Continuidade e oposição: “Bande à part” (1964)

Sétimo longa-metragem realizado por Jean-Luc Godard, “Bande à part” (1964) tem o seu argumento tomado do romance policial “Fool’s Gold”, de Doloris Hitchens. Como em outros casos em sua filmografia, esta origem literária não compreende um fato determinante para o seu filme, que parte de um evento dramático ali presente para a construção de uma nova narrativa – neste caso, o roubo de uma grande quantia de dinheiro presente em um casarão por uma dupla de bandidos. O paralelo com o filme policial B, entretanto, é desde o princípio bastante evidente, tratando-se de um trabalho mais sutil em sua apropriação dos gêneros cinematográficos do que os que Godard realizará logo a seguir, como “Alphaville” (1965), “Pierrot Le Fou” (1965) ou “Made In USA” (1966), em que sua intervenção sobre os materiais se dá de maneira mais imponente, disruptiva e desorientadora ao seu espectador.

Ainda assim, é possível vislumbrar a sua irreverência perante a um gênero tradicional, embora menos nobre. Godard toma o gênero emprestado porque lhe oferece de uma só vez todos os elementos que lhe servem como pretexto narrativo, apoiando-se na simplicidade de seu enredo básico e explorando as estruturas previamente fornecidas para que possa operar um novo trabalho formal, o fazendo seja a partir das suas imagens, filmadas à maneira de um noticiário cinematográfico, de seu uso inventivo da montagem ou, mais particularmente, dos desvios que introduz nas ações e nos comportamentos de suas personagens. É Godard que impõe uma distância em relação a estes filmes clássicos, por um gesto radical de superação que imediatamente os torna anacrônicos, efetuando a sua continuidade por uma oposição. Afinal, trabalhando em condições distintas, Godard está ausente de compromissos comerciais com os estúdios, sob uma liberdade que utiliza a favor da colagem, partindo justamente da convenção e dos clichês como um pretexto para produzir novos efeitos.

Os créditos iniciais demonstram, desde o princípio, a originalidade e inovação do filme, primeiro em uma rápida montagem paralela dos três primeiros planos de seus protagonistas (em que os rostos rigorosamente ocupam os mesmos espaços no quadro), sobre a qual ocorre a formação letra-a-letra do título “Bande à part”, acompanhado de uma música divertida, com a qual rompe logo a seguir, na introdução do som direto e bruto dos ruídos de trânsito, dispondo os créditos da equipe sobre o registro do espaço cênico suburbano onde se desenvolverá a maior parte da narrativa.

Em meio aos planos que descrevem o movimento da região, um corte faz a câmera saltar para o que poderia ser o interior de um dos carros que vemos, no qual haverá dois homens, logo identificados como Arthur (Claude Brasseur) e Franz (Samy Frei). Enquanto avançam, Franz mostra ao companheiro uma menina que passa na rua sobre uma bicicleta, Odile (Anna Karina), a quem conheceu a duas semanas e deve usar como “isca” para o próximo golpe que irão efetuar, no casarão onde ela mora, o qual observarão descendo do carro e se postando na margem oposta do rio que divide a paisagem bucólica em que a casa se encontra.

Franz (Samy Frei) e Arthur (Claude Brasseur)

Durante a paragem, Arthur descreve o seu interesse por Odile (“irei tê-la quando desejar”), após Franz afirmar já ter “acariciado o joelho” dela, estabelecendo uma tensão entre os dois que permanecerá latente ao longo de todo o filme. Ambos devem encontrá-la no curso de inglês, onde Franz a conheceu. Chegando ao local, a voz off de um narrador, interpretado pelo próprio Godard, intervém direcionando-se diretamente aos espectadores e resumindo de maneira lacônica, “para aqueles que chegaram atrasados”, o conteúdo desta narrativa, que se apresentará ao longo de três dias, após abrir-se de maneira elíptica: “Três semanas antes. Um monte de dinheiro. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica.”

Na sala de aula, a leitura de um longo trecho de “Romeu e Julieta” de Shakespeare, a propósito de um ditado que os alunos deverão traduzir, servirá de fundo para as primeiras trocas de olhares entre Arthur e Odile, num flerte que se dá também pela troca de bilhetinhos, que reforçam a infantilização dessa pequena escolinha – já indicada pela própria figura de Anna Karina, que interpreta uma personagem muito mais jovem, de comportamento abobalhado que causa estranheza frente à figura da atriz. Ao fim, Odile se deixa seduzir por Arthur, enquanto Franz observa a tudo com o olhar entristecido, vendo escapar de si a garota pela qual havia se apaixonado.

