“The Straight Story” (1999)

Sobre o filme de David Lynch de 1999

“The Straight Story” é um caso único na filmografia de David Lynch. Com roteiro de Mary Sweeney e John Roach, é o único de seus longas-metragens que, para além de reproduzir uma história real, se atém estritamente a uma premissa realista, levando-a ao cabo da sentimentalidade implicada na trajetória de sua personagem principal.

A princípio, acompanhamos os movimentos de Laurens, Mississipi, pacata cidade do meio-oeste americano onde Alvin Straight (Richard Farnsworth), idoso de saúde deteriorada, vive com sua filha Rose (Sissy Spacek), mulher de meia-idade cujo comportamento disfuncional a princípio nos sugere uma dependência paterna. A partir deste pequeno núcleo familiar, de fundo comovente, somos apresentados à vida comum da cidadezinha, com seus tipos caricatos, que não apenas caracterizam o que é mais propriamente o elemento cômico do filme, mas também justificam em certa medida o “Walt Disney presents” das cartelas iniciais, algo impensável em outros títulos de Lynch, que surpreendem o espectador desavisado. Não se trata de uma produção dos estúdios Disney, que apenas compraram os direitos de sua distribuição após a exibição inicial do filme no Festival de Cannes de 1999, mas é significativo o seu interesse e a sua “apresentação” para o tipo de história que veremos a seguir.

O que o filme narra é a viagem de Alvin, que, após receber a notícia do infarto de seu irmão, deve atravessar o estado do Iowa e chegar até a casa deste no Mississipi, para reencontrá-lo após dez anos de inimizade. A narrativa desta travessia, por si mesma, é acrescida de certa caráter épico de tons absurdos conforme a cegueira de Alvin não o permite dirigir um carro comum, implicando por sua própria decisão em percorrer todo o caminho a bordo de um cortador de grama dirigível. Sua viagem levará semanas, oportunidade para que Alvin, aos 73 anos e em fraca saúde, repasse os eventos mais significativos de sua vida e tenha, possivelmente, a sua última grande aventura.

Não nos é claro, quando Alvin começa a fazer uma série de operações de carpintaria em seu jardim, o que ele pretende fazer. Apenas quando, finalmente, apronta o seu cortador de grama, temos a mesma surpresa de sua filha Rose, ao perceber que Alvin o transformou em um veículo de transporte. Somente então, pouco a pouco, nos acostumamos com a ideia, desconfiando de sua possibilidade, assim como os outros moradores da cidade, que desacreditam de sua empreitada. Após uma primeira tentativa, ele fracassa: seu cortador é velho demais e não suporta nem mesmo o início do seu trajeto. É rebocado de volta à cidade, entrando pela mesma rua principal da qual havia saído, aos olhos dos comerciantes e amigos que o haviam desencorajado antes. Mas Alvin continua persistente e, com as suas economias, compra um novo cortador de grama, mais potente, voltando novamente para a estrada.

O trajeto de Alvin é frequentemente representado da mesma forma, com o seu pequeno veículo percorrendo o acostamento, enquanto atravessa paisagens rurais e é ultrapassado por automóveis em alta velocidade. Sempre a mesma cena e sempre o mesmo distúrbio que marca a lentidão de Alvin e a velocidade de todos os outros passageiros, em uma série de pequenas vinhetas, esquetes cômicas que pontuam pouco a pouco a sua viagem. Primeiro, é um caminhão que levanta um vento forte que leva embora o seu chapéu; depois, é um carro que passa buzinando; mais tarde, uma mulher que atropela um veado logo a sua frente; ainda, ao final, a surpresa e o maravilhamento de Alvin frente a uma quantidade enorme de ciclistas que passam por ele, sem que possa acompanhar cada um com os olhos.

Nos encontros que tem ao longo dessa trajetória e nos diálogos que estabelece com as poucas pessoas com quem se comunica é que se nota o caráter mais propriamente folclórico dessa narrativa. Pois Alvin, sempre contido, se mostra um sujeito de sabedoria frente a quem quer que fale, uma sabedoria popular, de experiência, ao que se soma a camaradagem sua e daqueles que encontra pelo caminho. Nestes momentos, não é raro pensar em certo lirismo, associado a noções presentes em Robert Frost e na poesia americana de tradição mais popular, que trata do respeito entre os homens e a consideração da vida na natureza (é impossível não pensar, a partir da caracterização de sua filha Rose, na personagem disfuncional e patética de “Death Of A Hired Man”, de Frost).

Em grande medida, “The Straight Story” possui um caráter “contemplativo”, explorado sistematicamente por momentos que descrevem a lentidão de sua travessia, que fazem passar o tempo através de imagens aéreas das paisagens que percorre, do nascer e do pôr do sol, do trabalho no campo e outras visões pitorescas. Em outros filmes, este sentimento “poético” associado à natureza poderia se apresentar como um dado decorativo, em uma associação banal entre a natureza e um caráter transcendente. Mas Lynch não filma estes planos estaticamente, não faz com que o filme simplesmente se detenha a exibir a “beleza” de qualquer paisagem particular. Ao contrário, dota sempre estas imagens de um movimento e de um caráter reiterativo, explicitado pela música-tema que as acompanha repetidamente, como um refrão ao longo do filme.

