“EO” (2022) ou Burros sonham com burros elétricos?

Crítica escrita na ocasião do Festival do Rio 2022

Em “EO” (2022), longa mais recente de Jerzy Skolimowski, acompanhamos a trajetória de um burro assim chamado, em suas passagens por inusitadas situações pela Polônia e arredores. O filme é, em muitos sentidos, experimental, onde cada situação episódica em que o burro se encontra é uma experiência estética e sensorial nova e intensa. O mundo percorrido pelo protagonista é volátil, tangível, violento, cômico e absurdo.

O burro, enquanto este animal que passa tão facilmente de mão em mão, é sobretudo um dispositivo estrutural para a narrativa do filme, um condutor que lhe permite transitar quase aleatoriamente entre as mais diversas situações na Europa atual. Ele está sempre ali, próximo, mas nem sempre diretamente envolvido nas cenas pitorescas que presenciamos. No começo do filme, todos os animais do circo onde trabalha, ele incluso, são confiscados por uma organização de proteção de animais, evento que implica diretamente em seu destino tortuoso a seguir – e que parece indicar, logo de cara, que não há uma solução previsível e institucional para salvá-lo deste destino. Em dado momento, é a sua chegada e o som que produz ao redor de um jogo de futebol amador que irá afetar o resultado final da partida, e o burro será levado enquanto mascote do time ganhador enquanto seus torcedores primeiro comemoram e depois apanham do time rival. Em outras situações, no entanto, o protagonista parece apenas acompanhar as ações humanas ao seu redor, como quando está na caçamba de um caminhão enquanto o caminhoneiro tenta atrair uma mulher faminta para o interior do veículo e é depois assassinado – essa cena, aliás, atesta a estranha atmosfera de Eo, algo entre o cômico e o grotesco, uma vez que supomos que algo de ruim acontecerá à mulher vulnerável apenas para ver seu “predador” ser morto. Em um dos últimos episódios acompanhados pelo burro, ele está do lado de fora da casa enquanto um padre parece iniciar uma relação amorosa incestuosa com uma figura materna (Isabelle Huppert) – momento que talvez melhor expresse o teor absurdo, e até mesmo bestial, deste mundo retratado.

Como em “Au Hasard Balthazar” (1966), filme de Robert Bresson no qual se inspira, o burro é uma espécie de veículo para a observação das relações humanas, mas não há, aqui, o peso moral e trágico que a produção francesa carrega. Pois se no filme de 1966 o animal assume uma condição de metáfora, onde seu papel parece ser principalmente aquele de evidenciar a brutalidade das relações humanas que o cercam, em “EO” ele é uma criatura independente, com seus próprios sonhos e desejos. Com isso, ele funciona não apenas como dispositivo estrutural ou objeto de nossa empatia, mas de fato como um protagonista. Não se trata apenas de uma criatura vulnerável a tudo e todos, mas de um ser sensível, cuja sensibilidade é por nós compartilhada. Pois assim como o comportamento dos seres humanos em “EO” é por vezes animalesco, o burro sente e sonha como os humanos, imagens que vemos por uma câmera subjetiva. Talvez o momento mais emblemático do filme, que resume seu caráter experimental, sua estética peculiar, seja quando vemos um aparente sonho do animal após este haver apanhado: sob a característica luz vermelha que permeia tantas cenas do filme, um quadrúpede robótico anda pelo mato à noite com suas pernas metálicas, cena que remete à literatura kafkiana.

Esta sensibilidade parece extrapolar a visão subjetiva do burro e permear o filme como um todo. É difícil estipular nesse vai e volta entre burro e seres humanos, nesta câmera que transita entre planos de drone que cobrem florestas inteiras e primeiros planos ou planos subjetivos do animal, o que está permeado por seu ponto de vista, quem de fato conta esta história. O burro, a quem o filme não é tão apegado quanto imaginaríamos, com frequência se afastando um pouco dele rumo ao “mundo dos homens”, talvez apenas nos forneça perspectiva; ou melhor, uma falta de perspectiva, uma incompreensão geral dos motivos por trás das ações frequentemente grotescas e arbitrárias dos homens. Ou talvez nos forneça uma porta de entrada para uma experiência mais sensória e cômica do que lógica, mais ocupada em estimular e confundir os nossos sentidos e expectativas do que em narrar uma trajetória linear e coerente. Em sua estrutura episódica, “EO” constitui-se em um acúmulo não simplesmente de experiências vividas pela personagem, mas de experimentações visuais e sonoras perpetuadas por Skolimowski.

Paula Mermelstein

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