Glauber Rocha e uma tradição possível

Um problema histórico

A aura de que são cobertos os filmes e os cineastas frequentemente nos impede de ver propriamente aquilo que se dá em suas obras e, precisamente, o que justifica a sua relevância. Frequentemente, eles nos são apresentados apenas como dados históricos, como eventos, documentos de uma determinada época, já morta: trata-se sempre de “o que foi”, como se em cada objeto não houvesse mais a possibilidade de suas qualidades expressivas persistirem. Tomar as obras fundadoras, históricas, como simplesmente documentos de um passado, ignorando que seus efeitos estéticos permanecem vivos e que seu dado originário permanece atuante, prejudica um entendimento a propósito das possibilidades que hoje mesmo podemos desenvolver, pois o olhar que se nega ao passado ignora também as possibilidades imprevistas do presente.

 É neste sentido que o cinema brasileiro sofre do grave problema da falta de uma tradição cinematográfica bem definida, por terem sido pouquíssimos, até hoje, aqueles que buscaram um caminho particular e, principalmente, raríssimas as experiências que encontraram continuidade a partir do trabalho de outros cineastas. Desde os seus primórdios, o cinema brasileiro viveu de empreitadas travadas, de pequenas aventuras comerciais que procuravam emular modelos narrativos e representacionais de filmes estrangeiros, havendo pouco, aqui, nas primeiras décadas de nossa produção, o desenvolvimento de filmes com um caráter mais experimental e particular, estando entre as raras exceções os filmes de Humberto Mauro e o “Limite” (1931) de Mário Peixoto.

Mauro, desde os seus primeiros longas-metragens, no ciclo de Cataguases, até os seus curtas para o Ministério da Educação, apresentará um cinema que transitará com naturalidade da ficção de pretensões artísticas e marcado caráter popular ao documentário educativo institucional, caracterizando-se sempre por sua grande economia criativa e adaptação às condições materiais de filmagem, sendo reconhecido décadas mais tarde como um dos pais do cinema brasileiro. Peixoto, em “Limite”, absolutamente distanciado desta cultura popular e aproximado às experiências vanguardistas realizadas na Europa na mesma época, de inspirações que vão de Jean Epstein à F. W. Murnau, representará por este alinhamento imprevisto e inexistente na filmografia brasileira um objeto isolado, distante das outras produções feitas aqui, e considerado como uma obra “genial” a partir, principalmente, de uma declaração de Sergei Eisenstein – que mais tarde foi revelada ter sido escrita pelo próprio Mário Peixoto, ajudando a promover seu filme quando originalmente exibido.

“Limite”, como um dos raros filmes a alcançar aqui resultados estéticos tão eloquentes quanto os de filmes vanguardistas europeus, constituirá, assim, por muitas décadas, um mito dentro da filmografia brasileira – mito que parece ter intimidado até mesmo Mário Peixoto, que nunca mais voltou a realizar longas-metragens, após uma segunda experiência frustrada. Logo, esta consideração se popularizou, mas o filme permaneceu oculto, devido às suas condições precárias de conservação, que impossibilitavam a sua exibição, tornando-se um filme muito falado, porém pouco visto pelas novas gerações. Assim, mesmo que inicialmente tenha sido recebido com enorme entusiasmo (demonstrado particularmente por Octávio de Faria na revista “O Fan”), “Limite” não foi capaz de produzir uma influência decisiva na produção brasileira imediatamente posterior, sofrendo com uma falta de diálogo e de inserção que fez com o que o mito crescesse e o filme se tornasse cada vez mais inatingível, distante de novas experiências análogas.

