Sopas Cambell’s e Brillo Boxes
A primeira exposição individual de pinturas de Andy Warhol ocorreu na Ferus Gallery de Los Angeles, em julho de 1962, na qual esteve presente sua série de latas de sopas “Campbell’s” (1962), possivelmente aquele que será o trabalho mais reconhecido de toda sua carreira artística. Cada um destes quadros parte das mesmas dimensões de tela e é pintado através da mesma técnica para representar as características originais das embalagens de latas de sopa vendidas em supermercados. Em um primeiro momento, réplicas de um mesmo produto produzidas em massa, é por uma sutil, mas significativa diferença, que se pode perceber como cada uma delas repercute e dá continuidade a anterior: o sabor anunciado em cada uma das latas é diferente, o que muda essencialmente o seu conteúdo, que aqui é mera sugestão.
A identidade visual da sopa Campbell’s é uma sobra, um resíduo que vai para o lixo junto com a sua embalagem depois que a sopa, o que realmente interessava do produto comprado no mercado, é consumida. Warhol, no entanto, guarda a imagem desse produto, replica, fixa as suas incontáveis variações em uma série de quadros, atribuindo à sua aparência banal um novo sentido. Esta primeira exposição trouxe notoriedade a Warhol não apenas devido a polêmica do conteúdo de suas pinturas, mas por tornar evidente um caráter de reprodutibilidade e serialidade de seus trabalhos, assim como a afirmação de um dos motivos visuais a que mais recorreria nas décadas seguintes.

Existem diferentes hipóteses para o que o levou à feitura destes quadros. Uma delas, presente em “The Philosophy Of Andy Warhol (From A to B and Back Again)”, sobre uma série de pinturas que Warhol teria realizado a partir de uma notícia que leu sobre Picasso e as quatro mil obras que teria feito em sua vida, algo que o teria motivado a pensar que, valendo-se da rapidez da serigrafia, poderia fazer quatro mil pinturas em um único dia. Outra hipótese, relatada no “Warhol” de Arthur Danto, em que oferece motivações específicas para a escolha das sopas Campbell’s como tema: a principal é que este motivo teria sido sugerido por Muriel Latow, após Warhol pedir a ela por novas ideias “de grande impacto”, que lhe respondeu que pintasse algo que “todo mundo vê todos os dias, que todo mundo reconhece… como uma lata de sopa”. Independente da fidelidade destas origens, o fato é que esta exposição apresentará ao público de arte uma expressão distinta, a partir de motivos e técnicas até então imprevistas e contrárias a tendência ainda marcante do expressionismo abstrato.
De maneira mais decisiva, esta tensão entre um objeto original e sua reprodução encontra nas “Brillo Boxes” (1964), esculturas que emulam a aparência e as dimensões exatas de caixas da marca de esponjas de cozinha Brillo. Neste caso, Warhol encomenda a produção de caixas de madeira que simulam as de papelão originais, que não suportavam bem a aplicação da tinta, para pintar sobre elas exatamente o mesmo design das embalagens comercializáveis, reconstituindo sua aparência e escala real para lidar com materiais e propósitos completamente diferentes. As “Brillo Boxes” de Andy Warhol não são, entretanto, as mesmas que o consumidor pode adquirir nas prateleiras do mercado, mas as caixas nas quais as embalagens individuais são contidas e que nos supermercados é encontrado apenas nos armazéns e depósitos – algo reforçado pela sua disposição ao espectador, empilhadas umas sobre as outras. De alguma maneira, é como se Warhol estivesse apresentando o produto tal como ele existe entre a sua origem industrial e a disposição comercial, algo que permanece normalmente fora dos olhos dos clientes e manipulável pelos trabalhadores, em uma espécie de “bastidores do consumo”. [1]
