“Que la bête meure” (1969), “Le Boucher” (1970) e “Une affaire des femmes” (1988)
Chabrol é uma figura curiosa na história do cinema. É possivelmente o nome mais esquecido da Nouvelle Vague, ao menos entre aqueles mais mencionados, e não sem motivos; é também aquele cujos filmes, principalmente nas décadas mais efervescentes do grupo, de 60 a 80, são menos memoráveis. Isto não quer dizer, de modo algum, que não seja um cineasta interessante. Sua trajetória é discreta, ainda mais ao lado dos filmes mais célebres de Godard, Truffaut, Rohmer ou Rivette. O que quero argumentar é que o cinema de Chabrol não foi simplesmente delegado a este papel discreto; ele o cultivou e fez da discrição sua principal ferramenta, até chegar a sua sutil maestria. Sua carreira caminha, em certo sentido, como muitos de seus filmes, como se nada estivesse acontecendo até todos aqueles pequenos detalhes e faíscas se acumularem e culminarem em um final arrebatador; no caso, com filmes como “Une affaire des femmes”, em 1988, e “La cérémonie”, em 1995.
Para além de algumas recorrências, sobretudo temáticas, como suas narrativas de origem literária, frequentemente de cunho policial ou de “fait divers” jornalísticos, ou sua ambiência na França interiorana, à primeira vista não existem muitos traços distintivos do cinema de Chabrol como são evidentes em seus companheiros de Nouvelle Vague. Como para compreender o “Lubitsch touch”, é preciso adentrá-lo e deixá-lo se assentar para descobrir suas saliências. Como Lubitsch, mas sem sua elegância, sua arma é a sutileza.
E se digo que o cinema de Chabrol é deselegante, ainda que nem sempre seja o caso, não o digo de modo algum como algo negativo. Pelo contrário, acredito que esta seja uma de suas principais qualidades: a maneira franca, sem rodeios e surpreendentemente simples com a qual conta suas histórias. Ainda que a referência à Hitchcock em seus filmes seja gritante, Chabrol é uma espécie de anti-Hitchcock, simultaneamente sutil e bruto onde o outro é intenso e virtuoso. É uma espécie de Hitchcock de segunda linha, televisivo. Não atoa, para além de suas tramas policiais e atenção aos detalhes, o que parece fascinar Chabrol no cinema de Hitchcock é tudo aquilo que sobra de sua “perfeição”: o humor, o Hitchcock de “The Trouble with Harry”, a mentalidade de cidade pequena, os trejeitos dos ingleses e dos idosos, a comida (em particular a carne dos animais).

“Que la bête meure” (1969)
Em “Que la bête meure” (1969), o romance policial de mesmo nome torna-se uma tragédia grega de escalas televisivas. O filme se introduz com a brutalidade simples de Chabrol: em uma cidade litorânea da Normandia, um menino volta para casa após pescar caranguejos enquanto um carro esportivo corre em altas velocidades pelas pequenas ruas; acompanhamos os dois núcleos narrativos até se chocarem quando a criança atravessa a rua, e morre. A sequência é filmada com frieza, mas não é cruel ou cínica, simplesmente não foge de um ato inevitável – é de uma frieza muito distinta, por exemplo, daquela que faz Haneke em seu pedestal de moralismo desviar sua câmera da violência que ele mesmo preparou. Esta frieza de cunho simples e direto, que mostra os fatos com o pé-no-chão, acabará por repercutir com o discurso fatalista da narrativa trágica, mas televisiva.

Acompanharemos, então, o protagonista e narrador Charles (Michel Duchaussoy), pai da criança, em sua jornada vingativa para encontrar e matar o assassino de seu filho. Sua investigação, que incialmente parece absolutamente vã, descrita por ele em um caderninho e narrada para nós, com ajuda do acaso logo encontra a primeira suspeita: Hélène (Caroline Cellier), uma atriz de televisão. Logo o narrador se envolverá romanticamente com esta e descobrirá que o verdadeiro assassino é seu cunhado Paul (Jean Yanne), um homem absolutamente repugnante, cuja morte é desejada por todos ao redor – fato que torna a tarefa de assassiná-lo apenas mais fácil, como aponta o próprio narrador. Não a toa Hélène, com seu nome mitológico, é uma atriz de televisão; se esta informação já estava presente no livro original, com intuito evidente de tornar a personagem alguém minimamente reconhecível, passível de ser encontrada, ela acarretará outros sentidos no filme, associando este a um universo televisivo de narrativas simples, trágicas e sensacionalistas – isto é, além de remeter à Vertigo. O fatalismo está na Helena de Tróia, mas também nos filmes de televisão, nesta atriz apenas um pouco reconhecível, neste assassino tão facilmente odiável, neste crime tão facilmente condenável, neste câmera que não inventa, nestas personagens que são o que são, neste filme que vai exatamente onde tem que ir. Reconhecer a mediocridade deste fatalismo não é livrar-se dela, muito menos transcendê-la, o que o filme tampouco parece almejar.