Limite (Mário Peixoto, 1931)

Em 1963, o primeiro de dois textos dedicados a “Limite” é publicado pelo jovem crítico e cineasta Glauber Rocha em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, texto que questiona o “idealismo” do projeto estético de Mário Peixoto, a sua “moral burguesa” e a obscuridade em que o filme se perdeu devido a impossibilidade de exibição – que impediu o próprio Glauber de então assistí-lo:

“Deduzo que Mário Peixoto usou um processo de montagem fundado sobre um exercício de imagens belas, e montou uma sinfonia estesiante que, se na época deslumbrava, hoje pode ter apenas um interesse histórico, formal. Para o novo cinema brasileiro, Limite não pode interessar, a não ser como exemplo. Segundo Octavio de Faria, é arte pela arte, não está interessado em mensagens, é cinema puro. Arte pela arte, cinema puro, é idealismo. O cinema não pode, ainda mais pela condição de sua própria força, deixar de manter um diálogo com a realidade. E nem com o homem.” [1]

No ano seguinte, Glauber Rocha realizará o seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme que surpreende toda uma geração de cineastas, atores, críticos e espectadores brasileiros, e, com apenas vinte e quatro anos de idade, se afirmará como figura central do Cinema Novo então insurgente. Mesmo que na crítica do ano anterior Glauber não concordasse com as ideias expressas em “Limite”, será em “Deus e o Diabo” que se encontrará, pela primeira vez no Brasil, uma relativa continuidade ao caráter de experimentação com a linguagem cinematográfica que se vê no filme de 1930 e, ao mesmo tempo, uma enorme ruptura com o cinema praticado em seu contexto imediato, gerando uma expectativa igualmente grande ao seu redor. Tal como ocorreu ao filme de Mário Peixoto, esta expectativa também tornará Glauber um “monstro sagrado” pelas décadas em diante, pois embora sua filmografia tenha se prolongado e houvesse maior disponibilidade de acesso aos seus filmes, seu caráter permaneceu “impenetrável” devido ao distanciamento criado por este mito e o estigma da “genialidade” que se atribuiu ao cineasta.

Um novo mito

O primeiro filme realizado por Glauber Rocha, “Pátio” (1959), havia sido já um curta-metragem de forte experimentação formal, que se aproxima esteticamente de filmes experimentais já então conhecidos, como os de James Broughton e Maya Deren, bem como demonstra a influência da montagem de Eisenstein. Em um espaço definido pelas formas geométricas de um pátio quadriculado, dois personagens isolados realizam ações que sugerem um ato sexual, em ambiente artificial circunscrito pela natureza, cujo gesto mais simbólico de interação com ela é quando o homem urina numa planta nos momentos finais, tal como uma metáfora de sua ejaculação. Seu filme seguinte, “Barravento” (1961), é a sua estreia em longas-metragens e marca também a primeira relação do Glauber cineasta com a cultura popular, em uma narrativa sobre as relações estabelecidas em uma comunidade de pescadores na Bahia.

Se em “Pátio” a representação tendia a uma significação abstrata, em “Barravento” o registro documental das ações dos pescadores, a tipagem dos personagens e o conflito dramático a propósito das condições sociais desta comunidade marcam um filme que, em suas muitas irregularidades e um resultado formal bastante discreto, apresenta um cineasta completamente diferente do que foi visto em seu primeiro curta; diferença de tom e intenções manifesta desde o princípio pelo acompanhamento sonoro dos filmes: no primeiro, o uso da música concreta, no segundo, os ritos do candomblé. Em comum, “Pátio” e “Barravento” demonstram um excesso de preocupação com a composição geométrica do quadro, em uma deliberada esquematização dos eventos que acontecem dentro da tela que aponta, sobretudo, a um momento iniciático de afirmação deste realizador, em que ele procurava a organização e o domínio dos elementos formais do filme (mesmo à força e em desajeito, em alguns momentos).

