Percurso descritivo dos trabalhos cinematográficos do escultor
“Eu teria continuado a fazer filmes, mas o problema era que eu tinha que achar o assunto à medida que trabalhava com a câmera. Eu não começava com uma ideia preconcebida do que o filme seria, e isso significava que eu tinha que carregar a câmera comigo o tempo todo. Fiz isso por algum tempo, talvez quatro ou cinco anos, mas esse processo me impedia de pensar sobre um monte de outras coisas. Eu também tinha um problema com o frame: ter que lidar com aquele retângulo prescrito era uma grande limitação. Eu nunca soube lidar com as contradições de o olhar tornar-se a câmera, o frame, a tela…” [1]
A contribuição e a relevância estética dos filmes de Richard Serra são pouco comentadas e mesmo desconhecidas pela maior parte dos espectadores cinematográficos, mesmo entre aqueles mais envolvidos com a cinefilia, o que se justifica também por esta produção cinematográfica ser, em certo sentido, um dado secundário em seu percurso artístico. Serra, pertencente a uma proeminente geração de artistas norte-americanos que ganha evidência a partir da década de 1970, consolidou-se como um dos maiores escultores do século XX e permanece ativo ainda hoje, como um dos mais notáveis remanescentes desta geração (cujas afiliações diretas mais conhecidas de Serra são Yvonne Rainer, Joan Jonas, Philip Glass, Robert Smithson e o também cineasta Michael Snow). Entre os anos de 1968 e 1979, desempenhará uma atividade cinematográfica relativamente breve, mas importante: realiza cerca de uma quinzena de curtas-metragens, experimentando também com o vídeo, então uma nova tecnologia, cuja busca por uma linguagem própria se tornará também um interesse constante de sua geração. [2]
Bastante influenciado pelas experiências realizadas no cinema underground de Nova York na década de 1960, particularmente pelos trabalhos de Andy Warhol e Yvonne Rainer, a primeira incursão de Serra na realização cinematográfica se dá por um pedido para que fosse feito um filme sobre a montagem de uma de suas esculturas, “House Of Cards” (1968). Este trabalho, também chamada de “One ton prop” (“apoio de uma tonelada”), consiste de quatro placas de chumbo que, apoiadas umas às outras e tocando-se apenas brevemente pelos ângulos superiores de suas margens laterais, formam um cubo aberto em sua parte superior. Em resposta ao convite, Serra decidirá filmar a sua própria interpretação do trabalho com uma câmera Éclair 16mm, não tratando de mostrar a escultura em si ou sua difícil ação escultórica, consistente da elevação destas placas pelo escultor e três outros amigos-ajudantes, mas concentrando-se em abordar a obra através de um aspecto mais puramente conceitual.

A imagem que é encontrada para isso, de uma mão que tenta apanhar as folhas de chumbo que entram em quadro a partir de sua margem superior, em queda livre, é então representativa das múltiplas tentativas e investigações do escultor sobre as possibilidades de expressão a partir do material com que trabalha, tanto em “House of Cards” quanto em “Hand Catching Lead” (1968), título que recebeu este filme. A recorrência do mesmo material na escultura e no filme é o nexo mais evidente de uma associação entre os dois trabalhos, cujo paralelo pode ser melhor assimilado através de um caráter reflexivo a propósito não da escultura em si, mas do caminho que pôde levar o artista até ela. No caso de Serra, isto se volta mais intimamente a propósito dos próprios processos de produção, à sua poética particular de interpretação dos materiais e à tentativa de encontrar novas formas de expressão a partir deles.