“Que la bête meure” está longe de uma tragédia grega, mas consegue reconhecer aquilo que o filme televisivo ainda consegue transmitir muito bem – lembrando que ele não foi um filme feito para televisão, apenas parece. Ele conta sua história elíptica sem sobras, com as pequenas ressonâncias e espelhamentos narrativos necessárias para que seja bem contada: por exemplo, o amor de Charles por seu filho, que motiva sua vingança, é espelhado pelo sentimento oposto que o filho de Paul parece sentir por seu pai, a quem também deseja matar. Em um âmbito formal, o filme é muito discreto, mas há também a recorrência de planos muito distanciados que gradualmente se aproximam das personagens ou o contrário, como numa versão diluída, discreta, de um plano hitchcockiano. O plano inicial que aos poucos se distancia da criança no mar caçando caranguejos é invertido quando a câmera se aproxima da cena em que seu pai está na mesma praia, caçando caranguejos com Hélène e Paul, e ressoa ainda na cena final, quando a câmera novamente se distancia, agora de Charles, que se isola com seu barco no meio do mar, demarcando estes três momentos chave na narrativa em um mesmo ambiente e movimento de câmera.

Criam-se, enfim, muitas situações interessantes no filme, mas não tanto em um sentido cinematográfico – o momento de maior ação que temos, por exemplo, numa briga entre Charles e Paul num barco em alto mar, não merece qualquer destaque para sua montagem ou encenação; certamente seria muito mais interessante caso Hitchcock a houvesse filmado. Próximo ao final, quando Paul é finalmente assassinado e não sabemos por quem (o descobrimos, junto com o protagonista, porque a notícia é transmitida na televisão), o detetive (interpretado por Maurice Pialat) sugere toda uma hipótese a Charles, acusando-o do assassinato: de acordo com ele, o caderno que o protagonista carregava esse tempo todo, cujo conteúdo consiste essencialmente na narração do filme, seria desde o princípio parte de sua trama assassina; ao confessar ali (e para nós), sua intenção de matar Paul, Charles tornaria-se um assassino óbvio demais para haver, de fato, cometido o crime. A hipótese do detetive parece, assim, uma brincadeira com o espectador e com a premissa auto-evidente do filme.

Contra esta premissa, no entanto, “Que la bête meure” termina um tanto em aberto. Nunca sabemos, ao certo, quem matou Paul. Charles o confessa em uma carta para Hélène e se despacha sozinho para o o mar, condenando a si mesmo, em um gesto que não sabemos se devemos interpretar como de coragem ou covardia.

“Le Boucher” (1970)
No filme seguinte de Chabrol, “Le Boucher” (1970), o diretor retorna à trama policial num universo que evidencia suas afinidades com The Trouble with Harry. Como de costume em seu cinema, a trama se passa em uma cidade pequena, de distâncias andáveis, sendo seus singelos protagonistas o açougueiro e a professora locais, cujos nomes são os mesmos do filme anterior, Paul (interpretado novamente por Jean Yanne) e Hèléne (Stéphane Audran).

O casal se conhece em um casamento, na cena inicial do filme, e a progressão de seu relacionamento quase-amoroso se dará paralelamente a uma série de discretos assassinatos que ocorrem por ali. O romance entre os dois, apesar de sugerido, nunca se concretiza, pois a professora revela que após uma decepção amorosa, tornou-se celibatária. O açougueiro, com um passado sanguinolento nas guerras coloniais e um presente sangrento no açougue é, evidentemente, o assassino. E assim se dá a história de Chabrol, sempre simples, sempre evidente, suas personagens determinadas por suas profissões prosaicas, por seus habitats, de modo quase naturalista, se não fosse seu distanciamento frio e mesmo cômico.

