Odorico Paraguaçu

Se é melhor ser amado que temido, ou antes temido que amado

Quando morreu na França em 1715, Luís XIV encerrou o mais longevo reinado de que se tem registro na história humana. Passou 72 anos sobre o trono, apesar de, por mais de uma década desse tempo, não ter governado de fato os franceses, em virtude de ter sido coroado com apenas 4 anos de idade. Independentemente disto, mesmo quando criança os seus súditos o tinham como monarca e conviviam diariamente com o retrato de sua realeza: logo após ser coroado, mandaram cunhar sua figura infantil em moedas de todo o reino, cuja efígie, com o tempo, foi modulada de acordo com o envelhecimento do rei. Por isso, alguns historiadores levantam uma questão curiosa sobre a ocasião de sua morte: depois de um reinado tão longo, a ausência de Luís XIV na vida dos franceses era praticamente impensável. Acresce a isto o fato de que, numa época em que a expectativa de vida na Europa era bastante baixa, quase todos os seus súditos, em 1715, não teriam sequer lembrança do governante anterior, Luís XIII. Ao contrário, o reinado do Rei Sol, como era chamado, passou incólume pela morte de gerações inteiras: pais, filhos e netos nasceram e morreram sob a sua sombra.

A longevidade bendita foi, para sua dinastia, também uma maldição: todos os seus filhos morreram antes dele. Sem sucessão mais direta, esperava que o filho mais velho de seu primogênito, o Duque da Borgonha, assumisse seu trono, por causa da morte do pai em 1711. No entanto, mais uma tragédia se sucedeu: em fevereiro de 1712, a mulher do Duque foi acometida de sarampo. Indiferente aos perigos da doença, o herdeiro do trono preferiu ficar ao lado da esposa até a morte, que não tardou em chegar: ela morreu em 12 de fevereiro; ele, seis dias depois, aos 29 anos de idade.  Seus dois filhos, um de cinco e outro de dois anos, também contraíram a doença. O mais velho, Duque de Bretanha, a quem caberia agora a sucessão do bisavô, morreu em 8 de março.

Por milagre, no entanto, sobreviveu seu irmão, o pequenino Duque de Anjou. Três anos mais tarde, na sua sagração sob o nome de Luís XV, todos celebraram a vitória daquela criança sobre a série de infortúnios que acometeram sua família. Ele cresceu com uma vida turbulenta, exercendo um reinado imerso em crises, mas sempre como um homem desejado: pelo povo, na sobrevivência improvável da infância; pelas mulheres, na infinidade de romances que teve na corte francesa. Em 1744, mais uma doença lhe coloca à beira da morte e, outra vez, sobrevive. A essa altura, mesmo com as contradições evidentes de seu governo, os franceses não cessavam em celebrar a sua vida. Por essa inexplicável atração que exercia sobre todos e pela nova vitória que obtivera sobre a morte, lhe puseram a alcunha de “O Bem-Amado”.

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Todos nós sabemos, desde o colégio, que a política é a ciência do bem comum. Uma área de estudos e de práticas que tem como ideal a conservação de alguns bens primordiais para a subsistência de todos, o que, numa linguagem mais jurídica, alguns chamariam de direitos fundamentais. É também ponto pacífico, para quase qualquer um e em quase qualquer lugar, que, desses direitos, o mais fundamental é o direito à vida.

Digo “para quase qualquer um”, menos para Odorico Paraguaçu; em “quase qualquer lugar”, menos em Sucupira.

Vocês irão me entender: um dos planos iniciais da telenovela O Bem-Amado (1973) mostra um corpo morto sendo transportado por dois homens ao longo de uma praia. Por uma curta conversa sabemos que se tratava de um pescador centenário que morrera há pouco e que precisava ser levado para outra cidade, a fim de ser enterrado. É dia de campanha eleitoral e Odorico Paraguaçu, candidato a prefeito de Sucupira, se prepara para fazer um discurso inflamado no coreto da cidade. O sacristão da igreja local o interrompe antes de começar, com um aviso ao pé do ouvido, de que o corpo do defunto Mestre Leonel tinha sido levado à paróquia, para tomar uma bênção antes de viajar. Surpreendido com a morte, Odorico vai à igreja tirar satisfações:

“Odorico: – Onde é que está o falecido?

 Padre: – Que falecido?

Odorico: – O defunto, Mestre Leonel.

Padre: – Está a caminho do cemitério.

Odorico – Mas que cemitério?

Padre – O de Jaguatirica, oxente! Aqui não tem!”