Não há um sentido de transcendência na natureza apresentada; há uma contemplação, pode-se dizer, mas que está associada ao trabalho e a paisagem onde estas figuras habitam, nunca como um refúgio ou qualquer ideal idílico. É sua realidade mais imediata que se aponta e, neste sentido, Alvin não está a caminho de descobrir a si mesmo, de encontrar fatos novos, mas de acertar as contas com o seu passado, seja com os fatos vividos ao longo da Segunda Guerra, seja mais imediatamente com o irmão querido de quem se afastou. Mesmo que sua viagem tenha um objetivo bem definido, rumo ao destino apontado a princípio, ela é constantemente acompanhada da incerteza deste encontro, bem como das reflexões que o levaram até ali, em um momento tardio da vida.

Neste sentido, este é um filme que trata de maneira singela os fatos prosaicos, dotando os elementos mais realistas de uma significação poética discreta e sutil, mas profunda. Pois, justamente, Alvin Straight é uma personagem sólida, que possui uma dureza intrínseca e jamais age de modo condescendente com sua filha, Rose. No retrato deste pequeno universo, do mundo pacato, rural, do midwest americano, Lynch, Sweeney e Roach também não se dispõem a um olhar sociológico, a querer desvendar esta realidade: ela existe, está ali e, principalmente, são os autores deste filme que se inspiram por esta sociedade, isentando-se de uma atitude que deseja impor a sua própria visão sobre ela.

O título original “The Straight Story” (traduzido em português como “Uma história real”) é adequado para tanto: não se refere simplesmente à “história de Alvin Straight”, mas à “história direta”, à narrativa sem os desvios e distorções característicos de David Lynch. É, justamente, através das transições, na descrição da passagem de tempo, nas caracterizações cômicas do princípio do filme, nas entrelinhas de sua construção geral, no encadeamento bem estabelecido que intercala os encontros com as vinhetas na estrada, que se denota o grau de artesanato que é aplicado a este filme, distinto de uma narração comum. Atuando como um eficiente realizador, Lynch se entrega de maneira mais comprometida ao realismo do que em qualquer caso de sua filmografia, narrando uma história no qual os seus traços de autoria se imprimem somente de modo secundário – autoria que aqui deveria ser atribuída a Mary Sweeney, por quem o filme fora concebido, roteirizado, produzido e editado.

Após diversas interrupções que tornam a sua viagem mais lenta conforme mais se aproxima de seu objetivo, Alvin finalmente encontra o seu irmão. Quando já muito próximo, seu automóvel pára por uma última vez, prestes a que o encontro aconteça, repercutindo o drama de sua antecipação. Em um último esforço, contando com a ajuda de mais um desconhecido que encontra pela estrada, Alvin é capaz de seguir e estaciona frente da pequena casa do irmão, tão ansiado e jamais visto, chamando pelo seu nome, Lyle, e esperando alguns poucos segundos para receber uma resposta, segundos nos quais tememos que ele não se encontre mais ali. Logo, Lyle responde, saindo à varanda; e, para nossa surpresa – ou, simplesmente, para a minha felicidade, confesso aqui –, quem atravessa a porta e responde aos chamados é Harry Dean Stanton, figura tão carismática, cuja mera aparência e gestual implica toda a profundidade necessária a sua personagem, como alguém que também conhecemos e nos é familiar.

Ambos se sentam na varanda e o irmão, observando o moedor de grama em seu jardim, pergunta a Alvin: “Você veio até aqui com isso?”, ao que o outro confirma. A seguir, é apenas o olhar e a sua consideração a propósito desta travessia o que mais profundamente comunica o sentimento deste reencontro. Ambos permanecem sentados lado a lado, enquanto a câmera se perde por entre os dois e tudo acaba. Depois das outras conversas, nenhuma outra palavra poderia comportar a importância deste momento; nenhuma informação a mais é dada a propósito desse irmão ou da relação entre os dois, assim como nada mais é dito. É tão significativa a sua trajetória que este encontro final se torna, por sua vez, “pequeno” frente ao que lhe precedeu: é um clímax dramático, é claro, e é o clímax desejável, pois ele também mostra a grandiosidade do caminho para chegar até ali. Este silêncio faz ver, de maneira mais profunda, qual é também o feito alcançado por este filme, pois a falta de necessidade de palavras mostra o quanto a construção que levou ao encontro destas duas personagens é ainda mais importante do que este encontro em si, sendo este apenas o desfecho de algo muito maior, transposto com uma humildade desconcertante, fato que talvez mais surpreenda em todo este filme.

Em “The Elephant Man”, Lynch já havia comprovado de que maneira era um diretor capaz de assumir um projeto encomendado, de realizar de maneira convincente e profissional cenas que exigissem de si um caráter de menor invenção, em consideração ao que fora sua experiência em “Eraserhead” (1977) ou será em filmes mais tardios, em que a sua faceta surrealista se torna mais evidente. No entanto, é com surpresa, ainda hoje, que se assiste “The Straight Story” como um filme mais puramente despido de qualquer intenção autoral, sob um comprometimento único com o drama narrado. Não houve outro filme assim em sua filmografia, nem espera-se que haja. Em “The Straight Story”, Lynch entregou um filme notável, “menor” para aqueles que procuram o que há mais quintessencial no seu cinema, mas cuja maior força reside em ser um trabalho único, que ilumina outros aspectos de sua carreira artística; um filme que não deve se repetir e está feito. Nele encontram-se os aspectos mais populares da cultura americana que correm de maneira latente por trás de seus filmes mais fantásticos e que são, possivelmente, o seu próprio fundamento de existência, a sua matéria real.

Matheus Zenom