Em seu segundo longa-metragem, três anos depois, há uma nova mudança de tom, mas que é também, de certa maneira, o desenvolvimento desta experiência anterior. Se antes Glauber dialogava com o cinema experimental então conhecido e em “Barravento” se aproxima do neorealismo de Cesare Zavattini, em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), Glauber explorará o realismo da narrativa de uma maneira mais atenta à materialidade de seu registro, voltando-se à presença física de seus atores no espaço e desenvolvendo um modelo de representação que se inspira, a princípio, em Roberto Rossellini. Alguns anos depois, em um texto sobre Jean-Luc Godard, Glauber referenciará ao cineasta italiano por palavras que podemos reconhecer no projeto estético desenvolvido em “Deus e o Diabo”:

“Rossellini, Cinema Aberto sem literatura, sem estúdio, sem dramaturgia, sem ator, sem maquillage, sem técnica: apenas o homem, o mundo, o realismo sem ligações com a pintura, poesia visual descomprometida com regras de composição e iluminação, narrativa desligada das pretensões poéticas, texto ignorando tradições teatrais – novo realismo, “neo-realismo”. A solidão de Roberto continuou pois o neo-realismo foi traído, oficializado, teorizado, mediocrizado e comercializado. Roberto, o grande criador, ficou à margem.” [2]

“Deus e o Diabo”, então, traça um retrato histórico do sertão nordestino, enfatizando principalmente os fenômenos do beatismo e do cangaço a partir da narrativa de Manoel e Rosa, casal de camponeses pobres que, em sua peregrinação, dão testemunho a personagens, mitologias e conflitos de uma sociedade na qual são as figuras mais oprimidas, seja pelo coronel, pelo cangaceiro Corisco ou pelo líder religioso Sebastião – pelo poder econômico, militar ou religioso, respectivamente. A estes personagens se soma a figura de Antônio das Mortes, jagunço que, a serviço do poder local, será responsável por perseguir e assassinar Corisco e seus cangaceiros, aos quais Manuel e Rosa haviam se juntado depois de sua estadia com Sebastião.

É precisamente a partir do início desta perseguição, marcando a passagem para a segunda parte do filme, que se vê um Glauber diferente de todo o anterior. Aqui, a montagem rápida dos filmes anteriores se substitui por um elogio do plano-sequência, disposto pela movimentação dos atores, pela eloquência do gesto, pela presença física da câmera em relação a cena e, principalmente, pelo monólogo em que Corisco relata ao Cego Júlio, violeiro que leva Manuel e Rosa até o cangaço, o último diálogo que teve com Lampião. Monólogo, portanto, em que Corisco interpreta duas vozes: a sua e a de Lampião, alternando a gravidade do gesto e da fala de acordo com cada um que interpreta por vez, em um único plano, no qual é suspenso todo o desenvolvimento narrativo anterior.

A partir da descoberta de um mesmo ator, que, enquanto personagem, representa duas figuras ao mesmo tempo, implicando uma representação dentro da representação, Glauber institui um outro modelo de relato, muito mais sofisticado do que o flashback que, ainda na preparação do roteiro,  havia considerado para esta cena [3], e que constituiria simplesmente em uma solução convencional para este mesmo problema dramático. Glauber, assim, traz o mito de Lampião, encarnado por Corisco, e nisto inaugura uma modernidade cinematográfica jamais vista anteriormente, na qual a teatralidade das interpretações, comumente dada como uma “impureza” do cinema, é assumida como um elemento expressivo da representação. Da mesma forma, também o aspecto literário que se introduz a partir do cordel musical neste filme desempenha um papel fundamental para o desenvolvimento da narrativa, funcionando de maneira muito mais profunda do que apenas como acompanhamento sonoro. Ampliando a descrição dos personagens, auxilia a câmera e os atores, completa o sentido das cenas que se apresentam, apreende o sentido das suas elipses, se impõe como uma nova matéria, determinante à compreensão do todo expressivo, sob uma forte economia dramática. Mesmo o caráter mais literário deste filme, dado através das canções aqui presentes, não se submete à ação, mas a implica, a determina, fazendo a narrativa avançar [4].