No momento em que o diálogo termina, reparamos que Odorico teve um insight que, como iremos ver, será o motivo central da narrativa da novela. Ele persegue a trilha do morto, até encontrá-lo num bar, onde os dois pescadores que ajudavam a carregá-lo pararam para tomar “uma branquinha pela alma do companheiro”. Olhando o corpo, ele diz que é uma vergonha para todos da cidade ali nascerem e não poderem ser ali enterrados. Volta, então, para o coreto e proclama um discurso improvisado, com sua brilhante, recente e única proposta de campanha: a construção do cemitério municipal, para dar ao povo sucupirano “o direito de morrer”.

A turba se encanta com a ideia. Chegam as eleições e, na apuração, apesar da massiva votação de protesto sufragando, como prefeito, Rodrigues, o jegue de estimação do bêbado Nezinho, Odorico vence nos votos válidos e é nomeado prefeito da cidade. 

No início, não há muitos problemas: o político recém-empossado cumpre o que prometeu e constrói o cemitério de Sucupira com todo o esmero. Mas, daí, surge um problema: naquela cidade, quase ninguém morre. Mestre Leonel morrera com mais de 100 anos e pela previsão, segundo o histórico local, seriam necessários vários meses à espera de mais uma morte. A grande realização do prefeito, sem serventia, poderia botar às claras que o seu governo não tinha nenhuma outra carta na manga, nenhum propósito além do campo-santo. E essa angústia atormenta Odorico o tempo inteiro.

Daí, surge o motor central da narrativa, a ideia tragicômica do governante: arranjar um jeito de “facilitar” a morte de algum sucupirano. Odorico irá passar a novela inteira traçando planos escabrosos e hilários de como conseguir gerar uma morte na cidade sem que ele seja diretamente envolvido. O prefeito conta com a ajuda de seu principal assessor, o inocente Dirceu, caçador de borboletas e seu fã número um, que sempre acaba ajudando o chefe sem perceber suas más intenções. Em sua base aliada também estão as três Irmãs Cajazeiras, mulheres de reputação idônea na cidade, mas que mantêm, em segredo, cada uma um caso de amor com Paraguaçu. Já em sua lista de desafetos, três são os nomes principais: o Dr. Juarez Leão, médico da cidade, que faz Odorico enlouquecer ao curar todos os potenciais defuntos locais; a família Medrado, que controla a oposição política na Câmara dos Vereadores e administra a delegacia da cidade; e Dr. Lulu Gouveia, dentista da região derrotado por Odorico nas urnas.

Inicialmente, Paraguaçu investe em hipóteses mais usuais: negocia a vinda de um moribundo incurável de outro município, para que “venha se tratar nos bons ares de Sucupira”. Para seu desgosto, o homem se revigora miraculosamente. Outros alvos são dois potenciais suicidas da cidade: Seu Libório, dono de farmácia que sempre tenta se matar por causa da mulher, que vez por outra o abandona, sempre voltando arrependida quando sente falta do conforto do lar; e Zelão das Asas, pescador cheio de fé que, querendo pagar uma promessa a Bom Jesus dos Navegantes, inventou que precisa se jogar do alto da igreja matriz de Sucupira, somente munido de asas cuja engenharia lhe foi ditada em sonho pelo próprio Bom Jesus. Paraguaçu tenta impedir o socorro a essas duas figuras, mas elas sempre escapam da morte.

O prefeito tem, então, a ideia que parece infalível: se lembra de um velho matador que ali vivera, Zeca Diabo, homem de tiro certeiro com dezenas de cadáveres nas costas e que estava exilado de Sucupira, fugido das autoridades. Se conseguisse trazer o facínora de volta, quem sabe ele não acabava matando alguém?

Odorico vai até a casa da família do homem e tenta negociar sua anistia, garantindo que Zeca não seria preso ao voltar. Ao contrário: que seria bem tratado, protegido pelo prefeito e que teria a oportunidade de ver seus familiares novamente. O irmão de Zeca concorda em intermediar a vinda do bandido para Sucupira, o que acontece depois de algum tempo de conversas por carta entre o prefeito e o fugitivo.

Ao chegar na terra natal e ser sondado pelo governante, Zeca Diabo se mostra muito diferente do esperado: figura frágil, de voz aguda, carrega muitos dos estereótipos do matuto de bom coração. Para terror de Odorico, o matador, extremamente católico, prometera a Padre Cícero que ia se regenerar. Agora, só queria pagar suas penitências, não matar mais ninguém e tentar se dedicar ao seu sonho: aprender a ler e escrever, para se tornar dentista protético! Com mais alguma atenção, porém, era possível ver que o seu temperamento continuava esquentado: agora, quando se irritava e queria matar alguém, contava até dez e pedia para Padre Cícero segurar seu dedo no gatilho. Em geral, a tática dava certo e o pecador escapava da tentação.