Warhol, afinal, não trabalha a pintura a partir de temas originais, mas sua originalidade trata exatamente de tematizar objetos cotidianos, seja as embalagens de sopa Campbell’s, as fotografias de ídolos midiáticos como Elvis Presley e Marilyn Monroe ou ainda manchetes e fotografias tomadas de jornais. Em um primeiro momento, não há um sentido mais profundo aparente no que expõe. Neste trabalhos, seu gesto de apropriação e amplificação destas imagens é algo mais contundente, adquirindo uma nova expressão a partir do contexto em que são inseridas, algo que dialoga com os readymades de Marcel Duchamp. Uma diferença fundamental em relação ao francês, no entanto, consiste do fato de Warhol reproduzir manualmente todas estas imagens e objetos, ainda que através de uma técnica automatizada, como a serigrafia, que Warhol explora de modo a impor uma relação direta entre o objeto e seu interlocutor, independente da subjetividade do artista, seja ela temática ou formal. [2]

1963-64: Os primeiros filmes
Exponho este contexto de sua produção artística pois ele ajuda a definir muitas das características que estarão presentes nos trabalhos cinematográficos que empreenderá logo a seguir: a serialidade, o automatismo, a transparência da técnica e os motivos simples, cotidianos, facilmente reconhecíveis pelo público, mas resumidos a uma composição visual achatada e disposta de elementos bastante reduzidos. As imagens de que parte para a pintura deixam, então, de possuir uma existência efêmera para serem perpetuadas, fixadas na reprodução em grande escala, em quadros que devem ser vistos por muito mais tempo. Trata-se de um prolongamento da vida útil destes objetos, que será semelhante ao que ocorre em “Sleep” (320’, 1963) e “Empire” (485’, 1964), dois de seus filmes mais notórios. Sob uma duração extremamente prolongada e despidos de quaisquer elementos acessórios, estes filmes silenciosos fazem pensar em uma tendência a eternização de um momento, de uma imagem, de um rosto, tal como neste momento presente da filmagem e sem a necessidade de qualquer justificativa exterior: apenas imagens. De modo geral, todos estes são filmes ultrapassam de maneira hiperbólica o tempo necessário para compreender o objeto mostrado, explorando um senso de estaticidade que é reforçado pela desaceleração da projeção da película mesma, frequentemente registrada a 24 quadros e projetada a 16 quadros por segundo. [3]
Entre 1963 e 1964, os dois primeiros anos de sua produção cinematográfica, realiza mais de cinquenta filmes, sob as mais diferentes metragens, marcando de maneira expressiva o início desta nova fase de sua obra. Warhol é menos um cineasta interessado pelo aspecto artesanal do trabalho, em procurar o essencial expressivo do filme, e mais um artista que se serve do cinema como uma ferramenta tecnológica, acima de tudo. Alguém que, em sua atividade como pintor, dizia querer se tornar “uma máquina”, pelo automatismo de seu gesto criativo, e que encontra na câmera cinematográfica o modelo ideal deste apagamento de qualquer intencionalidade, apenas reproduzindo os objetos tal como eles são. Em grande medida, talvez aquilo com o que seus filmes mais dialoguem seja com a televisão, aquilo que mais interessava a Warhol, segundo suas entrevistas: a transmissão contínua, sem interrupções, da programação 24h por dia; o anonimato do realizador e das figuras atrás das câmeras; a presença das pessoas na frente delas, desfilando como uma apresentação de curiosidades, agindo de modo inesperado, espontâneo, sem preparação.
Nestes filmes, a forma é simplificada ao extremo, em uma condição de fidelidade absoluta ao objeto, em que não é a câmera que se move ou a montagem que constrói o sentido, mas a figura fotografa quem se destaca. O lado artesanal do trabalho é preterido a favor de uma concepção primária, que recorre aos recursos mais básicos da fotografia cinematográfica, detendo-se somente na ação exterior e evitando a constituição de uma linguagem discursiva. Seus primeiros filmes não possuem nem mesmo créditos ou títulos inscritos ao longo de sua duração, sendo apenas o transcorrer de suas imagens na tela, sem identificações exteriores aos fatos em si que se passam ali. A ação, quando existe, transcorre lentamente, como em “Eat” (45’, 1964), em que um homem come um cogumelo durante quarenta e cinco minutos, ou em que o principal se passa fora de quadro, mostrando-se apenas os seus efeitos, como em “Blowjob” (35’, 1964), em que a sugestão implicada por seu título é um dado fundamental. Mais simplesmente, há filmes em que não há ação humana visível, como em “Empire”, ou em que aquilo que se vê é apenas a passividade de uma figura filmada dormindo, como em “Sleep”.