Após apresentar-se como um filme de ação, “Bande à Part” se transforma na história de um triângulo amoroso no qual dois homens disputam a mesma mulher. Temos bem determinados aqui os tipos diferentes que se apresentam nessa narrativa: o bandido bom e o ruim, o obstinado e o sentimental, se associam à jovem ingênua e angustiada (“Eu não gosto de nada!”, ela diz em determinado momento), que se dedica durante a maior parte do tempo ao homem “errado”.

Odile (Anna Karina)

A intervenção decisiva de Godard sobre o gênero se dá pela inclusão de todos os cacoetes que em nada contribuem explicitamente com qualquer progressão narrativa , mas que evidenciam as relações íntimas de suas personagens e o que move propriamente as suas ações, mais do que a apresentação das ações dramáticas de fato: a primeira coisa que Arthur roubará da casa é um livro que encontra em uma prateleira, enquanto Franz em diversos momentos brinca ser um piloto de Indianápolis. Não há uma postura de seriedade de suas personagens, que se comportam a maior parte do tempo de maneira cômica: são maleáveis, agindo de maneira dinâmica e, muitas vezes, irracional – sob certo caráter de desenho animado, reforçado pelo plano geral com que os filma, abertura que dá conta de suas ações e do espaço [1].

Nesta operação, também a estrutura do filme se modifica, em uma abstração narrativa em que o crime passa apenas a existir de maneira secundária: suas personagens frequentam cafés, dançam, leem jornais e, para passar o tempo até a hora do roubo, decidem bater o recorde de “Jimmy Johnson de San Francisco”, como o homem que visitou mais rapidamente o Museu do Louvre, o qual atravessam correndo, momento em que temos a impressão de ver as suas personagens soltas pelo mundo, fugindo dos que tentam impedi-los e divertindo-se com o espanto dos visitantes reais ali presentes [2].

Afinal, para que seu filme tenha noventa minutos, Godard também deve fazer o tempo passar, incorporando novos elementos que não tratam de eventos dramáticos centrais à narrativa, resumida ao seu substrato mais superficial e operatório (o golpe e o romance), mas pelos desvios que nela são feitos. É o caso dos fait divers criminais que Arthur e Franz lêem nos jornais, enquanto esperam por Odile, que é vista em uma montagem paralela numa peripécia que envolve a subida de encostas escorregadias, o atravessamento do rio e até mesmo a alimentação a um tigre de circo, tudo posto para descrever o ambiente ao seu redor, fazendo expandir o universo pelo destaque ao cenário onde acontecerá o crime.

Neste sentido, as cenas que acontecem em becos, escadas, banheiros, pequenos cafés ou no metrô, refletem a própria condição destas personagens, presentes apenas em espaços discretos, ocultos: “Já estamos fora da cidade?”, Arthur e Franz se perguntam em dado momento, frente ao ambiente bucólico próximo ao casarão – atrás de uma “tela de árvores”, como descreve o Godard narrador, a propósito do cenário pouco povoado e invernal, distinto da Paris movimentada de seus filmes mais conhecidos.

Se, assim, o título “Bande à part”, em um primeiro momento, se refira a este grupo marginalizado, sem laços exteriores na história, num lugar distante, sua significação é complexificada a partir de um trocadilho com o experimento de Godard sobre os usos antagônicos das “bandas” de imagens e sons. Cortando para um evento que ocorre ao redor da ação principal, enquanto o som desta continua, o cineasta mantém apenas o essencial do que está sendo comunicado e já providencia um novo motivo visual, fazendo o filme progredir. Em seu dinamismo, som e imagem não têm a necessidade de se repetir, mas apenas se convergem, tocando-se por vezes [3].

De modo semelhante, sua voz off apenas se introduz para complementar o que a imagem não mostra, chegando ele mesmo a se recusar a descrever as emoções de suas personagens, para que “as imagens falem por si mesmas”. Mais tarde, quando diz ser a hora certa para isso, o narrador o fará, em meio à famosa cena de dança das personagens no café, excluindo da trilha sonora a música à qual dançam durante os intervalos em que a voz é ouvida, detendo-se em cada personagem. O mesmo recurso será explorado também neste café quando, após uma discussão, as personagens farão um “minuto de silêncio”, enquanto encaram umas às outras em uma nova brincadeira não apenas entre si, mas do próprio filme, ao que Godard exclui completamente o registro sonoro durante o período, em uma suspensão deliberada e absoluta das ações (e do elemento sonoro) no filme.

