Em Sem Essa, Aranha (1970), de Rogério Sganzerla, há um sem número de maneirismos, explosões de falas e gestos, todos de uma ordem caótica e desregrada, que, na configuração primordial da estrutura do filme – um punhado de longos planos-sequência –parecem não conseguir estabelecer diálogos concretos uns com os outros no sentido de uma progressão narrativa. Jamais um defeito, mas sim uma ideia extremamente bem lapidada, essa noção de caos é justamente o que interessa a Sganzerla, num filme que se manifesta, a todo momento, como um singelo grito de ode ao Brasil e uma resistência ao processo da descaracterização identitária do país.
Realizado dentro da extremamente prolífica produção da Belair [1], comandada em parceria por Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, o longa-metragem é uma obra chave do cinema independente brasileiro (comentário que poderia se estender para os outros filmes feitos pela produtora) pela forma rica com a qual a inventividade de seu realizador se manifesta. Entremos na questão da narrativa, ainda que seja até difícil falar de uma propriamente dita: nós acompanhamos Aranha, interpretado por José Loredo, personagem cujos valores morais se demonstram nulos pela revelação de seus diversos esquemas, golpes etc., e suas duas mulheres – personagens sem nome, vividas por Helena Ignez e Maria Gladys – perambulando por lugares remotos do Brasil enquanto regurgitam frases escatológicas. Aranha, portando um trejeito de malandro inigualável, faz uma infinidade de promessas messiânicas que resolveriam todas as mazelas do país: encerraria a fome, a miséria e a precariedade na educação e outros problemas, tudo feito através de um suposto “capital estrangeiro”.
Se por parte do Cinema Novo houve um desejo pulsante de redefinir o que seria uma estética brasileira e lançar os caminhos de uma forma verdadeiramente revolucionária, essa vontade é um aspecto facilmente identificável, também, no dito Cinema Marginal em que Sganzerla se criou. Mas, ao contrário do que os cinemanovistas fizeram nos anos centrais ao seu respectivo movimento, no qual adotam um controle de cena que, na falta de palavra melhor, podemos chamar de “rígido”, Sganzerla toma a via inversa, distanciando-se até mesmo de um projeto anterior de si próprio. Sem essa, Aranha não vai dar continuidade ao choque de imagens outrora experimentado em O Bandido da Luz Vermelha (1968), seu longa-metragem de estreia, mas sim isolar um elemento muito particular da estética ali trabalhada – o uso do plano-sequência com câmera na mão – e fazer dele o conceito basilar deste filme de 1970. Todas as cenas são filmadas assim, acompanhando principalmente as três personagens citadas anteriormente, estejam elas fazendo qualquer coisa de relevante (o que seria, de fato, relevante num filme como esse?) ou não. Muitas vezes estão apenas gritando, reclamando do país ou forçando qualquer ato de caráter altamente grotesco – o exemplo mais célebre disso sendo Helena Ignez forçando o vômito logo no início do filme. É, portanto, uma construção de mise-en-scène que busca seu impacto pelo constante conflito de elementos que se manifestam através de uma câmera que não cessa de vasculhar seus ambientes para colocar em plano uma nova questão, seja ela uma declaração, um ato de irreverência ou apenas a caminhada de um personagem entre um espaço e outro, essa também sempre carregada de intensidade. Surgem daí o caos e a desordem, paradoxalmente organizados e coreografados [2] de modo singular.

O tipo de caracterização mais radical das personagens do filme observado aqui – que Estevão Garcia descreve como desprovida de construções psicológicas e que faz delas seres que vivem unicamente o presente, com uma subjetividade vazia [3] – parece refletir também no modo com o qual ele encara seu momento histórico. Que essas personagens apenas reclamem uma problemática da sociedade, mas sem jamais colocar e contextualizar propriamente nomes ou situações, reflete uma ideia que parece constante no filme: a de um presente que só reconhece a si mesmo, que está em limbo, sem oferecer saída e vislumbre para o país. Tem-se aí, portanto, “[…] a arte do imediato e da pura aparência”[4]. Enquanto houve, no Cinema Novo, uma disposição a indicar os caminhos de revolução, no Cinema Marginal isso parece se esgotar. A forma fílmica aponta, sim, a uma resistência, mas devido ao seu universo representado de forma totalmente alegórica, é uma resistência que vai se dar pelo caminho autorreflexivo da arte, da insistência de sua realização [5], e não pela tomada de uma ação social, política ou de qualquer outro cunho propriamente dita.
Algo central para o modo como o filme se manifesta é a ideia de um “anti-Brasil”, em referência ao momento tenebroso que o país atravessava desde 1964. Ela se dá pelas personagens, que diversas vezes falam de “voltar ao Brasil”, ainda que aparentemente lá já estejam, ou quando buscam encontrar o país no mapa-mundi, para então constatar que ele só pode estar fora dele; um país “fora do mapa”. Essas mulheres, outrora filiadas ao picareta Aranha, se rebelam ao final do filme, assassinam-o e tomam um caminho sem rumo com o artista Luiz Gonzaga e seu grupo musical, justamente após o músico falar do tal momento “anti-Brasil” e demonstrar preocupação por não saber no que isso resultaria. Esse gesto é um grito de Sganzerla rumo à reconciliação do país com sua cultura e identidade popular, é o “anti-Brasil” rechaçado do modo mais brasileiro possível, num momento em que o filme se distancia de sua configuração de narrativa fragmentada e passa a estabelecer um laço efetivo entre diferentes partes – a roda de música (localizada perto do início do filme) e o final, levando desse 1º para o 2º momento, respectivamente, a ideia anteriormente mostrada do escárnio pra cima de Gonzaga (figura central e quase apoteótica da roda) e os populares que o cercavam. Se a personagem de Ignez ficara, durante um longo período do filme (quando ainda sob a tutela de Aranha), gritando e caçoando daqueles que participavam da roda de canto junto a Gonzaga, repetindo frases como “paíszinho de terceiro mundo” ou “sistema solar é um lixo”, enquanto esses solenemente a ignoravam, assassinar a personagem de José Loredo e tomar o caminho dos populares é o modo de virar às costas a enorme mentira elitista que supostamente salvaria o povo e que estava encarnada na figura desse homem, num ato que, contrário à essa dispersão narrativa do filme, exala também uma certa ideia de redenção para as personagens.