Neste sentido, a sua noção do plano longo, explorado por Warhol como se tivesse a obrigação de preencher de uma única vez a bobina de filme tal como faria em uma tela com a tinta, não confia em uma qualidade deliberadamente expressiva da câmera, sua movimentação e sua sincronização com os atores, mas em um transcorrer temporal que registra uma ação sob uma passividade inata, uma isenção completa de interferência no que se passa à sua frente. Isto ajuda a entender de que maneira funciona a duração aparentemente excessiva de “Sleep” ou “Empire”, como se a razão para a qual o filme devesse se prolongar o bastante fosse simplesmente dar conta do que seria a experiência de uma noite de sono ou para que pudesse representar a magnitude arquitetônica do Empire State Building.

“Empire”, “Blowjob” e “Eat” são compostos de diferentes rolos de filmes exibidos de maneira sequencial, não exatamente como um único take continuo, mas preservando as pontas veladas e superexpostas da película, de modo a marcar a transição entre as bobinas. Ainda assim, tratam-se essencialmente dos mesmos enquadramentos, sem alterações no posicionamento da câmera, nem do referencial registrado, permanecendo as mesmas distâncias do início ao fim, sem que nada se coloque entre a câmera e seu objeto. “Sleep”, o primeiro destes filmes, se diferencia dos restantes não apenas por possuir diferentes enquadramentos ao longo de sua duração, mas por incorporar também a repetição dos mesmos takes, seja retomando momentos anteriores do filme ou repetindo imediatamente as imagens que acabaram de ser vistas.
“Kiss” (50’, 1963), outro dos filmes do mesmo período, dialoga com todas estas experiências no sentido de expor uma única ação, que extrapolará em grande medida o tempo “normal” de sua execução ou o necessário para a sua recepção. No entanto, diferentemente dos outros casos, ao longo de seus trinta minutos de duração, aqui se sucederão diferentes planos de diferentes casais que se beijam ininterruptamente ao longo de um rolo de filme de três minutos. Podemos pensar de que maneira, desta vez, aquilo que Warhol apreende é uma ação que compreende um elemento dramático, recorrente no cinema narrativo, mas que aqui é disposto sem qualquer tipo de contextualização; vemos pessoas se beijarem e por um período de tempo que qualquer dramaticidade possível no gesto torna-se completamente esvaziada, a ação se torna também um dado mecânico, repetitivo até a exaustão.
A propósito desta destituição dramática, é preciso dizer que Warhol transforma seus screen tests em uma expressão em si, dissociada de qualquer finalidade a posteriori, como seria a prática comum dos estúdios na produção de uma ficção. Estes filmes, intitulados a partir dos nomes das pessoas filmadas e realizados entre 1964 e 1966, podem ser vistos hoje como representativos dos valores mais influentes e particulares de seu cinema, particularmente relacionados à plasticidade da imagem, à atenção à figura humana, à contenção da câmera e ao contraste de luz e sombra. Cada um destes testes é filmado em uma bobina de três minutos de filme e projetado a uma velocidade desacelerada de 16 quadros por segundo, adquirindo uma fluidez onírica, caracterizada também pelo lento surgimento e dissolução da imagem em meio às pontas veladas de filme, como em meio a uma neblina. O “teste” da figura humana frente a câmera é tomado como a matéria mesma do filme, em que o interesse reside no próprio comportamento da pessoa consciente de ser fotografada em primeiro plano, contra um fundo preto ou branco, sem que haja qualquer contexto em que esta imagem é inserida.
