Os filmes de Éric Rohmer são como experimentos científicos: partindo de algumas premissas pré-estabelecidas, hipóteses, o realizador testa possibilidades narrativas em um trabalho de campo que permite e mesmo abraça as contingências do fazer fílmico em seu contato com a realidade, com o mínimo de intervenção aparente possível (ainda que sob todo o controle necessário). A diferença para um experimento científico factual, evidentemente, é que em seus filmes não se busca um resultado objetivo, e sim o registro do próprio experimento.
O que eu chamo aqui de experimento, o próprio Rohmer chama de “máquina eletrônica”: “No que diz respeito aos meus Contos Morais, considero que estão compostos como numa máquina eletrônica. Na suposta ideia de ‘contos morais’, se coloco ‘conto’ de um lado da máquina e a ‘moral’ do outro, se desenvolvo tudo o que é implicado por conto e tudo o que é implicado por moral, a situação já estará praticamente estabelecida, pois não sendo um conto moral um conto de aventuras, será necessariamente uma história a meias-tintas, portanto uma história de amor.” [1]
Se a premissa já está estabelecida em teoria em seus Contos Morais – e o mesmo poderia ser dito das premissas implicadas em suas “Comédias e Provérbios” ou “Contos das Quatro Estações”, ainda que estes sejam filmes mais “soltos”, mais abertos às contingências -, ela se torna realmente interessante quando executada na prática cinematográfica, na verdade do espaço e do tempo: “A verdade que me interessou até aqui é a do espaço e do tempo: a objetividade do espaço e do tempo” [2]. Para Rohmer, o cinema, “menos um fim do que um meio” [3], é uma maneira de organizar narrativamente essa verdade, uma maneira tão esquemática quanto é simples – se seu processo criativo se assemelha ao de uma “máquina eletrônica”, esta seria uma máquina rudimentar, um computador primitivo. Entretanto, seus filmes não sucumbem a essa organização esquemática sobre o qual são elaborados, justamente devido à realidade prosaica que escolhe filmar.
“O Joelho de Claire” (1970), quinto filme da série de contos morais, é um exemplo emblemático desse equilíbrio entre teoria e prática que irá permear todos os filmes do realizador. Como em toda a sua filmografia, os conflitos do filme são estabelecidos pelos personagens através de diálogos que irão constituir a maior parte de sua duração. Pois não apenas as narrativas de Rohmer operam como experimentos científicos, mas seus personagens estão sempre a testar suas próprias teorias; o que é filmado é o embate interno (na sobreposição de voice-overs) e/ou externo entre essas teorias (no diálogo, propriamente). Este debate nunca será internalizado na forma fílmica: ele é sempre exposto pelos personagens, sua tensão será sempre abstrata, sua presença sempre invisível, tornada presente apenas pela fala.
Para Rohmer, afinal, é sempre “mais interessante suscitar o invisível a partir do visível do que intentar inutilmente visualizar o invisível” [4], e será assim que, curiosamente, seus filmes condicionados pela verdade do espaço e do tempo serão conduzidos por elementos invisíveis. No caso de “O Joelho de Claire”, o protagonista, Jérôme, um diplomata, será conduzido, como o próprio coloca, por “um desejo real e, no entanto, indefinido, mais forte por ser indefinido. Um desejo puro. Um desejo de nada.” [5]. Um desejo invisível, que encontra sua manifestação visível, seu ponto focal, ao se concentrar na forma física, mundana, do joelho de Claire: de acordo com Jérôme, o “imã de seu desejo”, por ser o ponto mais vulnerável da jovem.

Este desejo só se manifesta a partir da metade do filme, quando Claire entra em cena, e estabelece-se, então, como ponto focal não apenas para o personagem como para a narrativa que passa a conduzir; antes, havia uma espécie de ensaio para esse desejo, nos experimentos induzidos por uma romancista amiga de Jérôme, Aurora, que incita-lhe a ter um caso com outra jovem, Laura, meia-irmã de Claire. Se na primeira metade do filme, assim, o personagem tem total controle (ou ao menos afirma ter, mas a brincadeira com essa ambiguidade já está presente) sobre seus flertes “inocentes” com Laura, esse controle será abalado – ainda que aparentemente nunca perdido – com Claire e seu desejo vazio. É curioso, aqui, que há uma espécie de inversão de Rohmer em relação a seu filme anterior, “A Colecionadora” (1967), no qual o protagonista já começa buscando um vazio, “praticando o nada”, como o próprio coloca, e é interrompido pela entrada da jovem Haydée.
Nos filmes de Rohmer, e especialmente no caso dos Contos Morais, será justamente o encontro entre as convicções e ilusões dos personagens com a realidade concreta que estará em jogo: “Minhas personagens não são seres puramente estéticos. Possuem uma realidade moral que me interessa tanto quanto a realidade física.” [6]. Em “O Joelho de Claire”, a personagem da romancista, Aurora, opera como fomentadora e mesmo arquiteta dessas ilusões – um tipo de personagem frequente também nos outros filmes, como a etnógrafa em Conto de Verão ou a jovem em Conto de Primavera que tenta impulsionar um romance entre seu pai e sua amiga. Há uma cena em que Aurora e Jêrome observam um mural com uma ilustração de Dom Quixote que há na casa do diplomata: Dom Quixote tem seus olhos vendados enquanto os homens em volta fomentam suas ilusões com apetrechos improvisados. Como no mural, O Joelho de Claire não apenas mostra um homem iludido ou suas ilusões, mas revela a construção de suas ilusões, organiza e performa sua própria ficção.