No desenvolvimento de “Deus e o Diabo”, se acompanha o desenvolvimento também do cineasta, na mudança de seus procedimentos estéticos, no caminho pelo qual o seu estilo se torna cada vez mais pessoal, superando as referências e inaugurando algo novo, pelo fim e pela totalidade do filme. Isto é, se no fim encontramos um estilo que diz respeito somente a Glauber, nunca antes visto na cinematografia brasileira e mundial, é porque pouco a pouco, na realização do próprio filme, este estilo amadurece e se afirma, deixando de lado seja o realismo à maneira de Rosselini (como nas sequências do Monte Santo, no registro que ressalta o esforço físico de Geraldo Del Rey em carregar a pedra subindo a montanha) ou a montagem à Eisenstein (quando Antônio das Mortes assassina os fiéis, numa emulação das escadarias de Odessa de “Potemkin”) – sendo também a manifestação deste percurso no filme, por si mesmo, uma de suas características estéticas decisivas.

A sensibilidade presente em “Deus e o Diabo” é absolutamente distinta de seus colegas de geração, que em sua maioria realizam apenas uma adaptação dos preceitos da Nouvelle Vague (então a “vanguarda” mais operante no cinema mundial) à já conhecida (e superada) tradição do neorealismo italiano, na “modernização” de uma linguagem convencional. Neste sentido, é curioso pensar que se em “Barravento” Glauber trazia ainda a referência de Eisenstein, já então distante historicamente, e não estava ainda consciente da novidade dos procedimentos de representação da Nouvelle Vague, em “Deus e o Diabo” ele imediatamente ultrapassa as ideias previstas pelos jovens cineastas europeus, revelando uma elaboração formal que antecipa em alguns anos características que serão muito caras a geração seguinte do cinema europeu, a Pós-Nouvelle Vague de Marguerite Duras, Jean-Marie Straub, Jacques Rivette, Manoel de Oliveira, Carmelo Bene e outros cineastas de destaque.

Se o cinema da Nouvelle Vague trata ainda de narrativas ordinárias, prosaicas, de casos que acontecem no interior das cidades grandes europeias, libertando-se do sistema dos estúdios, das limitações da artificialidade pré-planejada e buscando uma espontaneidade do registro das aparências reais, este cinema pós-Nouvelle Vague se voltará, em grande medida, novamente ao artifício, porém colocando-o sempre em evidência e em questão: se estabelecerá com frequência uma dialética entre esta artificialidade da representação e o desejo ontológico do próprio registro cinematográfico. Assim, o que Glauber aponta, pela sua radicalidade formal, pela teatralidade do seu gesto, pela sua defesa de um cinema de limitações materiais, toma as lições deste primeiro movimento e as radicaliza em um sentido completamente imprevisto, dotando o cinema de uma alta reflexividade crítica a propósito de si mesmo, de seus meios de produção e de representação, como ainda não se havia atestado em experiências anteriores.

Esta mudança tratará de um diálogo com outras artes, principalmente com o teatro, tomado como uma matéria primordial para o jogo de construção dramática do filme, seja isto feito em respeito a unidade cênica ou a sua ruptura absoluta e sem compromissos – pela continuidade ou pela fragmentação, a forma fílmica se impõe de maneira decisiva, jamais indiferente. Acima de tudo, o que se implica a partir deste “teatro” é um desejo de ficção, estando nisto implicado a redescoberta da narração, na invenção da representação de acordo com a personalidade e as disponibilidades materiais que se oferecem aos seus realizadores, em uma dialética entre esta artificialidade da representação e o desejo ontológico do próprio registro cinematográfico, características que se encontram em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e o tornam também um filme tão isolado das experiências ao seu redor, no cinema brasileiro, quanto “Limite” foi ao seu tempo.