Para o assassino Paul, a carne, o sangue e a violência são elementos do cotidiano, e chega mesmo a presentear Hèléne com um pedaço de carne de cordeiro enrolado como um buquê de flores. A professora recatada mora no mesmo prédio da escola, dormindo no andar acima da sala de aula, como se não existisse para além de sua profissão – seria inconcebível pensar em sexo nesse ambiente inocente e escolar. Cercada de seus carneirinhos, que guia como uma pastora no campo em um passeio da escola pelo bosque, se depara com uma das vítimas do açougueiro; o sangue do cadáver pinga sobre o pão com manteiga de uma das crianças (como sempre, a comida exerce um papel fundamental nos filmes de Chabrol). Próximo ao cadáver, Hèléne encontra um isqueiro, idêntico ao que presenteou Paul anteriormente.

Logo antes, a turma visitava cavernas pré-históricas, onde a professora contava aos alunos sobre os homens das cavernas europeus (os “Cro-Magnons”): “Os instintos, os sentimentos e até a inteligência do Cro-Magnon eram verdadeiramente humanos. A única diferença eram os problemas que enfrentava para subsistir. […] Ele começou a desenhar. Vocês sabem como se chamam os desejos quando não são selvagens? Aspirações. Se Cro-Magnon não tivesse sobrevivido, o mundo em que vivemos não existiria.” A selvageria se encontra no interior da aspiração, como os desenhos pré-históricos preenchem a cavernas rústicas e rugosas (que são as primeiras imagens do filme, nos créditos), e como professora e açougueiro, a bela e a fera, que vivem na mesma pequena cidade.
Como boa professora caridosa que é, Hèléne não denuncia Paul à polícia após encontrar o isqueiro e esconde o objeto, mesmo que a vítima encontrada por ela e as crianças seja a mesma noiva que viram se casar no início do filme – o marido, recém-casado e recém-viúvo, também trabalha na escola e sua aparição desolada em luto interrompe um diálogo entre o açougueiro e a professora. Paul acaba encontrando o isqueiro na casa de Hèléne: agora ele sabe que ela sabe, ou ao menos suspeita, uma vez que ele logo comprou e mostrou a ela um isqueiro idêntico.
Na sequência final, quando a professora acabou de fechar a escola, sua casa, o açougueiro pede para falar com ela, o que ela nega e, assustada, tranca todas as portas. Mas o assassino, afinal, consegue entrar, e a confronta na sala de aula. Após confessar seus crimes, com uma faca na mão, confessa também sua vergonha diante dela, como um aluno que fez besteira, obrigado a ficar na sala depois da aula. Há um fade-out e quando a imagem retorna, revela que Paul se esfaqueou.

Hèléne o leva de carro na longa estrada até um hospital, enquanto o assassino balbucia suas últimas palavras. “O cheiro de sangue é sempre o mesmo. O sangue dos animais e o sangue dos homens. Alguns são mais escuros do que outros, mas todos tem exatamente o mesmo cheiro.” Finalmente no hospital, distinguindo-se apenas sutilmente dos animais, há um último momento de humanidade quando Paul, na maca, pede um beijo a Hèléne e ela o concede. Os médicos entram com o homem no elevador e quando a luz vermelha que indica que este está ocupado se apaga, anunciam à Hèléne a sua morte. Ela vai embora e observa o rio na noite escura, iluminada apenas pelos faróis de seu carro até amanhecer. Ao amanhecer, cortes gradualmente se distanciam da cena, até o carro se tornar um pequeno ponto na paisagem, nos lembrando da pequenez deste filme e desta história, apesar do final trágico.