A partir daí, as principais tentativas de Paraguaçu estarão centradas em fazer com que Zeca perca a cabeça de vez e volte ao seu antigo mau gênio. Investe também em outras áreas e até chega a obter defuntos, mas daí decorrem coincidências hilárias: uma moradora da cidade é morta, mas a lei determina que, por desejo da família, seja enterrada em outra cidade; o corpo de um policial morto em combate é exigido pelo Governo de Salvador, sendo levado à força da terra sucupirana. 

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Este pequeno resumo das desventuras de Odorico Paraguaçu dá conta de introduzir alguns dos problemas formais mais importantes da telenovela: como qualquer um pode perceber por essas poucas linhas, O Bem-Amado é uma narrativa estranhamente monotemática. Por mais que haja tramas paralelas, não há outra coisa a ser tratada naquela história que não seja a busca incessante pela inauguração do cemitério.

Isto se deve, em certa medida, às opções que Dias Gomes toma no processo de adaptação de sua peça homônima para as telas televisivas. Ele já havia, a essa altura, adaptado seu Pagador de Promessas exitosamente no cinema. Também adaptaria no futuro O Berço do Herói no maior êxito de audiência da TV brasileira, Roque Santeiro (1985/86). Nessas duas ocasiões, porém, recorreu a medidas mais usuais para facilitar a inserção dos artifícios teatrais em outros formatos artísticos: na novela dos anos 80, é nítido que Gomes tenha inserido diversas tramas e personagens paralelos ao enredo da peça original para conseguir dar corpo a 9 meses e mais de 200 capítulos de história.

Em O Bem-Amado, há, ao contrário, uma opção radical por tentar o impossível: fazer uma adaptação fidelíssima à obra teatral, mesmo com a consciência de estar elaborando uma novela cujo tempo de exibição (sem contar o intervalo diário de cada capítulo) seria cerca de 90 vezes o de uma peça de teatro.

É um exercício de dilatação da narrativa que, neste caso, se vale de alguns elementos tímidos da peça, mas cruciais para a adaptação fiel: a obra teatral também se transcorre no período de vários meses e, para isso, produz algumas elipses, entre um ato e outro, dando a entender que mesmo passado muito tempo, as tentativas de Odorico continuavam sem sucesso. A peça, portanto, é também o relato da sucessão de erros do protagonista, mas omite os detalhes de suas realizações, se valendo da surpresa cômica do espectador, em cada abertura de ato, ao perceber que o prefeito continuava persistente no seu plano fúnebre.

Na novela, portanto, o que Dias Gomes fez foi dar corpo visível ao que, nas elipses da peça, poderia ser só mera cogitação do espectador. Nesse sentido, os papeis usuais de adaptação e de obra adaptada se invertem: o teatral parece muito mais um resumo, a simplificação do televisivo, que é o verdadeiro transbordamento das loucuras do personagem principal. Portanto, ao invés de inserir pessoas e histórias novas naquele enredo original, como em Roque Santeiro, Gomes preferiu lançar mão de narrar pouco a pouco pequenas peripécias de Odorico. E isso permitiu que a novela fosse fidelíssima ao original não só pela proximidade dos enredos, mas porque a sua dramaturgia aposta todas as fichas num artifício marcadamente teatral: a força solitária do ator e da sua atuação, seu virtuosismo em encarnar um personagem cuja presença é, sozinha, capaz de sustentar uma obra de arte.

É por isso que O Bem-Amado, além de monotemática, é uma novela monocrática: ela se sustenta, em tudo, nas decisões de um único homem.

Essas decisões são, nas relações internas da ficção, entre um personagem e outro, os mandos e desmandos de Odorico, que parece controlar a todos como bom e velho coronel de cidade pequena, não só pela autoridade, mas também pela simpatia. É bem-vindo na casa de quase qualquer cidadão (e, até por isso, parece estar em todas as cenas da novela). É também provedor das benesses mais urgentes do povo: resolve tudo e tudo determina.

