaugura e nomeia esta coleção que nos interessa aqui enquanto objeto particular de pesquisa. Escritos pelo persa Omar Khayyám no início do século XI, os versos reunidos na obra Rubáiyát são marcados por um intenso elogio às sensações e às paixões como maneiras mais legítimas de experimentar o mundo. O vinho e a embriaguez por ele ensejada são também um dos motivos poéticos mais recorrentes ao longo da obra. A edição que compulsamos é a décima quinta, publicada em 1979. O volume em si é de perceptível composição comercial; seu papel, no entanto, é de uma gramatura um tanto quanto mais espessa que o comum para a época. Isto se justifica pela curiosa coleção de ilustrações que circundam os poemas. Estas simulam texturas da tapeçaria persa, o que confere um certo teor artesanal à obra, ainda que sua configuração seja inegavelmente simples.

A tradução dos versos, originalmente persas, foi feita por Octávio Tarquínio de Sousa a partir de traduções francesas e americanas, tal como ele mesmo declara no prefácio à primeira edição. Octávio, motivado talvez pelos textos que utilizou como referência, privilegiou os aspectos semânticos do texto, preterindo assim qualquer rigidez formal, fosse esta sonora ou métrica. Tradução muito distinta foi feita, porventura, por Manuel Bandeira, cujo Rubáiyát conta inclusive com 8 poemas a mais do que a edição da José Olympio. Cotejaremos a seguir as duas traduções a fim de elaborarmos alguma espécie de exegese.

Precisamos apontar que o mesmo poema consta como o décimo oitavo na tradução de Octávio, mas como vigésimo primeiro na de Bandeira. A tradução de Bandeira foi extraída da já mencionada Poesia completa e Prosa seleta.

18

Quando nasci?

Quando morrerei?

Nenhum homem pode evo-

car o dia do seu nascimento

ou prever o de sua morte.

Vem, ó minha deliciosa

amada!

Quero esquecer, na embria-

guez, a nossa incurável

ignorância.

21

Não posso evocar o dia

Do meu nascimento, nem

Dizer quando morrerei.

Que homem saberá fazê-lo?

Vem, minha amada! À embriaguez

Quero pedir que me faça

Esquecer que neste mundo

Jamais saberemos nada.

Enquanto Bandeira optou pela construção em dois quartetos, cuja estruturação métrica dos versos está regularmente distribuída entre heptassílabos e octossílabos, Octávio organizou o poema em quatro estrofes sem regularidade métrica — ao menos esta é a configuração suscitada pela curiosa tipografia do exemplar da José Olympio. Compará-las é um profícuo estudo acerca das seleções estilísticas privilegiadas por cada um dos tradutores. 

A tradução de Octávio de certa forma enaltece uma incerteza eloquente do sujeito lírico, cuja hesitação diante dos dilemas da vida está expressa, dentre outras maneiras, pelos intervalos gráficos entre estrofes e pela maior presença do sinal gráfico da interrogação. Outro sinal gráfico importante na tradução de Octávio é a vírgula, que no oitavo e no nono verso sinaliza o deslocamento sintagmático do complemento nominal “na embriaguez”. Esta mesma embriaguez aparece na tradução de Bandeira não mais como complemento, mas como objeto indireto; consideramos isto digno de nota, porquanto ainda que os termos sejam igualmente integrantes, a organização sintagmática de Bandeira desvia a embriaguez para antes do sujeito – o que lhe confere, de certa forma, uma espécie de privilégio semântico. 

Observemos agora a tradução de Bandeira. Além da já mencionada estruturação notadamente mais formalmente simétrica, é digno de nota que o autor conseguiu expressar um mesmo conteúdo com maior economia estrófica e versificatória. Quais foram os mecanismos empregados para a obtenção de tal resultado? Vejamos: os cinco primeiros versos de Octávio foram transformados em quatro por Bandeira sem que houvesse assim qualquer tipo de prejuízo à função referencial do texto, pelo contrário; a incerteza eloquente parece sofrer também uma inversão: ela se torna em Bandeira uma eloquente incerteza.

Talvez esta tese fique mais clara se atentarmos para o fato de que o poema em Bandeira assume um teor muito mais aforístico do que panegírico. A precisão econômica do discurso é privilegiada em detrimento do ornamento pomposo. Isto de maneira alguma torna a tradução melhor ou pior do que a de Octávio, mas há sem dúvida em Bandeira uma compreensão mais sóbria e pessimista do que teria sido expressado pelo poeta persa da embriaguez. É como se para Octávio a embriaguez fosse sensorial e isso precisasse ficar explícito pela organização plástica dos versos. Bandeira por outro lado parece ter absorvido a embriaguez dos versos como uma espécie de disritmia existencial. Acreditamos que isto fica nítido nos últimos versos. Enquanto Octávio de certa forma nos propõe que esqueçamos a “incurável ignorância” através da embriaguez colocada no meio do sintagma, Bandeira coloca-nos em uma circunstância onde à embriaguez pedimos o esquecimento de que “neste mundo jamais saberemos nada”. Não podemos evitar de confabular acerca da escolha lexical do poeta Pernambucano, que coloca o pronome “neste” e o vocábulo “mundo” assim tão próximos, como se talvez estivesse sugerindo uma espécie de limitação à ignorância universalmente presente na tradução de Octávio.

Yael Carvalho Torres 

Bibliografia:

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e Prosa seleta. São Paulo: Nova Aguilar, 2020.

CRENI, Gisela. Editores artesanais brasileiros. Belo Horizonte: Autêntica Editora; Rio de Janeiro: Fundação biblioteca nacional, 2013.

GENETTE. Gérard. Paratextos Editoriais. 2ª ed. São Paulo: Atêlie Editorial, 2018.

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. 3ª edição São Paulo: Edusp, 2012.

KHÁYYÁM, Omar. Rubáiyát. 15ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.