Morte de Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, 1964)

Um diálogo

Logo, porém, estes preceitos que o filme demonstra, e que terão continuidade na obra de Glauber, poucos anos mais tarde também se farão presentes no cinema de Rogério Sganzerla e de Júlio Bressane, cineastas ainda mais jovens, que iniciarão a sua produção de longas-metragens de uma maneira mais consistente a partir do final dos anos sessenta. Em 1968, ambos ainda procuravam um caminho para se afirmarem esteticamente, como farão em suas produções do ano seguinte, “O anjo nasceu” e “Matou a Família e Foi ao Cinema” de Júlio Bressane, e “A Mulher de Todos” de Rogério Sganzerla, e a concretizarão no ano de 1970 através das produções da Belair, produtora que em três meses produziu seis longas-metragens, três de cada um.

“Câncer”, filmado em 1968 e montado em 1972, é, efetivamente, na filmografia de Glauber, a marca mais importante de uma aproximação aos ideais estéticos destes dois cineastas citados, outros grandes expoentes da cinematografia brasileira deste período. Ainda que a realização “Câncer” tenha sido antecipatória à ruptura destes cineastas, a finalização do filme apenas quatro anos depois faz com que o filme de Glauber se aproxime apenas posteriormente deste conjunto, que de parte dos jovens cineastas já contava com mais de uma dezena de filmes que refletem sobre os mesmos problemas estéticos de “Câncer”: essencialmente, o plano sequência, a economia de meios de produção e a improvisação dos atores.

Glauber esclarece a feitura de “Câncer” em sua voz off que acompanha toda a sequência inicial do filme, sobre as imagens de uma conferência no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. “Quatro dias para filmar e quatro anos para montar”, é o que ele diz. Filmado em 1968, mas concluído apenas em 1972, o processo que leva a finalização “Câncer” se apresenta na filmografia de Glauber sob o recorte das produções “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1970), “Cabezas Cortadas” (1970) e “Der Leone Have Sept Cabezas” (1970), estes dois últimos já filmes realizados em seu exílio; que demonstram que Glauber não se dedicou estes quatro anos exclusivamente à montagem de “Câncer”, mas este tempo talvez tenha sido necessário para que houvesse a maturação a propósito de como organizar e estruturar seu material.

O que se vê, no fim, é um filme estruturado sob planos longos, explorando o tensionamento da duração temporal de uma ação que se prolonga até se desgastar quase completamente, levando aos limites a continuidade do desenvolvimento dramático no interior de cada bloco cênico, em que os atores parecem livremente estabelecer o seu diálogo conforme a sua performance progride, interrompendo uns aos outros, procurando novas soluções por si mesmos para uma determinada linha geral proposta, enquanto a câmera os observa de maneira frontal e objetiva. Em sua estrutura, “Câncer” não apresenta mais do que uma dúzia destes diálogos, alguns deles chegando a quase dez minutos, ou a totalidade de uma bobina de filme, operando entre cada um deles uma elipse indefinida que é fundamental para a composição do filme.

Nele, existe a centralidade de Antônio Pitanga, interpretando uma personagem que apenas em uma cena deixa escapar o seu nome (“José”) e que deseja sair da marginalidade ao encontrar um trabalho, deixando a vida de crime. As oportunidades, entretanto, lhe são negadas pela personagem de Rogério Duarte, que o humilha, logo na primeira cena em que Pitanga é apresentado. Personagem ingênua, é em poucos momentos é capaz de ter verdadeiramente uma atitude ativa em relação ao que acontece ao seu redor, sem forças para mudar a situação em que vive. Logo, volta a praticar alguns furtos, que divide com o malandro interpretado por Hugo Carvana – que, por sua vez, tem também uma namorada, interpretada por Odete Lara.