Neste contexto, somos levados a crer que o acúmulo das impressões de chumbo na palma de sua mão é o resultado direto de sua experiência com a matéria, ao apreendê-la em meio a tentativas frustradas, na persecução de seu domínio material. Os pedaços de chumbo sempre atravessam completamente o quadro, independente se a mão falha ou sucede em agarrá-los, os abandonando para imediatamente seguir uma nova tentativa, em um gesto persecutório constante. Acima de tudo, é a absoluta redução dos meios cinematográficos aqui presentes o que dialoga de maneira mais efetiva com o seu trabalho escultórico, onde o volume, o peso e a “planaridade” da escultura adquirem uma função primordial, resumida às propriedades mais básicas de seu essencial expressivo. [3]

O discurso a propósito da “experiência” se afigura como uma constante nas entrevistas em que Serra é levado a refletir sobre o seu percurso de trabalho; mais do que qualquer inspiração temática, é a reflexão sobre os seus próprios procedimentos que frequentemente se mostrará no centro de novos trabalhos. Neste sentido, pode-se entender o princípio de serialidade destes primeiros filmes como variações em torno de ideias semelhantes, mas que vão de encontro a resultados e a propriedades formais completamente distintas. Assim, é deste modo que Richard Serra resume alguns de seus princípios de trabalho: “É impossível criar algo sem um fundamento rigoroso, irrefutável e, na verdade, até certo ponto, repetitivo. A provação da repetição é um modo de superar a indecisão de recomeçar: não repetir o que foi feito, mas retraçar o mesmo percurso.” [4]
Este será o primeiro de uma série de curtas-metragens que Serra irá produzir, inicialmente entre 1968 e 1971, seguindo-se a isto um período de experimentações em vídeo e, a partir de 1976, um novo e breve retorno à película. Tal como as esculturas produzidas em seus anos iniciais de atividade, também estes filmes possuirão certo caráter “primitivo” associado às noções mais básicas de seu meio expressivo. Serra, afinal, diz estar mais interessado no “preto e branco do quadro” do que em sua matéria conteudista, algo relevante para compreendermos de que modo a sensibilidade fotográfica às linhas e volumes no quadro desempenham um papel expressivo em seus filmes. Em certo sentido, devido ao seu interesse na realização de ações primárias, sua breve duração e sua fotografia em preto e branco extremamente contrastada, características que fazem pensar em como chegam até nós, hoje, os filmes dos pioneiros das imagens em movimento antes da primeira exposição do cinematógrafo dos irmãos Lumière, estabelecendo um diálogo seja com a ação repetitiva de “Blacksmith Scene” (1893) de William Dickson (em serviço a Thomas Edison) ou com os diversos estudos de movimentos corporais de Étienne-Jules Marey.

Em “Hands Scraping” (1968), um volume luminoso de pó de ferro é despejado sobre um assoalho de madeira, afigurando uma espécie de monte de terra em que duas pessoas – ou, melhor dizendo, quatro mãos – deverão pouco a pouco, em um esforço conjunto, removê-lo aos punhados desta superfície para fora de quadro. A princípio, a matéria volumosa torna ágil o trabalho, progressivamente dificultado conforme se torna mais escasso o material a ser manuseado. Enquanto ele é removido, também o brilho pouco a pouco desaparece, restando ao fim apenas o assoalho vazio, em um quadro completamente escurecido, após as mãos e o material, objetos refletores de luz, também saírem de quadro.
Este movimento da fartura à escassez, cuja remoção absoluta é o objetivo do filme e das ações presentes na tela, dialoga diretamente com a própria depuração característica dos trabalhos de Richard Serra, seja pelo que representam as suas esculturas ou seus filmes. Ater-se ao mínimo de materiais e objetos, utilizar as formas mais diretas e contundentes, sem adornos. Mais precisamente, é a dificuldade deliberada imposta pela limitação progressiva, a qual se vai de encontro, o que caracteriza sua poética rigorosa de criação. Estas noções, manifestas através de um esforço físico posto em quadro, se manifestam com maior clareza em dois outros de seus curtas-metragens: “Hands Tied” (1968) e “Lead Hand Fulcrum” (1968).

Em “Hands Tied”, a tensão se constitui da impossibilidade de movimentação de duas mãos amarradas firmemente por uma corda, que tentam se libertar, competindo com os limites de duração do próprio rolo do filme, sob a expectativa de concluí-lo enquanto a câmera ainda está filmando. Esta limitação, destacada pela aproximação da câmera e a ausência de outros elementos, implica uma dramaticidade em torno deste evento solitário, disposto sem qualquer tipo de contexto, adquirindo um caráter puramente performático. Em “Lead Hand Fulcrum”, uma mão tenta sustentar um volume de chumbo. A princípio erguida no topo do quadro, esta vai hesitando pouco a pouco conforme a progressão do filme, terminando em sua margem inferior, no que é um teste dos limites do quanto ela pode evitar ceder ao seu peso.