Neles identificamos artistas hoje facilmente reconhecíveis (como Bob Dylan, Nico, Lou Reed, Marcel Duchamp, Allen Ginsberg, Salvador Dalí) ou ainda frequentadores regulares da Factory e atores de seus filmes mais conhecidos. O que vemos não é tão simplesmente um retrato de cada um deles, mas um retrato feito sob estas circunstâncias estritas, que não compreende uma visão ideal, nem se dispõe “a favor” da figura retratada. Como nas luzes que se acendem ou apagam nas janelas de “Empire”, testemunhamos aqui os pequenos reflexos provocados pela consciência de estarem sendo filmadas, ocasionando diferentes reações, desde o forte desconforto até a perfomance deliberada para a câmera. Em outro sentido, estes filmes chegam hoje até nós como um documento importante de algumas das figuras de maior destaque no cenário artístico norte-americano na década de 60, cujas feições e comportamento são eternizados sob os mesmos procedimentos formais, tal como um “modelo” de catalogação serial (à maneira das sopas Campbell’s), atestando a centralidade de Andy Warhol neste cenário artístico pelo contexto estrito que reunia estas personagens ao redor de si.

A afirmação histórica de Warhol cineasta
Conforme Warhol adquire maior popularidade nestes anos de ascensão meteórica de sua carreira artística, de ilustrador comercial até tornar-se o principal artista de uma nova vanguarda americana, o seu estúdio “The Factory” também se torna um local de encontro do underground de Nova York, com festas e frequentação dos mais variados grupos. É impossível, então, não pensar que Warhol parece ter aproveitado a oportunidade de ter o seu estúdio aberto para filmar alguns de seus frequentadores regulares, como se as figuras que entrassem no estúdio lhe servissem, também, de material de trabalho, usando o cinema como o meio propício para dar conta do que agora tem diante de si. A partir deste momento, o cinema torna-se a sua atividade principal e a Factory se transforma propriamente em um estúdio cinematográfico, em que, com frequência, cabe a seus “atores” apenas interpretar as suas próprias personalidades. A partir de 1964, o som direto é introduzido no cinema de Warhol e, com isto, toda uma nova ambição estética é desenvolvida, a culminar nos filmes comerciais que produz sob a direção de Paul Morrissey.
Distante da validade estética que hoje é atribuída a sua carreira artística, a recepção crítica inicial dos filmes de Andy Warhol passou por importantes turbulências que podem ser apreendidas pela leitura dos textos a ele dedicados na coluna de Jonas Mekas no jornal The Village Voice, então a figura mais notável da crítica e da organização institucional do cinema experimental americano. Este será convidado em primeiro lugar para uma exibição privada de “Sleep” ainda em 1963 e noticiará em 19 de setembro do mesmo ano a estreia de Andy Warhol no cinema em um artigo elogioso sobre o filme: “Não é preciso uma grande ou complexa obra de arte para ser testemunha de um movimento passional para frente. Andy Warhol, por exemplo, está no processo de fazer o mais longo e simples filme já feito: um filme de oito horas que mostra nada além de um homem dormindo. Mas este filme simples irá mover Andy Warhol – como me moveu, e alguns outros que o viram, parte dele – mais longe do que estávamos antes”. [4]

“Sleep”, entretanto, terá a sua primeira exibição pública somente mais tarde, quando é encarado como um objeto estranho no contexto do cinema experimental, que já vinha se organizando em Nova York desde meados da década anterior. Não apenas pela sua longuíssima duração de seis horas e meia, seu tema incomum ou a fixação de suas imagens, mas por tratar-se de um filme realizado por alguém sem nenhuma experiência cinematográfica anterior, embora notável no campo da pintura. As suspeitas de que este artista reconhecido, vindo de fora, estaria tirando sarro de um círculo que ainda lutava para se consolidar em grande medida também estarão no centro da polêmica causada pelo filme no primeiro momento de sua exibição pública. Será a partir deste contexto que Mekas voltará a comentar o filme em 5 de dezembro do mesmo ano, destacando a repercussão que a exibição pública de “Sleep” e outros de seus primeiros filmes teve na comunidade do cinema experimental: “Coisas estranhas têm acontecido no Film-Makers Showcase. Anti-cineastas estão tomando conta. Os filmes em série de Andy Warhol trouxeram o filme pop à existência. Andy Warhol está realmente fazendo filmes, ou ele está fazendo uma piada conosco? – isto é que o que está na boca do povo.” [5]