A história do filme, afinal, já estava prevista na narrativa semelhante que Aurora estava escrevendo e conta para Jérôme, sobre um diplomata que observa meninas jogarem tênis até que uma bola cai perto dele, que a esconde e joga em outro gramado. A atitude antes aparentemente “inocente” de observá-las, torna-se maliciosa quando ele de fato interfere no decorrer das ações. Após acariciar o joelho de Claire, Jérôme também acredita (ou finge acreditar) que seu pequeno ato malicioso foi uma boa ação – uma escolha diplomática? – pois o faz após revelar à jovem que seu namorado havia lhe traído: o gesto poderia ser mascarado, por isso, ao menos para Claire, como puro consolo. Jérôme afirma acreditar que, com sua revelação, livrou Claire de um mal relacionamento. Não bastasse a contradição interna do personagem, que evidentemente não revelou a traição à Claire com o mero intuito de abrir-lhe os olhos, no plano final do filme vemos a menina reencontrando o namorado, no que parece ser uma reconciliação. A aparente boa ação de Jérôme, assim, independente de suas intenções, foi inútil. Como na maioria dos filmes de Rohmer, não há consequência no final, nada muda; não há uma “moral da história”, mas um conflito entre morais, um tensionamento de crenças.
Num sentido semelhante ao dessa tensão entre as ilusões dos personagens e a realidade concreta operam as fotografias observadas no filme, seja a fotografia da noiva do protagonista observada tanto por Laura quanto por Aurora, ou a fotografia de Claire, que Aurora mostra para Jérôme antes da jovem chegar na casa. Se por um lado suscitam certas expectativas – no caso da noiva, de uma promessa que impõe certos limites a esse personagem, no caso de Claire, como prenúncio do que está por vir no filme – por outro lado enfatizam a ausência de ambas as personagens nos dados momentos. Ao mesmo tempo que estabelecem a presença ativa de um mundo exterior a esta narrativa, sublinham essa exterioridade; o que importa é apenas, efetivamente, o que está presente naquele tempo e espaço.

O filme se utiliza, assim, tanto do visível (a verdade do espaço e do tempo) quanto do invisível (tudo aquilo que é suscitado), oscilando entre momentos de diálogo em que os personagens expõem suas teorias ou, no caso de Aurora, incita suas cobaias a agirem, e brevíssimos momentos de ação, de teoria posta em prática, demarcados como pequenos blocos narrativos por cartelas que indicam os dias se passando. Cartelas do mesmo tipo estão presentes na maioria dos filmes de Rohmer, e enfatizam a condição contingente de todas suas histórias; não existem títulos ou comentários em nenhuma delas, simplesmente as datas, os dias passando, nenhuma ideia é imposta à imagem à priori. Em “O Joelho de Claire”, mais do que demarcações temporais, as cartelas funcionam como interrupções lúdicas das cenas, como se participassem do jogo de sedução praticado pelos personagens. Há um momento, por exemplo, em que Jérôme se deixa cair e apoiar a mão no joelho de Claire e no meio do gesto corta-se para outra cartela, o que ao mesmo tempo omite a continuidade da cena e enfatiza o aspecto dramático deste gesto.

Este breve instante flertoso torna-se ainda mais interessante quando consideramos o outro momento em que Jérôme toca o joelho de Claire, cena mais emblemática do filme, quando, numa pequena cabana protegida pela chuva, enquanto a jovem chora, Jérôme acaricia seu joelho por alguns longos segundos. Ainda que previamente discutido entre os personagens e completamente orquestrado pela produção do filme, esta cena, seja pela combinação de chuva e choro, seja pela duração ininterrupta e mesmo desconfortável do gesto, parece exalar uma vitalidade que escapa a qualquer controle, algo próximo, talvez, àquilo que Georges Méliès quis dizer quando comentou que nos filmes dos irmãos Lumière “as folhas se mexem” [7] [8]. Após os diferentes falatórios dos personagens, sempre tentando exprimir sentimentos imprecisos, suscitar algo invisível, definir o indefinível, temos um momento em que tudo não apenas se faz presente, mas exala sua presença na contingência do momento. Evidentemente, logo após esse momento, voltaremos ao falatório entre Jérôme e Aurora, no qual o diplomata narra o ocorrido: a ambiguidade, a atmosfera e a imprecisão do momento são reformuladas oralmente, em um relato sob sua percepção subjetiva da cena. Em um experimento científico, esse relato seria o resultado apresentado: no filme de Rohmer temos o fato e sua interpretação, a prática e a teoria, a realidade e a ficção.

Paula Mermelstein
NOTAS
[1] Entrevista com Rohmer, “O Antigo e o Novo”. Cahiers du Cinéma nº 172, novembro 1965. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO3/rohmer.htm.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Jean-Claude Brialy em diálogo de “O Joelho de Claire”.
[6] “O Antigo e o Novo”.
[7] Sobre esse “efeito de realidade” dos filmes dos Lumière, Jacques Aumont, em seu texto “Lumière, o último pintor impressionista”, salienta três aspectos: o impalpável, o irrepresentável e o fugidio.
[8] Momentos como esse, nos quais a maior ação é aquela do silêncio, em evidente contraste com os falatórios, que transbordam tudo aquilo antes contido, antes apenas evocado, antes invisível, ainda que sejam momentos totalmente prosaicos, desprovidos de qualquer espetacularização, estão presentes em quase todos os filmes de Rohmer, seja a rápida investida rejeitada de Maude em Minha Noite com Ela (1969), o encontro entre marido e mulher à tarde em Amor à Tarde (1972), o momento em que Délphine vê o Raio Verde em Raio Verde (1986), ou primeiro instante do dia observado por Reinette e Mirabelle em Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle (1987).
30/03/21
Uma consideração sobre “O visível e o invisível em “O Joelho de Claire” (1970)”
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