Na relação do personagem com o espectador, porém, sua ditadura é outra. A decisão não é mais política, mas é a atuação (o imperativo do ator). Essa é a aposta ainda mais arriscada de Dias Gomes. Porque sustentar a atenção de sua plateia em Odorico por 60 minutos, num palco, é certamente um desafio muito menor do que cativar seus espectadores por 8 meses de capítulos, 90 horas de exibição, ainda mais levando em consideração um enredo tão exíguo e absurdo. É claro que muitos dirão que o sucesso dessa empreitada se deve ao virtuose, Paulo Gracindo, e é inegável que sua contribuição seja indispensável. O reconhecimento do seu brilhantismo neste papel deve ser uma unanimidade da crítica, mas, sem dúvida, é “a criatura” de Gracindo que brilha, o seu Odorico pessoal que, no fundo, é o Odorico oficial, o que ficou para a história. Portanto, a novela continua sendo o império do seu personagem.

E daí surge uma questão estranha que, por fim, é aquela da qual esse texto deseja tratar. Que o prefeito de Sucupira mande em seus conterrâneos, vá lá, isso é natural. Mas o que faria com que ele mandasse em nós? O que permite que ele nos faça sentar em frente ao televisor para assistir aos 178 capítulos das suas artimanhas? Nós não precisamos obedecê-lo e, ao contrário, podemos eliminá-lo com um simples clique do controle da TV. Se não é por subordinação a sua autoridade, se não é por obrigação, só pode ser por uma curiosa forma de amor.

Odorico nos cativa, primeiro, pela sua comicidade, que é daquele humor negro inocente de algumas comédias que envolvem o tema do assassinato. Algo entre a candura dos personagens de Capra em Arsenic and Old Lace (1944) e o caráter amistoso das disputas “venenosas” entre Michel Simon e Germaine Reuver em La Poison (1951), de Sacha Guitry.

Além disso, ele é um daqueles típicos personagens do universo de Dias Gomes que têm sempre uma particularidade engraçada, uma marca, um cacoete. O mais memorável, no seu caso, são os discursos, com um palavreado que tenta ser culto, mas esbarra na invenção de palavras, principalmente numas misturas de substantivos e advérbios que só ele sabia fazer: para se referir ao futuro, dizia que ia falar do “prafrentemente”; para o passado, dizia “pratrasmente”. Essa sua invencionice morfológica e gramatical é um dos principais motivos da expectativa que temos quando Odorico entra em cena. No fundo, o público sempre aguarda as surpresas que virão do texto que Dias Gomes prepara e Paulo Gracindo executa.

Esses e outros artifícios fazem com que, pouco a pouco, convivendo tão intensamente com aquela persona exótica, desejemos ver suas estripulias cada vez mais. Embarcamos na sua lógica invertida, em que o grande patrimônio de um povo é o lugar onde morrer e até lamentamos um pouco a dificuldade do prefeito em arranjar os defuntos.

Mas a empatia com Odorico não existe durante todo o enredo. Por algum tempo, próximo do final da trama, ela é suspensa: vemos que o tirano está passando dos limites e que começa a ser mais injusto do que nós, da plateia, permitimos. Ele começa a ser impiedoso até mesmo com seus aliados e a usar seus amigos mais inocentes. Já não se torna tão fácil rir de todas as suas maldades: elas estão ficando sérias demais.

Um de seus artifícios é aproveitar-se de um assassinato provocado por Dirceu Borboleta, causado indiretamente por sua culpa. Também engana, num caso menos grave, a Zeca Diabo, denunciando seu paradeiro à polícia e se passando por herói local ao tentar prender o fugitivo, tudo para que, no embate entre o bandido e os policiais, surgisse um morto em potencial.

É nessa altura que Dias Gomes resolve dar corpo a uma virada narrativa que aparece em outras de suas obras: em Roque Santeiro, o enredo se tensiona em torno da descoberta de que o santo venerado por toda uma cidade pequena é na verdade um ladrão mulherengo; no fim de O Bem-Amado há a ameaça de desmascararem o homem mais admirado pelos eleitores de Sucupira. E é daí que o autor constrói a regeneração de seus falsos mitos: assim como todos sabem que a cidade de Asa Branca deseja continuar rezando por Roque, todos nós sabemos que precisamos amar Odorico.

O próprio personagem se dá conta de sua situação: seu amigo Dirceu deixa a inocência e começa a perceber a maldade do patrão. Entra em surtos porque não pode acreditar naquilo. Comporta-se como um filho que descobre o pai como assassino cruel. Então Odorico, sozinho e temendo a rejeição de todos, ensaia sua redenção. Quer simular um atentado à Prefeitura, ser até mesmo baleado para cair de novo, como vítima, nos braços do povo. Para isso, entra em contato com Zeca Diabo, que já estava desconfiado de que o prefeito era o autor da denúncia que quase conseguira mantê-lo na prisão.