Ao retratar a condição miserável de José, “Câncer” apresenta por vezes o diálogo de Antônio Pitanga com pessoas comuns, nas ruas do centro do Rio de Janeiro, em que lhes pede desesperadamente por emprego. Ao redor da cena, que por vezes parece se desenvolver sem a consciência destes interlocutores a propósito da representação, por outras com uma deliberada interpretação de sua parte, outras pessoas param, observam e também se dispõem frente a câmera, curiosos a propósito do que aquilo se trata e do porquê aquele registro se faz. Assim, as experiências de improvisação deste filme são tensionadas também em uma cena na qual Glauber, de fora do quadro, grita com a um ator (que interpreta o personagem ao qual Pitanga e Carvana tentam vender um objeto roubado) que sua mãe “pariu mais de quarenta filhos” que se impõe uma maneira de desestabilizar a própria atuação e o desempenho daquele que tem de, ao mesmo tempo, responder a Glauber e aos outros personagens dentro da cena, estado dentro e fora desta representação ao mesmo tempo.

A degradação do negativo de som ao longo dos anos em que o filme esteve em montagem, distorção irrecuperável na voz de seus atores, criou em diversos momentos uma textura distinta para as falas, alterando o sentido de apreensão de determinadas cenas e afastando “Câncer” de qualquer naturalismo. Neste sentido, a cena final, em que Antônio Pitanga toma uma arma das mãos de Hélio Oiticica e finalmente mata a personagem de Rogério Duarte, abarca de sua própria maneira particular uma realidade cotidiana extremamente dramática por um modelo de representação muito distinto de qualquer tipo de realismo, mas que, partindo do caráter lúdico das provocações entre os personagens, chega a um gesto que sintetiza toda a violência presente ao longo do filme e exacerba a natureza de toda esta representação, quando Pitanga se volta em direção a câmera e grita repetidamente “Eu quero matar o mundo!”, momento de desespero após o qual a câmera se perde no espaço vazio e o filme se encerra de maneira trágica, sem qualquer tipo de redenção.

Se as irregularidades que antes haviam em “Deus e o Diabo” e “Terra em Transe” (1967), filme que procede a este outro, incomodavam o desenvolvimento de um projeto estético que até então se pretendia, em certa medida, ainda fechado e homogêneo, em “Câncer” o que se verá será justamente a incorporação destas irregularidades como um dado fundamental de sua composição formal, num filme aberto às contingências materiais, à improvisação dos atores e à intervenção do realizador atrás das câmeras.

Uma tradição possível

A partir de “Câncer”, Glauber parece fazer um esforço para romper com o mito anterior criado ao redor de si, radicalizando as suas experiências em um sentido completamente distinto daquilo que havia realizado até “Terra em Transe”, em filmes que ressaltam cada vez mais o seu aspecto formal de composição. A heterogeneidade de sua produção dos anos setenta tem a ver com o que acontece na trajetória exposta a respeito de “Deus e o Diabo”, com a diferença que Glauber já não preza mais o desenvolvimento narrativo realista e sequencial, mas se dedica à elaboração das imagens valendo-se de um outro tempo, onírico, para conduzir a sua representação, gerando momentos de suspensão, de imprevisibilidade do que deve vir a seguir. Filmes feitos como cadernos de esboços, tomando partido das liberdades oferecidas pelo financiamento dos produtores estrangeiros, em que seu principal interesse parece estar nas possibilidades de descoberta do próprio cinema, de investigação formal, de inquietude.

Cada um destes filmes é como a síntese de determinadas inquietações e experimentos formais que levaram a ele, nos quais Glauber demonstra um gosto pelo inacabado, pela exploração das ideias e a recusa da articulação do todo. Filmes em vias de se formar, fragmentários estética e narrativamente, mas que parecem a sedimentação do que deve se afirmar após voltar do exílio europeu, quando realiza mais dois filmes que estarão entre os mais importantes de toda a sua filmografia, “Di” e “A Idade da Terra”, um curta e um longa-metragem, respectivamente, que esteticamente se apresentam de maneira extremamente complementar, em sua exploração da montagem, da textura das imagens, da exposição de uma narrativa através de uma multiplicidade de matérias e personagens distintos, de um uso inventivo do som.