A abordagem mais direta deste aspecto conceitual em relação ao filme está em “Frame” (1969), no qual Serra mede sobre uma parede branca as dimensões que estão encerradas no próprio enquadramento de seu filme, perguntando a alguém atras das câmeras se o posicionamento da régua pela qual o mede está diretamente associado às margens da imagem – o que configura, também, um complemento sonoro que não estava presente em seus filmes anteriores. Apenas a régua e suas mãos são vistas no quadro, o realizador tentando se manter fora deste espaço, de modo a preservar na imagem a mesma “pureza” da tela em branco. Este “meta-filme didático”, como Serra o define, se explicita quando passa então a medir as bordas exteriores deste quadro, retirando dele mesmo a sua régua e mantendo o retângulo inteiramente vazio, enquanto permanece apenas a sua voz off declarando as medidas, num gesto dadaísta, sem propósito, mas evidentemente provocativo em relação aos limites do próprio quadro e não apenas do que se pode representar através dele.
A preocupação de Serra em medir a largura do retângulo, então, afigura-se como um dado absurdo não apenas pelo que é a própria ação posta em cena, mas também pelo fato de um correspondente exato a essas medidas em sua projeção serem um fato improvável, seja ele projetado na tela de cinema ou visualizado em qualquer outra tela ou suporte. É daí, talvez, que advenha um certo “realismo” (ou mesmo “materialismo”) daquilo que faz, um certo testemunho de que, não no filme projetado, mas na sua realização foi assim, era esta parede, eram estas as suas dimensões retratadas – informações que, enfim, não possuem qualquer valor comunicativo, senão apenas em relação ao seu esforço fracassado e inútil, pois “é impossível fazer um filme teoricamente, sem levar em conta o seu material”, como Serra mesmo diz.
Neste primeiro período, cuja produção Richard Serra definirá como “filmes de estúdio” em que usa apenas as próprias mãos [5], em uma redução essencial das ações e da potência dramática que elas carregam, enfatizadas como elemento central do quadro, seus filmes evidenciam características decisivas não apenas à sua própria interpretação do meio cinematográfico, mas a toda uma vertente do cinema moderno e experimental: a compressão em uma única tomada, a brevidade do registro, a contenção espacial do quadro, a fixidez da câmera e a recusa da montagem.
A redução absoluta de elementos visuais se associa também a uma completa dissolução não apenas de qualquer elemento narrativo, como de qualquer figuração ou representação associada ao cinema de maneira geral: dele sobra tão somente o interesse pelo quadro em si, pelo recorte que fundamenta a expressão. Embora isto possa sugerir uma aproximação natural com os filmes mais representativos do “cinema estrutural”, como “The Flicker” (Tony Conrad, 1966) ou “Serene Velocity” (Ernie Gehr, 1970), é preciso notar que, ao contrário destes, o cinema de Serra pouco coloca em evidencia a materialidade do filme em si, bem como outras de suas características plásticas, mas volta-se ao interior de seus próprios procedimentos, dialogando com o seu trabalho escultórico.
Estes primeiros filmes, tal como suas primeiras esculturas, são objetos contidos, fechados em si, com suas próprias leis particulares, dado que tornará distinto conforme Serra se abrir a registros que não estão diretamente vinculados à ação desempenhada pelo artista, mas se voltam a uma ação independente que estaria acontecendo a sua frente. Não há como deixar de relacionar estes filmes seguintes, de duração mais alongada (cerca de 15 minutos), com as esculturas de grande escala que Serra começa a produzir a partir da década de 1970, cuja dinâmica estrutural não se volta mais à si mesma, mas em que as obras se posicionam em relação ao contexto espacial em que estão inseridas, ressignificando as relações ao seu redor, a exemplo de seu “Tilted Arc” (1981). Esta escultura de aço de enormes dimensões, 36 metros de largura por 3,6 metros de altura, havia sido instalada em uma das praça públicas em torno dos prédios da Justiça de Nova York, dividindo esta praça ao meio. Inicialmente comissionada pelo governo, em um programa de estímulo às artes nos Estados Unidos, esta escultura será finalmente destruída no fim da década de 1980, após um longo processo jurídico movido contra sua suposta perturbação visual e paisagística, bem como seu impedimento à livre-circulação de pedestres.