E daí discorre o último capítulo da trama: Odorico prepara seu cenário, espalhando os móveis de seu gabinete pelo chão para simular uma ocorrência violenta. Tem hora marcada com Zeca Diabo para levar os tiros, já combinados em lugares estratégicos para só feri-lo levemente. Zeca está pronto para ir ao seu encontro, mas o destino lhe põe algo no caminho: levam a ele o jornal onde o prefeito dizia, orgulhoso, ter coordenado a ação para prendê-lo. Zeca, que ao longo da novela aprendera a ler pelo menos um pouco, olha aquelas letras emboloradas e não tem certeza do que vê. Leva ao jornalista da cidade, que lhe dá segurança de que havia sido enganado pelo prefeito.

O matador é, assim, além de Dirceu, a única pessoa que se dá conta de que Odorico é um cafajeste. Dessa vez, nós já pressentimos, não há Padre Cícero que lhe segure: ele chega na prefeitura e lá está o político, que já começa a ensiná-lo cada passo que deveria dar para forjar o crime. O pistoleiro está furioso e avisa para o prefeito que não estava ali para encenação. Tudo seria real e restavam a Odorico poucos minutos de vida. Ele reluta em acreditar, mas percebe que não tem escapatória. Zeca Diabo ainda pede que ele se defenda, mas Odorico nem sabe atirar direito. Acaba alvejado de modo fatal. Antes de morrer, é acudido por Dona Gisa, uma mulher jovem que lhe despertara desejo ao longo de toda a história e que agora lhe serve para uma truncada cena de amor, digna de finais de faroeste. Ele ainda ensaia mais uma mentira, dizendo que tinha sido vítima de uma conspiração internacional para tomar as terras de Sucupira (“trama internacional, materiais atômicos”, ele diz). E se despede “adverbialmente”, com sua última piada: “Dona Gisa… Eu acho que estou chegando nos finalmentes”.  

Neste ponto, o público, chocado com o seu fim trágico, percebe a peça que o destino pregou no personagem. Ele tinha sido, de fato, plenamente regenerado, porque o povo agora o amaria mais que tudo e porque, enfim, sua promessa estava cumprida: com toda pompa seria inaugurado o cemitério municipal. As cenas que se seguem à morte do mandatário são justamente esse conjunto de cortejos em sua honra. Planos longos do funeral, marcha fúnebre de Chopin, tudo conforme o prefeito havia ensaiado em vida. Para discursar em seu enterro, está Lulu Gouveia, seu arqui-inimigo, que agora é obrigado a dizer: “Adeus, Odorico, o grande, o pacificador, o desbravador, o honesto, o bravo, o leal, o magnífico… ” A cena é cortada antes que tantos epítetos venham a cansar o espectador. O falecido já não era só objeto do amor de todos, mas digno dos mais belos adjetivos que se pudesse imaginar. Seu assassino foge da cidade, porque também ele foi fadado pela tragédia a ser um mito regenerado: o bandido bondoso e ignorante, quando finalmente consegue ler e ver a verdade sobre as pessoas, volta a matar e, consequentemente, a fugir.

A história de Odorico é uma narrativa fantástica sobre o poder e sobre como sua personalidade é capaz de fascinar multidões dentro e fora das telas. Para que ela se completasse, foi preciso que o próprio personagem não percebesse a grande lição por trás de todos aqueles fatos: enquanto sua obsessão narcisista era a de provar, para si e para os outros, que conseguia inaugurar sua obra inútil, não percebia que a única coisa que o sustentava no poder não era sua autoridade ou suas realizações, mas seu carisma. E é aí que Dias Gomes, como no estranho caso de Luís XV e da Dinastia de Bourbon, contradiz a velha máxima de Maquiavel: não é preferível ser temido que amado, mas é sendo amado que se pode fazer do povo o seu amigo mais leal, mesmo quando se tem um caráter duvidoso. Odorico, querendo manter sua série de empreitadas em busca de um defunto novo, quase destruiu este seu maior trunfo, mas o destino lhe foi benéfico. Sua morte era a única solução para coroar devidamente seu conturbado governo, provando, enfim que, pelo menos nos limites fictícios da cidade de Sucupira e nas telas de TV dos lares brasileiros, somente a ele poderiam chamar “O Bem-Amado”.

Yuri Ramos