“Une affaire des femmes” (1988)
Antes da guerra começar, Marie já era uma mulher, e uma mulher pobre. É assim que “Une affaire des femmes” (1988) começa, com o bonde andando, narrando apenas um trecho da vida desta personagem que ultrapassa aquilo que o filme registra, apenas um momento na História, em uma pequena cidade. O filme acompanha Marie (Isabelle Huppert) a partir de um delito que comete, pequeno diante da imensidão da guerra, ínfimo hoje considerando que, desde 1975 na França não é mais considerado um delito. Marie performa um aborto em sua vizinha, e então passará a executá-los regularmente em diversas mulheres que lhe procuram. Sua história, a princípio banal, tornou-se célebre na França por culminar em seu julgamento e sentença à guilhotina, fazendo de Marie uma das últimas vítimas desta pena de morte anacrônica. O anacronismo de tal sentença hiperbólica em pleno século XX é acentuado e justificado pelo governo que a professa, a França de Vichy, submissa ao governo nazista alemão e, sobretudo, aos princípios moralistas do nazi-fascismo.
Como as personagens dos filmes anteriores, Marie é sujeita ao ambiente e condição em que vive. Pobre e com dois filhos pequenos, seu marido está fora, na guerra, e seus breves momentos de diversão parecem ser aqueles em que sai de noite com sua amiga Rachel, uma judia que logo será levada pelos alemães, notícia que Marie recebe com surpresa (afirma não saber que ela era judia) e uma tristeza que parece ser maior do que a princípio demonstra. É neste contexto que performa o primeiro aborto para sua vizinha, a seu pedido, procedimento completamente rústico que o filme demonstra passo a passo: após derreter lascas de sabão na água fervente, Marie deixa essa esfriar um pouco e enche uma bombinha que enfia na mulher deitada no chão da cozinha.
Após o procedimento, pede para ficar com o que sobrou do sabão, e são detalhes como este que vão sutilmente construindo esta personagem, interpretada impecavelmente por Isabelle Huppert – se nos outros filmes de Chabrol nosso engajamento com a narrativa pode demorar a engatar, naqueles com Huppert somos imediatamente fisgados por sua performance. Quando seu marido retorna, por exemplo, não o recebe com ânimo ou carinho; mais parece decepcionada. Os motivos para este desgosto – expresso também no fato de nunca fazer sexo com seu marido, mas fazê-lo com um amante mais adiante no filme – nunca são evidentes, ainda que, nos detalhes, sejam sugeridos em certos momentos, como quando lava suas cuecas com nojo, em aparente ressentimento de sua ocupação como dona de casa e com tudo aquilo que no marido expressa pobreza: ele é sujo, se veste mal, não flerta ou a corteja, como fará seu amante. Marie também demonstra menos afeto em relação a seu filho, a quem chama de algo como “patinho feio”, do que à filha mais nova, mas nunca chega a ser violenta ou cruel com o menino. É possível que este leve desprezo tenha suas raízes neste ressentimento em relação ao marido, mas estas questões nunca ficarão claras no filme, estão apenas ali, como na vida.
É este mesmo tipo de detalhe que veremos mudar gradualmente a medida que Marie vai ascendendo socialmente, ascensão que almeja com todas as forças e para a qual fará o que for preciso: começa a ser paga para realizar abortos clandestinos e eventualmente passa a alugar um dos quartos de sua casa para uma prostituta. Aos poucos, muda suas roupas, penteado, a limpeza de seu apartamento, compra e ganha pequenos luxos em meio a pobreza da guerra: um gramofone, uma geleia. Com o dinheiro que passa a trazer para casa, as relações de poder entre ela e seu marido se invertem, Marie passa de dona de casa à dona da casa e seu marido torna-se cada vez mais ressentido.
As clientes de Marie são apresentadas em poucas cenas elípticas, pequenos antes e depois que expressam tudo aquilo que precisamos saber de suas vidas: mãe e filha andando ao lado da linha do trem na chuva até Marie; uma família onde várias crianças dormem na mesma cama junto a seus pais, em que a esposa, desesperada pela perspectiva de mais uma criança, tenta tomar veneno antes de ir até Marie e, depois, na mesma noite, acaba falecendo por conta do procedimento. Marie encontra todas elas em seu apartamento, na cozinha onde faz os abortos, carregando sua filha bebê no colo, para desconforto das moças e, possivelmente, do espectador. O filme, aliás, é povoado de crianças, mas não há qualquer romantização da maternidade aqui, ter filhos é apenas uma consequência do ato sexual, e neste contexto de guerra e pobreza, é sobretudo um estorvo.

O filme de Chabrol parece se dar, assim, paralelamente a esta vida dotada de um realismo que está nos detalhes, pontuando discretamente um ou outro aspecto, ecoando e ressoando outros. A guerra, a covardia dos franceses, a injustiça da lei, a pobreza, a desigualdade entre gêneros, o antissemitismo, as violências pequenas e grandes: tudo está ali, junto e misturado, não tanto numa bagunça quanto numa sinfonia discreta, que apesar de tantas distrações sempre se atém à Marie, sendo o rosto de Huppert em suas múltiplas e, novamente, sutis expressões, o denominador comum do filme.