Entre eles, em 1978, é publicado o segundo texto de Glauber Rocha sobre “Limite”, no qual revisa as posturas declaradas quinze anos antes, após ter agora, finalmente, visto o filme pela primeira vez e assume, mesmo que indiretamente, uma identificação com o projeto estético de Mário Peixoto que é fundamental para se compreender também a mudança no percurso do cineasta, podendo dizer que:

“Mário Peixoto aos 19-20 anos realiza tudaquilo que os Kyneaztas desejam: Fluz-Imag-AZÂ-criar Emoção (comunication…) através montage de células vizuayz […] ’Limite’ é uma revolucionáriaula de Montage para tantos Kyneaztas incompetentes. Porque nossos filmes são Literários e Teatrais. Pornográficos, não pelo sexo, mas pelo MAU GOZT: os Kyneaztas são ideologicamente pré-Romanezcux, daí a permanente burrice do Realyzm.” [5]

Neste sentido, aquilo que podemos depreender tanto das considerações que Glauber faz a respeito de “Limite”, como das experiências realizadas em suas obras mais tardias, é que ambos se encontram em sua busca por novos modelos de representação, recusa ao realismo e dedicação à linguagem cinematográfica, aproximação que abre a obra de Glauber para novas análises e relações, propondo a continuidade de uma tradição. Glauber Rocha, afinal, não é importante simplesmente como uma personagem central no cinema brasileiro e menos ainda como um exemplo isolado e distante, mas a sua importância se justifica exatamente pelo fato deste cineasta ser o elo de uma vertente específica dentro da cinematografia nacional, sendo uma peça-chave para relacionar os polos distintos de uma tradição possível, a ligar todos estes realizadores aqui comentados.

Tomando, enfim, as características em comum entre Humberto Mauro, Mário Peixoto, Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, pode-se definir um cinema de uma diminuição dos seus recursos materiais e de uma frontalidade da câmera em relação aos seus objetos: um “anti-cinema”, oposto às exigências estéticas convencionais, mas que se volta diretamente às expressões fundamentais de sua realização, em uma atitude de contraposição que lhe restituiria um vigor por apresentar aquilo que é o seu contrário, explorando características que permaneciam então em negativo, revelando o verso da moeda já tão conhecida e gasta. Certamente poderiam haver outros nomes, mas estes são os que fundamentalmente designam os processos mais importantes de superação estética (e histórica) dentro do cinema brasileiro, após os quais não houveram quaisquer rupturas ou novidades.

Todos estes cineastas são ilhas, exceções, e, se fizeram os filmes que fizeram, foi antes por seu mérito, do que pelo “cinema brasileiro”, como instituição que deles se serviu. Sua consideração em relação somente ao grosso da produção nacional, frequentemente, apenas cria mitos e mal-entendidos, nomes inquestionáveis que são, por isto mesmo, marginalizados em meio a uma produção que nada lhe tem em comum, como uma maneira de castigar aqueles mesmos que são chamados de “gênios”. Embora sejam estes os nossos cineastas mais reconhecidos internacionalmente, e os que efetivamente representam a “bandeira do cinema brasileiro” sob uma dimensão histórica mundial, ainda não se foi capaz aqui até hoje de compreender em amplo sentido e divulgação a natureza dos seus filmes e como cada um deles, de maneira bastante particular e distinta do outro, explora com uma variedade de interesses novas possibilidades de realização. Assim, não se deseja afirmar um cânone simplesmente (mesmo porque este seria já um cânone bem conhecido), mas pensar que, somente por um olhar atento às suas obras, que perceba os seus defeitos ou qualidades sem preconceitos ou monumentalizações é que hoje se poderá encontrar novos caminhos para entender a sua lição e o seu legado, constituindo uma base de referência mais consistente para um cinema que seja feito ou analisado por aqui.

Matheus Zenom

NOTAS

[1] ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.66.

[2] ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.366.

[3] AVELLAR, José Carlos. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

[4] Idem.

[5] ROCHA, Glauber. Crítica Esparsa. Org. Mateus Araújo Silva. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2019, p.37-38.