Neste sentido, é interessante observar a posição em relação ao cinema quando confrontada a depoimentos de outros cineastas influentes do mesmo período. Warhol trabalha em seu estúdio como em um mundo a parte, sem declarar uma mesma relação passional com filmes que faz, nem uma disposição a falar sobre ou interpretar publicamente seus próprios trabalhos, como é o caso frequente de outros cineastas, conscientes de trabalharem sobre uma linguagem que precisa ser explicada. A erudição matemática de Hollis Frampton ou o transcendentalismo de Stan Brakhage encontram uma oposição fundamental na completa indiferença de Warhol pelos problemas do cinema em si, ao qual recorre pela facilidade de registro, em relação ao trabalho manual da pintura: “basta ligar a câmera”. No entanto, apesar da pretensa “facilidade” de trabalhar com o filme, é importante ressaltar que, assim como na serigrafia, o rigor de uma forma conscientemente simplificada faz com que o trabalho não decaia na mera banalidade ou mesmo no absoluto “automatismo” almejado pelo próprio Warhol. [6]
A “pureza estética” de seu cinema, associada por Mekas à Lumière, será decisiva para que um crítico de uma visão essencialmente romântica possa identificar nestes filmes o sentido de uma revolução nas práticas cinematográficas, apesar da ironia que marca os trabalhos e a figura pública de Warhol. Mekas, sem deixar de lado o artesanato como um preceito fundamental do filme experimental, voltará a defenderá Warhol em uma série de textos e validará seu percurso artístico de maneira definitiva ao premiá-lo, no fim de 1964, com o sexto “Prêmio do Filme Independente”, uma distinção oferecida pela revista Film Culture, editada por Mekas e P. Adams Sitney, pela contribuição oferecida pelos seus filmes “Sleep”, “Haircut”, “Eat”, “Kiss” e “Empire”, todos produzidos entre 1963 e 1964. [7]

Meia década mais tarde, em 1969, P. Adams Sitney, um dos teóricos centrais do processo do cinema experimental, publicará na mesma revista Film Culture o ensaio fundamental “Structural Film”, no qual indica de maneira proeminente a influência destes primeiros filmes de Warhol no desenvolvimento do que, então, denomina como “filme estrutural”, a partir da análise dos trabalhos de Hollis Frampton, Michael Snow e Ernie Gehr, dentre outros cineastas. Embora a obra de Warhol não assuma o protagonismo das análises neste texto, o comentário a seu respeito não apenas sedimentará algumas de suas características principais, mas afirmará a sua consolidação histórica no panorama do cinema experimental americano. Para tanto, Sitney se remete aos filmes comentados anteriormente em meu texto, indicando sutil, mas significativamente, uma mudança que já havia ocorrido no cinema de Warhol ao longo da década, ao comentar que “abandonou a imagem fixa para um tipo de montagem-na-câmera”, estabelecendo o que já em 1969 é uma distância em relação a sua contribuição mais decisiva e os novos rumos que a sua filmografia parece tomar. [8]
A ruptura inicial produzida por Andy Warhol gera uma mudança nos rumos do filme experimental, agindo como precedente a novas expressões que exploram mais deliberadamente a materialidade e a mecanicidade do meio, de contrariamente a subjetividade antes dominante. Não se trata apenas de uma emulação posterior, mas de um desdobramento em experiências distintas, seja pelo filme estrutural ou por cineastas como Philippe Garrel e Stephen Dwoskin, quem talvez explorará mais profundamente as características performáticas do cinema de Warhol, estabelecendo um nexo delicado entre as suas peculiaridades formais e os seus objetos de conteúdo. [9]
No limite, muitas das características desta primeira fase do cinema de Warhol funcionam como dados de provocação, instigando pensamentos a propósito da experiência cinematográfica em si e a relação do espectador com a imagem que é projetada na tela. Torna-se uma atividade difícil e exigente se dispor a observar por seis horas um homem dormir ou por oito horas o acender e apagar das luzes de um prédio. Um reflexo disto é que, assim como Warhol se ausentava da própria filmagem, também o espectador deixava o seu filme em meio a sua projeção. O filme, no entanto, continuaria a passar, como se não existisse para produzir efeitos para um espectador, mas para se dispor a ser visto e continuar existindo independente deste olhar. Como se permanecessem na parede como pinturas que devem ser olhadas com certo intervalo, estes filmes de aparente fixidez induzem a que o espectador saia da sala e volte minutos ou horas depois para ver “o que está acontecendo agora”, sem que a compreensão de um desenvolvimento seja necessária – como é o caso do cinema narrativo comercial, ou mesmo da evolução das formas em um mesmo filme experimental.