Em “Raildroad Turnbridge” (1976), Richard Serra filma uma ponte com trilhos de trem, que se desloca para permitir a passagem de navios no curso de um rio. Entretanto, não é a partir de um ponto-de-vista exterior que Serra se dispõe a registrar este movimento, mas, posicionando a sua câmera sobre um tripé em cima da própria ponte, é a câmera em si que se desloca, em uma operação na qual o quadro oferece uma profundidade de campo guiada pelas balizas de aço que, ao fundo, se encerram em um novo enquadramento, centralizado, da paisagem à sua frente, representando uma espécie de filme dentro do filme.
“Railroad Turnbridge“, neste sentido, dialoga com este seu trabalho de intervenção urbana: a câmera se dispõe ao que está ao redor, apreendendo um aspecto da realidade por limites bem definidos, mas sem que haja maiores intervenções do realizador sobre aquilo que vemos. Assim, a sua câmera se movimenta não por uma ação que Serra realize no tripé, mas pelo movimento da própria ponte. Enquanto toda a sua estrutura permanece evidente e estática na maior parte do quadro, o que vemos mover-se é, de fato, este enquadramento em seu interior e a paisagem que muda conforme a ponte se desloca. Confirma-se, aqui, a afirmação de Rosalind Krauss sobre a ponte não ser, neste caso, tão somente o objeto do filme, mas principalmente o dispositivo mecânico que permite a mudança nas relações presentes em sua imagem. [6]

Diferentemente dos trabalhos anteriores, onde as mínimas relações se resolviam no interior do mesmo plano, Serra aqui recorrerá à montagem, dispondo sequencialmente novas imagens que complementam a ilustração dos movimentos realizados pela ponte ou descrevem a sua própria estrutura metálica. Este procedimento, entretanto, embora ofereça pontos-de-vista distintos, em duração alongada, não encontra no filme uma atribuição estrutural propriamente dita, funcionando muito mais como o encadeamento simples destas tomadas. Nos 16 minutos de “Railroad Turnbridge” afigura-se um caráter dispersivo distinto de toda a concisão dos filmes anteriores citados.
Seu retorno ao filme terá ainda uma última obra, intitulada “Steelmill/Stahlwerk” (1979), realizado junto de sua companheira Clara Weyergraf-Serra, em que assume de maneira mais propriamente dita um registro documental, ao acompanhar a rotina de trabalho de uma usina siderúrgica na Alemanha, onde estava sendo produzida a primeira de suas esculturas utilizando o ferro forjado, “Berlin Block (For Charlie Chaplin)” (1977). Desta vez, entretanto, Serra trata de documentar diretamente o processo de fabricação industrial da escultura dentro da usina, registrando a rotina de trabalho e questionando os seus operários a propósito do que significaria para eles fazê-lo. Novamente, os caminhos entre o seu cinema e a sua prática escultórica se cruzam.
Matheus Zenom
Notas
[1] SERRA, Richard; McSHINE, Kynaston. “Uma conversa sobre trabalho com Richard Serra” in. “Escritos e Entrevistas”. São Paulo: IMS, 2014.
[2] Por tratar-se de uma abordagem bastante distinta dos preceitos explorados em sua produção em película, não discutirei neste texto a sua produção em vídeo, que se apropria e ironiza uma linguagem publicitária e midiática em geral para voltar-se a interesses semiológicos e de contestação social, como era tendência de parte da “videoarte” emergente nos anos de 1970.
[3] Termos que estão absolutamente de acordo com a poética de outro notável escultor, Amílcar de Castro, do qual falamos a respeito em edições anteriores da Revista Limite. Disponível em: https://limiterevista.com/2021/03/30/amilcar-de-castro-concisao-e-materialidade/
[4] SERRA, Richard. “Palestra de Richard Serra” in. “Rio Rounds”. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999.
[5] Declarações feitas em um programa da televisão alemã, que apresenta também alguns dos trechos de sua filmografia comentada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NrUJFiSy1mE
[6] KRAUSS, Rosalind. “Richard Serra, a Translation” in. “Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths”. Cambridge: MIT Press, 1986.