Como já dizia Rohmer, “as personagens de Chabrol são interessantes independentemente do fato de que são filmadas.” [1] Marie é uma figura absolutamente opaca que a câmera acompanha a todo momento de perto, mas (quase) nunca consegue penetrar. Quando recebe a notícia da deportação de sua amiga judia, por exemplo, Marie chora um pouco e o caso parece acabar aí. No entanto, bem mais adiante no filme, uma brevíssima imagem de Rachel dançando retornará em um lampejo de memória enquanto Marie toma café, única intervenção não linear na narrativa, único momento em que entrevemos por uma fresta aquilo que acontece dentro de sua cabeça – de modo semelhante àquele em que seu filho, não conseguindo abrir a porta trancada de sua cozinha, olha pelo buraco da fechadura e entrevê uma mulher de pernas abertas, sem compreender de fato o que está acontecendo.

Também seu filho é um personagem intrigante, que parece por vezes compartilhar o protagonismo com a mãe no filme de modo sorrateiro. A câmera com frequência se volta a ele, mesmo que apenas para registrar sua presença ou expressão neutra ao lado da mãe. O menino triste parece sempre buscar a atenção desta e a estimá-la mesmo diante das pequenas rejeições que sofre. Novamente, temos a sensação de que há muito por trás desta personagem, ao que nunca teremos acesso: há um momento no início do filme em que o menino está chorando na cama e quando sua mãe lhe pergunta o motivo, ele mesmo diz estar triste, mas não saber porquê.
Um dia, após assoprar uma vela de um bolo de aniversário, ele fala que desejou tornar-se um carrasco quando crescer. “Porque eles usam aquele capuz e porque ninguém sabe quem eles são”, ele justifica. O desejo, ao mesmo tempo em que revela um pouco de seus sentimentos, de sua tristeza, irá ressoar com o destino trágico de sua própria mãe condenada mais adiante. Pequenos ecos como esse irão se acumulando nessa teia que consiste “Une affaire des femmes”, que se revela cada vez mais entremeada. Outro dia, Marie e as crianças acompanham uma festividade da vila organizada pelos alemães: esta consiste em vendar alguém que deve cortar a cabeça de um ganso vivo, dependurado. O ritual se tornará ainda mais cruel no final do filme, quando percebemos que a cena era um prelúdio para aquilo que aconteceria literalmente com a própria Marie, decapitada na cena final.
Visitando Paris pela primeira vez durante seu aprisionamento (por uma fresta da janela do camburão), o sonho de Marie de virar cantora, que parecia um pouco mais próximo com sua ascensão social – ela começa a fazer aulas de canto – agora nunca pareceu tão distante. O filme não sente pena de Marie, não deixa de mostrar seus piores momentos, mas tão próximo ao fim se dispõe a um único gesto de evidente empatia: não se distancia da personagem quando ela está prestes a morrer, a acompanha até o fim. Parece pouco, mas é mais do que faz seu advogado, que manda um estagiário em seu lugar, enquanto discursa sobre a covardia dos franceses com um colega no parque. “Isso é uma hipocrisia”, ele comenta, se referindo ao julgamento de Marie, “e as crianças judias?”.

Diante da morte, Marie não mostra qualquer sinal de arrependimento por seus crimes, apenas pavor. Em um gesto de raiva, arranca o medalhão católico que carregava ao redor do pescoço, que lhe foi presenteado por outra prisioneira; ela não se ilude com a presença divina ou com promessas para após a morte; está sozinha aqui e agora, no nosso mundo. Em outro instante impenetrável do filme, vemos o olhar seco de uma freira que observa a prisioneira indo rumo a sua sentença. Após a guilhotina abaixar – não vemos a decapitação em si, a do ganso foi o suficiente – uma frase final aparece na tela: “tenham pena dos filhos daqueles que condenamos”. O medo de Marie diante da morte iminente é tão distante da covardia hipócrita sobre a qual os homens discutiam no parque quanto são seus crimes frente a tudo que aconteceu na guerra, e o filme de Chabrol é um apelo pelo mundo terreno e humano daqueles que já nasceram.
Paula Mermelstein
Notas:
[1] Na entrevista disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/foco-o-antigo-e-o-novo-entrevista-com-eric-rohmer/.