Esta independência do filme está de acordo com uma “pureza originária” associada à primeira fase de sua obra, mas a relação estabelecida com Lumière pode encontrar um fundamento ainda mais sólido quando consideramos em ambos os casos a automaticidade do registro e o caráter autoral resumido à sua concepção. No caso dos Lumière, seus filmes eram realizados por operadores contratados e anônimos, que filmavam de maneira transparente cenas tomadas da “vida real” (ainda que, como hoje se sabe, regularmente encenadas e refilmadas) não simplesmente por um ideal estético, mas para que estes filmes demonstrassem os mecanismos da câmera, sua qualidade técnica e fidelidade na produção das imagens, não apenas para comercialização da própria câmera, mas para também produzir “vistas” fiéis e fascinantes – fascinação que em Warhol se manifesta de modo ainda mais particularizado, nas luzes que se acendem nas janelas do Empire State ou nas reações dos rostos “testados”, para além da fascinação com o objeto-filme em si, com as suas peculiaridades e polêmicas. De acordo com isto, mesmo em seus filmes iniciais Warhol frequentemente contratará outras pessoas para fotografarem e dirigirem os filmes em seu lugar, limitando-se a concepção do trabalho ou, em uma fase posterior, apenas assinando a sua produção – assumindo de maneira deliberada o prosseguimento de sua carreira artística como um negócio, tal como os industriais franceses concebiam o cinematógrafo. [10]
No entanto, como levantado a partir dos documentos anteriores, serão mesmo estes primeiros filmes que marcarão de modo mais decisivo a influência e a leitura que hoje fazemos de sua obra cinematográfica, permanecendo o repertório crítico a respeito deles como uma frequente na análise de sua obra. Longe de procurar esgotar a discussão sobre estes filmes, espero que esta apresentação dos filmes e de seu contexto histórico possa ajudar aqueles que se interessam pelo seu cinema e que seja uma porta de entrada para pesquisas maiores. Afinal, se em sua atividade como pintor Andy Warhol foi capaz de, nas palavras de Arthur Danto, provocar uma “descontinuidade na historia da arte ao eliminar da concepção usual artística a maior parte do que todo mundo julgava pertencer à essência dela”, o mesmo acontecerá em sua contribuição ao cinema e em ambas as etapas de sua carreira podemos hoje observar, dentre os seus maiores méritos, a própria desmistificação do próprio trabalho de criação.
Matheus Zenom

NOTAS
[1] Este trabalho, tal como as embalagens de sopa Campbell’s, encontra um precedente importante nas duas esculturas intituladas “Painted Bronze” (1960) de Jasper Johns: em uma delas, duas latas de cerveja Ballantine banhadas em bronze postas lado a lado sobre uma base também de bronze, separadas por uma pequena distancia; na outra, uma lata de café em pó Savarin, que serve de suporte para os pincéis do artista. Em ambas, entretanto, Johns reproduziu os objetos de maneira artesanal, preservando a expressividade da aplicação da tinta no desenho das letras de suas embalagens originais, que mantém como “propaganda” do produto original em seu rótulo bem discernível, como um nexo mais fiel aos seus referentes reais.
[2] A propósito dos readymades, indico aqui o meu texto publicado na sexta edição da Revista Limite. Disponível em: https://limiterevista.com/2022/02/28/os-readymades-de-marcel-duchamp/.
