“The Bellboy” (1960) ou Jerry Lewis e o cinema elementar

“A impressão de que grandes romances como Dom Quixote e Huckleberry Finn são virtualmente amorfos, serviu para reforçar meu gosto pela forma do conto, cujos elementos indispensáveis são economia e um começo, meio e fim claramente determinados”

– Jorge Luis Borges, Perfis: Ensaio Autobiográfico

A economia da qual fala Borges, num sentido que abrange a narrativa e comenta do seu poder de síntese, de objetividade da narração, pode facilmente ser aplicada ao cinema, que, ao mesmo tempo, vê uma série de outras definições se encaixarem ao termo. Dentre elas, há a economia material, observada diretamente no plano do filme, na sua profusão ou escassez de elementos cênicos, ou a economia em seu sentido financeiro, que, embora exterior à obra, evidentemente a influencia diretamente.

Em The Bellboy (1960), de Jerry Lewis, primeiro longa que o comediante/ator dirigiu, essas ideias de economia parecem se colocar de maneira contundente. Em um primeiro momento, é um filme realizado com o intuito de ocupar a janela de exibição de verão americana de 1960, mantendo Cinderfella (1960, de Frank Tashlin), no qual Lewis estrela, em dezembro e, assim, garantindo dois “Jerry movies”, assegurados sucessos financeiros, no mesmo ano para o estúdio. Assim, surge uma produção de caráter menos planejado (já que realizá-lo é uma decisão de última hora por Lewis e a Paramount, sua produtora) e de recursos evidentemente mais controlados (muitos figurantes, provavelmente os reais hóspedes do hotel em sua maioria, mas poucos atores de fato; restrição dos eventos a praticamente apenas um ambiente), estabelecendo definitivamente a relação entre a economia financeira e material do filme. No que diz respeito à fala de Borges sobre o conto e sua limitação, de como administram bem um começo, meio e fim, entram as gags que o constituem: literalmente pequenos contos, nos quais os elementos elogiados pelo autor argentino se fazem presentes.

Logo no início do filme vemos um fictício executivo da Paramount Pictures que se incumbe de apresentar a nós, espectadores, o que estamos por ver, numa espécie de prólogo que normalmente seria veiculado antes mesmo do filme começar no cinema, mas que está integrado à diegese, já de modo bem irônico. Ele discorre de forma cômica sobre alguns gêneros consagrados do cinema americano: o romance, a ficção científica, o filme de gângster… até chegar no caso de Bellboy, um filme “diferente” e “sobre diversão”, pois não tem nem história e nem trama. “É um diário visual de algumas semanas na vida de um completo doido”, nas palavras dele: após a descrição, o homem sofre uma crise de risos e implora para que o filme comece de uma vez. O que tomar desse primeiro momento antológico, senão que ele é o postulado da modernidade de Jerry Lewis? Pouco fazer dos gêneros e “negar” a instância narrativa, sobre o qual aquele cinema foi fundado; tudo isso é, realmente, coisa de um completo doido. Mas também de um gênio, que sabe perfeitamente, com sua já cheia bagagem no cinema, o que fazer e como fazer num filme, mesmo que tudo que faça aqui seja à sua própria maneira. A “diversão” antes mencionada, para além da natureza das gags em si, está manifestada na diversão que o próprio Lewis encontra em dirigir o filme, de ter um primeiro gosto do que é a realização em sua completude.

Tendo em vista essa estrutura, o que sobra aqui? Justamente a habilidade de Lewis de trabalhar com o que se coloca à sua disposição em termos materiais: o hotel, ao qual ele praticamente confina o filme, as infinitas possibilidades cênicas e cômicas que surgem a partir da exploração desse local com sua persona de funcionário atrapalhado e, sobretudo, uma fundamentação dessas cenas em princípios basilares do cinema: o fora de campo, a gerência do espaço pelo enquadramento e a pantomima de sua personagem, todos procedimentos muito “crus”, realmente elementares desta arte, cujo uso corrobora a ideia de uma economia que se observa no filme. Se a estrutura em torno de uma reunião de várias gags já faz com que The Bellboy remeta àquele “primeiro cinema” – de um esvaziamento narrativo, das atrações com sentido fechados nelas mesmas – o fato da personagem que Lewis interpreta, o mensageiro Stanley, não falar durante todo o filme, com exceção da última cena, serve para maximizar isso. [1] É a expressão da inteligência do cineasta moderno, capaz de conciliar o espírito de ruptura com o olhar ao passado da arte.

