Os trabalhos mais conhecidos de George Brecht, proeminente artista conceitual americano associado ao Fluxus de George Maciunas, são as suas chamadas “event-scores” (“partituras de evento”), realizadas entre 1959 e 1963: “instruções” escritas em pequenas cartelas, cada uma delas dispondo de um título e uma proposição de ação a ser performada, a seguir, pelo seu interlocutor. A priori, estes cartões eram enviados individualmente a seus conhecidos e alguns deles recebem mesmo uma dedicatória específica para seu interlocutor, impondo um ato de leitura contingente e particularizado. Mais tarde, reproduções de todos eles serão reunidas e comercializadas em uma caixa intitulada “Water Yam”.

Muito do que nessas cartelas se apresenta (bem como em outros trabalhos do Fluxus) é inspirado pela experiência dadaísta do início do século e dialoga estritamente com as propostas “performáticas” de John Cage, amigo de Brecht, a partir do qual ele formulou e desenvolveu o conceito de suas “event-scores”. Esta afinidade se expressa em partituras como “Instruction: turn on a radio”, em que há um aspecto musical fragmentário, tomado do som aleatório que se emite pelo rádio, como efeito imediato do ligar e desligar do aparelho. Em outras cartelas, se impõe a destituição das funções utilitárias de determinados objetos associados à prática “performática”, como em “Flute Solo: disassembling: assembling”, em que, ao invés de se tocar a flauta, se indicam os atos de desmontá-la e montá-la novamente, ignorando completamente de sua função como instrumento musical. Algo semelhante acontece em “Piano Piece, 1962: a vase of flowers on(to) a piano”, que trata apenas de usar um piano como apoio para o vaso de plantas, tomando-o apenas como móvel doméstico, como superfície de suporte.

Ainda que a maioria das “event-scores” tenha sido escrita pensando em levá-las a fundo como performance, estas cartelas possuem um valor particular pela linguagem que nelas se concentra e que ressalta também o seu lado conceitual, para além de suas características simplesmente performáticas. Neste mesmo “Flute Solo”, por exemplo, há um tensionamento entre o sentido do título da cartela, diretamente associado a uma partitura convencional, com a indicação que vem logo a seguir, gerando uma completa inversão de expectativas ao sugerir este gesto sem qualquer tipo de finalidade.

Algumas destas cartelas põem em questão a própria ideia de instrução da performance, como em “Impossible Effort”, em que apenas “faça 1” e “faça 2” se apresentam, sem nada que estes números indiquem especificamente, assim tornando o “esforço impossível” justamente pela imensa abertura de possibilidades de ação que ali se dispõem, ausência de delimitações que dificulta qualquer tomada de qualquer atitude. Aí opera também o senso de humor de George Brecht: “Event: pulse start: pulse stop” remete à própria ideia da circulação sanguínea e de estar vivo, dialogando com “Two Approximations:(: obituary:)”, que, pela única apresentação da palavra “obituário”, sugere a “aproximação” entre datas de nascimento e morte. Estas “instruções”, naturalmente desempenhadas sem qualquer tipo de esforço que o seu interlocutor precise ter, evidenciam um caráter essencialmente irônico destas cartelas em relação a tomada de ação em si e representam muito bem o que nelas há de lúdico e cotidiano.

A impossibilidade do “evento” proposto se aprofunda em outros casos, como em “Six Exhibits”, em que se subverte a ideia da sala de exposição, tomando-a não como suporte para outras obras, mas como as obras em si, pela dissociação de cada um dos seus seis elementos (o teto, as quatro paredes e o chão). Esta ideia ganha continuidade em “Word Event”, em que se pretende criar um evento “da palavra”, no singular, no qual a única que se dispõe, efetivamente, a seguir, é “saída”: assim se apresenta um espaço negativo, vazio, em que se entra apenas para sair, como se somente uma placa com esta indicação ali houvesse, apontando, no limite, a uma negação da materialização do objeto artístico e do espaço de exibição em si.

De fato, este tratamento irônico à possibilidade de performance está em “eventos” em que não apenas a ação é totalmente impossível, como é, de fato, absurda a ideia de sua proposição. “Keyhole: through either side” descreve a condição de um objeto sem qualquer tipo de ação humana que possa ser desempenhada a partir dele. “Mirror: reflecting: reflecting” sugere continuidade da ação de reflexão do espelho, evidenciando a sua existência e propondo que este objeto ordinário desempenha por si mesmo esta “ação”, como se ela não fosse simplesmente uma condição inerente a sua existência material.

A partir disto, há algumas cartelas que destacam não exatamente uma ação, mas uma apresentação de objetos domésticos que denotam também o seu processo de composição como pequenas observações tomadas no dia-a-dia. “Sink: on a white sink: toothbrushes: black soap” é como tão simplesmente o registro de uma imagem, um instantâneo fotográfico que mostra a oposição entre a pia branca e o sabão negro, semelhante à de “suitcase: black suitcase: white objects”. Em “3 Table and Chair Events”, três ações ordinárias neste espaço doméstico, em que a leitura de um jornal, um jogo e a louça disposta para refeição são dispostos. “Table: on a white table: glasses, a puzzle: and: (having to do with smoking)” trata novamente de objetos domésticos, abrindo ainda a margem de imprecisão para que o leitor seja capaz ele mesmo de definir que objeto que “tem a ver com fumar” pode estar ali presente junto, completando essa composição.

Assim é que estas proposições se tornam mais direcionadas a uma projeção do olhar, sem que se tenha de agir, necessariamente. Em “Smoke: where it seems to come from: where it seems to go to” se indica o acompanhamento do movimento desta fumaça que se desloca em um ambiente. Isto se desdobra também em “Three Lamp Events”, em que se observa um movimento nas mudanças entre estas três lâmpadas, a primeira que, de acesa, se apaga; a terceira que, de apagada, se acende; e a segunda, indicada apenas como “lâmpada”, como se tratasse de apenas destacar o objeto, mantendo uma mesma aparência, sem tomada de ação. “Three Windows” terá estrutura semelhante, mas já complexificada, apontando uma janela que se fecha e outra que se abre, restando uma terceira janela omissa neste texto, na qual (a sugestão leva a pensar) se coloca o espectador que observa as outras duas, implicando um olhar diretamente atuante como elemento centralizador destas relações. Se em “Word Event” há um “espaço negativo”, em “Three Window Events” ele definitivamente é positivo, pois enquanto o primeiro representa a pura impossibilidade de realização, no segundo ela é possibilitada exatamente pela noção imagética que o ponto-de-vista proposto oferece.

Sendo estas cartelas pequenos objetos sem um valor material destacado, cuja expressão se define de modo essencialmente conceitual, é no jogo presente em sua própria estrutura de linguagem, em sua inversão e laconismo, bem como nas possibilidades de projeção que elas oferecem, que estes eventos são “realizados”. Assim, em todos estes trabalhos se manifesta uma espécie de moldura pela eleição de um objeto de acesso cotidiano em comum entre Brecht e seu interlocutor (seja ele material ou projetado, como em “Three Windows”), partindo de uma dimensão espacial deliberadamente apartada entre ambos para aproximar-se através desta possibilidade de identificação através do texto, em seu aspecto de cartão-postal, dependente da necessidade de participação ativa de seu interlocutor , que lhe completa o sentido e a comunicação.
Matheus Zenom