[3] Calac Nogueira, em seu texto sobre “Sleep” publicado na na edição 8-9 da FOCO – Revista de Cinema, atribui como justificativa a esta duração o olhar romântico de Warhol a seu então namorado, John Giorno, que posa para o filme, caracterizando “Sleep” como um “imenso filme de amor obsessivo”. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/jornalwarholcalac.htm.
[4] MEKAS, 2000, p.103.
[5] idem, p.115-116.
[6] Esta comparação pode ser denotada a partir de uma reportagem transmitida no canal televisivo CBS em 1965, em que são entrevistados alguns dos maiores expoentes do cinema underground americano, dentre eles Jonas Mekas, Stan Brakhage, Andy Warhol e sua superstar Edie Sedgwick. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CX2LRvyM0cE.
[7] Parte do texto que acompanha a nota sobre a premiação, publicada em “Film Culture Reader”: “Andy Warhol está levando o cinema de volta às suas origens, aos dias de Lumière, para um rejuvenescimento e uma limpeza. Em seu trabalho, ele abandonou todos os adornos de forma e conteúdo que o cinema juntou ao redor de si até hoje. […] Um novo modo de olhar para as coisas e a tela é dado pela visão pessoal de Andy Warhol; um novo ângulo, um olhar – uma mudança necessária, sem dúvida, pelas mudanças interiores que estão acontecendo com o homem”. A propósito, pode-se ver um filme realizado pelo próprio Jonas Mekas, “Award Presentation to Andy Warhol” (1964), à maneira dos que Warhol realizava então, em que a cerimônia de premiação a ele e alguns de seus atores é realizada na Factory. Disponível em: https://ubu.com/film/warhol_award.html.
[8] Nas palavras de Sitney: “Nós encontramos as fontes das três primeiras características do cinema estrutural [câmera fixa, efeito de flicker e cópia em looping; a quarta seria a retrofotografia da tela] na história imediata do filme de vanguarda. Andy Warhol tornou famoso o enquadramento fixo em seu primeiro filme, ‘Sleep’ (1963), em que meia dúzia de planos são vistos por mais de seis horas. Seus filmes feitos um pouco mais tarde, agarram-se ainda mais ferozmente à única perspectiva inabalável. […] No entanto, Warhol, como um artista pop, está espiritualmente no polo oposto dos estruturalistas. Sua câmera fixa era primeiro um ultrage, depois uma ironia, até que seu conteúdo se tornou muito atraente e ele abandonou a imagem fixa para um tipo de montagem-na-câmera. No trabalho de Ernie Gehr ou Michael Snow, a câmera está fixa em uma contemplação mística de uma porção de espaço. Espiritualmente, a diferença entre estes dois polos não pode ser reconciliada.”
[9] Nos longas de Dwoskin, esta relação parece se dar até mesmo com os filmes posteriores de Warhol, em que o diálogo e a perfomance adquirem uma função primordial. Escrevi a respeito de dois curtas de Stephen Dwoskin também na segunda edição da Revista Limite, dentre os quais “Moment” me parece ser diretamente devedor destes primeiros filmes de Warhol. Disponível em: https://limiterevista.com/2020/12/29/o-cinema-como-fetiche-dois-curtas-de-stephen-dwoskin/.
[10] Relação com Lumière destacada no texto de apresentação do “Sexto Prêmio do Filme Independente” (ver nota 6). Sobre a relação de Warhol e de outros cineastas modernos com Lumière, sugiro a leitura de outro texto de Calac Nogueira, “Warhol, Bressane, Garrel: Materialismo e Presentificação”, também publicado na edição 8-9 da FOCO – Revista de Cinema. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/calacmaterialismo.htm.
BIBLIOGRAFIA
DANTO, Arthur. Warhol. Cosac Naify: São Paulo, 2012.
MEKAS, Jonas. Movie Journal. Columbia University Press: New York, 2016.
SITNEY, P. Adams. “Structural Film” in. “Film Culture Reader” (org. P. Adams Sitney). Cooper Square Press: New York, 2000.
WARHOL, Andy. The Philosophy Of Andy Warhol (From A to B and Back Again). Harvest: San Diego, 1977.