Esse retorno que é feito ao cinema dos primórdios, a uma arte de experimentações de caráter bastante visível e declarado, se manifesta no momento em que ele toma o espaço fora-de-campo como privilegiado para efetivar as ações da gag, mais especificamente em três cenas célebres. Quando Stanley finalmente encontra uma fileira de assentos livres ao balcão da cantina para sentar e, apenas no mínimo instante em que pega um lanche e se vira de volta, elas já estão todas cheias – ação passada no espaço fora da câmera que é “denunciada” por um corte paradoxalmente inocente, que parece se situar no meio termo entre ser visível ou invisível, fazer a “magia” e ao mesmo tempo entregá-la, na linha de Mèlies. Também se observa isso no momento em que ele é designado a organizar as cadeiras para a exibição de um filme num salão gigante, no qual seu preciosismo em ajustar a única cadeira que o vemos transportar – pois todas as outras que completam as fileiras são colocadas fora de cena, através de uma elipse espacial que nos coloca frente a dois funcionários debochando de sua lentidão e permitindo com que Stanley termine sua tarefa num intervalo de tempo impossível – parece remeter ao próprio Lewis diretor retocando uma mise-en-scène cuja organização do espaço há de ser precisa e completamente sóbria. E, por fim, a cena em que o ator Jerry Lewis chega ao hotel, na qual o grande truque que mantém a suspensão de sua saída do carro só é possível, também, por uma questão de enquadramento: um número surreal de pessoas saem do carro, do qual só vemos um lado, em um ato evidentemente impossível. Como se a própria câmera se cansasse de esconder como se dá tal situação, um movimento reenquadra o plano e nos mostra o outro lado do carro, com a porta fechada, e finalmente Jerry Lewis sai do veículo, sob o êxtase do público que o aguardava. As expectativas são contrariadas e parece, então, que a mágica é possível – desde que nós não a vejamos, é claro.

Ao fazer de Stanley uma personagem muda (pelo menos durante a maior parte do filme), basicamente reativa em relação ao que acontece em seu redor, Lewis procura justamente focar em seu gestual e delegar ao som um papel cuja precisão na construção de um universo cômico e tátil, evidentemente uma novidade no cinema burlesco, parece encontrar correspondência apenas em Jacques Tati. A banda sonora é sempre somativa aos efeitos intencionados pela cena, seja na extensão do caráter “mágico” com que se desenvolvem algumas cenas, através de uma absurda dissociação entre som e imagem – a maçã invisível que provoca ruídos ensurdecedores de mastigação – ou mesmo pelos diálogos em seu estado mais “puro” de representação (o que vemos e ouvimos está em sintonia) que através de seu próprio discurso geram hilárias lógicas de contradições – o chefe do hotel que cobra rigidez na vestimenta e usa cuecas pelo ambiente, ou o gângster que ordena que seus subalternos apliquem toda sorte de agressões a um inimigo, mas no final ressalta: “sem violência!”. A síntese desse primor sonoro (pelo menos neste filme, pois algo similar seria feito de modo refinado e ainda mais econômico em The Errand Boy, de 1961, na cena da sala de reuniões) está no momento da orquestra, a manifestação mais clara da habilidade de Jerry Lewis em filmar uma cena se apropriando de tudo que está disponível a ele, fisicamente ou não. Diante da ausência de músicos que toquem os instrumentos dispostos no palco, entra em jogo seu inesgotável poder de invenção; basta o signo deles ali para que acreditemos na capacidade de Lewis de reger uma orquestra, de “tocar” estes instrumentos, fazendo surgir som da onde não tem, tudo a partir da própria imaginação.

Por meio da posição subserviente na qual se encontra a personagem principal é que surgem caminhos para averiguar cada centímetro do objeto que toca ou o espaço que ocupa. Como anuncia o narrador no início do filme, um bellboy é a engrenagem que coloca o hotel para funcionar, a figura que precisa estar à postos para quaisquer que sejam as situações a ele delegadas, e assim surge a relação desvairada de Stanley com esse universo, seja com pessoas ou com objetos. Do mesmo modo que esse filme podia conter apenas uma gag ou mais dez além das que já possui, também Stanley/Lewis poderia alongar a resolução de diversos problemas que se colocam a ele de mais mil modos diferentes – se não o faz, é justamente porque preserva o sentido econômico que cito de Borges a princípio. Se a incompatibilidade da personagem com o universo e a saturação das situações (o método do slow-burn) são a gênese do cinema burlesco clássico, Lewis toma para si apenas uma delas, a primeira, de modo a garantir esse caráter reduzido às suas gags e ao seu filme como um todo.

Há muito de primoroso em The Bellboy, desde o seu humor auto-referencial que só parece funcionar de fato porque, naquele momento, ele já estava atrás da câmera (o senhor entusiasmado por conhecer o ator Lewis, e que tenta disfarçar dizendo que “sua mãe o levava para assisti-lo”, ou o momento seguinte, com as sucessivas risadas do público em decorrência de qualquer coisa que ele diga, sejam elas piadas ou não) até o cuidado que se tem em pensar o espaço, o som, e o olhar para o passado não só do gênero, mas também do próprio cinema. Que seja um fato consumado que o Jerry Lewis ator, por uma presença de cena sem igual, conseguia também exercer um papel de criador em muitas das vezes, o que se inaugura aqui em The Bellboy, nas circunstâncias em que ocorre e o possibilita dirigir este filme, é um verdadeiro evento cinematográfico: aqui nasce um cineasta.

Davi Braga

NOTA

[1] Nesse sentido, vale lembrar da figura do sósia de Stan Laurel, estrela do cinema burlesco silencioso, que passa a perambular o hotel e participar das gags a partir de dado momento, num sentido bastante declarado de homenagem por parte de Lewis.