Ainda que não contextualize o Brasil em nenhum momento histórico (afinal, novamente: toda a existência daquele universo representado é puramente alegórica), basta olharmos para o ano da realização do filme – meados de 1970 – e notar que toda essa algazarra de mise-en-scène soa também como uma resposta ao que acontecia ao país, na época sob o comando militar. Resgatando a temática machadiana da afinidade diabólica contida em A Igreja do Diabo eexpondo-a através da fala das personagens, tais como a de que o Brasil teria uma “afinidade com o diabo”, que “ele sempre foi com a cara do país” e de que era preciso “pecar ao máximo” para resolver os problemas nacionais, Sganzerla olha, em um só gesto, para o passado (o conto de Machado de Assis) e o presente do país. Ora, se foi a tal Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964, que demonstrou um certo apreço popular de uma parcela da população com os ideais conservadores que seriam colocados em jogo pela ditadura militar que assumiria logo em seguida, Sganzerla raciocina da forma mais intuitiva possível (e, talvez, mais condizente com sua lógica de esculhambação): de que, para livrar o país de uma situação daquele tamanho, só mesmo assumindo a antítese dos valores defendidos por aqueles que bancaram a subida conservadora ao poder. Aí temos pouca preocupação com implicações espirituais e questões de crença; se trata mesmo de evidenciar nesses dois lados os modelos de comportamento antagônicos presentes e postular a favor de um deles: a saber, o da rebeldia, da abjeção, como fica bem claro no plano final do filme, com o pé de uma das atrizes roçando em um crucifixo. Rogério Sganzerla, então, ecoa totalmente Machado: “Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo”. [6]

Sem Essa, Aranha é um filme de gigante ousadia estética, fruto de uma produção independente, que buscou em formas bastante radicais – dada a saturação sentida pelo cineasta dos modelos cênicos anteriores – falar do seu tempo, do Brasil a ele contemporâneo, sem propriamente citá-lo em qualquer momento (de modo similar ao que fez Glauber Rocha em Terra em Transe, situando sua narrativa num país ficcional que espelharia suas insatisfações com a política do momento). E ainda que não tenha conseguido causar o impacto que poderia no momento de sua realização por conta da censura que impediu sua exibição em salas de cinema (e motivou o exílio de Sganzerla, Bressane e cia.), permanece uma obra de entendimento preciso sobre o país e de seu complexo período histórico.
Muito é sabido de uma certa obsessão que Rogério Sganzerla tinha com a ideia da chanchada no cinema brasileiro, tendo ele diversas vezes afirmado se inspirar nelas para realizar alguns de seus filmes: “Estou buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde a chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior do mundo”. Se essa inquietação culmina em Carnaval na Lama (1970), é difícil saber; trata-se de um filme perdido (com um único trecho disponível que, claro, dá pouca ideia do todo) e a associação é mais sugestiva por conta de seu título, alusivo (em tom de deboche) aos dos filmes carnavalescos. O oceano de diferença entre chanchadas e Sganzerla, então, se dá evidentemente no nível do resultado, de onde se consegue chegar a partir da manipulação dessas formas; do que representa, por exemplo, um número musical de um filme carnavalesco e a sequência de Luiz Gonzaga tocando “Boca de Forno” neste filme e do quanto de “popular” se manifesta em ambos os casos. Sem essa, Aranha (e Copacabana, Mon Amour (1970) também entra na equação), através de seus exageros gestuais, seus momentos de grito, de sua combinação de música & dança, de uma natureza essencialmente anti-narrativa, enfim, de todo um repertório antes visto nas chanchadas e que aqui é levado a um limite discrepante, é um exercício em direção ao pleno cumprimento de sua fala, ao menos em nível das similaridades compartilhadas nesses aspectos constituintes da forma rústica (talvez venha daí sua noção de “pior” atribuída às chanchadas e que ele “busca” dar sequência) de ambos os projetos de cinema. É aí, na síntese de um material muitas vezes tido como “disperso”, que se pode atestar a genialidade de Sganzerla.
Davi Braga


NOTAS
[1] A Belair foi uma produtora de cinema independente, que realizou 6 filmes em 3 meses no ano de 1970, utilizando-se de recursos próprios, equipes reduzidas e constantemente reaproveitadas.
[2] Entrevista com Helena Ignez. In: Contracampo, ed. 38, 2002. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/38/entrevistahelena.htm
[3] GARCIA, Estevão. Sem Essa, Aranha. In: Contracampo ed. 58, 2004. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/58/semessaaranha.htm
[4] OLIVEIRA, Rodrigo Cássio. A Síntese Subversiva de Rogério Sganzerla. In: FOCO – Revista de Cinema, 2016-2021. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/jornalsganzerlarodrigo.htm
[5] Nesse sentido, é interessante voltar a pensar na já citada produtora Belair e a produção prolífica da época.
[6] ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. In: Histórias sem Data. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000195.pdf