Assim que chegam ao café, Franz senta-se ao lado de Odile, no sofá encostado à parede, enquanto Arthur se coloca do outro lado da mesa. As bebidas são trazidas, distribuídas ao contrário daquelas que o haviam pedido, a primeira das muitas reorganizações que acontecerão em torno do espaço restrito desta mesa e sob a duração de um único plano, enquanto as personagens masculinas se movimentam em suas consecutivas abordagens à Odile. Ao cair da noite, os dois homens decidem quem ficará com Odile através de um lance de cara ou coroa, ao que ela escolhe por Arthur antes mesmo de saber o resultado, partindo com ele em passeio. Descem “ao centro da terra”, como diz a voz de Godard; no metrô, ela pergunta se ele teve muitas namoradas, ao que Arthur se cala: Odile, de fato, está apaixonada e, de maneira ingênua, querendo se casar. Ele, evidentemente, não quer nada além de que ela “entregue seus seios e coxas”, o que a jovem acredita ser o casamento. Odile e Arthur dormem juntos. A garota vai embora. Arthur é coagido a trair o seu companheiro, após revelar o golpe ao seu tio. Antecipa o plano junto de Franz, partindo na mesma noite.

Odile tem medo de Franz, que lhe “parece sempre tenso e cruel”: Franz gosta de Odile, mas não o expressa. Arthur apenas quer tê-la e faz o necessário para conseguir a sua atenção. Tendo de esperar até a noite para praticarem o golpe (“como na tradição dos filmes B ruins”, diz o narrador), decidem vagar pelas ruas de Paris, à beira do Rio Sena, onde Franz compra um livro para presentear a garota, o romance de Raymond Queneau que carrega o seu nome, “Odile”. A seguir, o golpe não dá certo, pois Odile não o preparou como foi ordenada. Arthur bate nela e Franz a defende. Ambos percebem que o crime foi previsto e decidem voltar na próxima noite. “Franz teria dado tudo para consolar Odile”, diz Godard.

No dia seguinte, Arthur finalmente encontra o dinheiro no casarão, um movimento panorâmico parte da descoberta para revelar a aproximação do tio, de arma em punho apontada ele. Atira por quatro vezes, enquanto Arthur segue caminhando em sua direção, resistente aos tiros e também com a arma na mão, até que também atire, uma única vez, para que o adversário caia. Se, no princípio do filme, Arthur cai, jogando-se ao chão e fingindo agonizar até a morte, em uma brincadeira com Franz, esta atuação anterior se tornará a prefiguração da realidade vista aqui, pois após rodopiar por alguns momentos, sob gestos ainda mais hiperbólicos que os que havia simulado antes, Arthur finalmente tomba sob uma árvore, ao lado do tio.

Sua morte estabelece definitivamente a relação entre Odile e Franz, que fogem levando parte do dinheiro que, nos é revelado, era “roubado do governo”. Em um dos planos finais, os vemos a bordo de um navio prestes a viajar para a América do Sul, clássico clichê de refúgio de bandidos, sentados com um cachorrinho ao fundo, imagem terna, de conciliação final. Tal como Godard havia introduzido a sua narrativa, ele também se despede, anunciando que “minha história termina aqui, como uma novela barata”, sob a promessa de “novas aventuras de Franz e Odile”, em Cinemascope e Technicolor – justo o contrário do que vimos, em uma nova oposição, característica de quem surpreende a si mesmo a cada novo trabalho.

Matheus Zenom

Notas:

[1] Comportamento cômico que se pode atribuir à influência de Frank Tashlin, notório diretor de animações e longas-metragens, onipresente nas listas de “melhores do ano” de Godard em sua época de Cahiers du Cinéma.

[2] Este breve momento da corrida, entretanto, também trará suas repercussões, de maneira literal em um filme “The Dreamers” (2003) de Bernardo Bertolucci ou, indiretamente, em uma passagem como a sequência final de “Barão Olavo, o Horrível” (1970) de Júlio Bressane, conforme descrito aqui: https://limiterevista.com/2020/12/29/dramaturgia-de-barao-olavo-o-horrivel/

[3] Este procedimento, que se inicia com maior gravidade em sua filmografia a partir deste filme, chegará a um paroxismo nos anos seguintes, primeiro com “Deux ou trois choses” (1967) e, mais tarde, com seu retorno aos longa-metragens nos anos 80, como “Prénom: Carmen” (1983)ou “Je Vous Salue, Marie” (1985), filmes em que também dá conta de uma progressiva abstração narrativa, constituirá uma apropriação decisiva que particulariza a partir das ideias de Robert Bresson.