Alguns se recordam hoje da figura de Franz Eichhorn. Certa ala da cinefilia se lembra das suas realizações no cinema brasileiro, a chanchada Treze Cadeiras e os inúmeros filmes de aventura. Outros ressaltam seu papel-chave para atualizar o maquinário cinematográfico nacional, sendo um dos pioneiros do som-direto e fundador da Eurobrás, empresa que até hoje representa o grupo Arriflex no Brasil. Poucos, ainda, lembram-se de uma tímida (mas consistente) citação de seu nome no texto fundamental do macmahonismo, Sobre uma Arte Ignorada. Na ocasião, Michel Mourlet igualava seu filme Mundo Estranho ao patamar de realizações como as dos maiores cineastas da época.
Indubitavelmente, este grupo dos que hoje ouviram falar de seu nome é muito pequeno. Mais raros ainda são os que viram seus filmes, pois somente três são acessíveis. Outras duas películas existem em cópias isoladas na Europa ou, no Brasil, prestes a serem deterioradas de modo irreversível. Das realizações restantes, pouco se tem notícia: de três sabe-se o nome e delas temos alguns cartazes ou fotos, mas de outras não há qualquer catalogação. O cinema de Franz Eichhorn é, assim, uma espécie de lenda, de tesouro perdido cuja caça é muito parecida com as aventuras que o cineasta teve ao longo da vida. O intuito de nosso texto é, neste sentido, restaurar parte do incompleto quebra-cabeça que envolve sua vida, sua obra e onde ambas se cruzam.
O marco fundamental de seu cinema surgiu involuntariamente: Franz e seu irmão Edgard nasceram em Ansbach, na Alemanha, e naquela localidade moravam quando se formaram em Direito e Medicina, respectivamente. Recém-graduados em 1929, foram cooptados por uma prima, Ruth, e seu esposo Arthur Heye para uma viagem à Amazônia. Heye era parte da equipe de August Brückner, fotógrafo que havia se aventurado no Brasil em 1925 para filmar Urwelt im Urwald, documentário da UFA dirigido por Adolf von Dungern que anunciava o progressivo interesse alemão em filmar e conhecer as terras amazônicas.
Neste contexto, os irmãos Eichhorn acabaram por se introduzir nos projetos de Brückner por intermédio de Arthur Heye. Chegaram inclusive a produzir um filme do diretor, Urwaldsymphonie, filmado durante a estada no Brasil, sendo esta a estreia formal dos dois no cinema. Brückner pretendia, nesta época, participar ainda de outros dois documentários sobre a região. Um sobre índios e outro sobre animais selvagens. Não se sabe se chegou a realizar um destes filmes inteiramente, mas o fato é que, durante a expedição, já em 1930, faleceu.
Com a morte do alemão, suas empreitadas como documentarista ficaram acéfalas e os irmãos Franz e Edgard decidiram assumir respectivamente os postos de diretor e fotógrafo dos projetos em curso. O resultado foi vindouro e ambos foram contratados como documentaristas pela UFA. Além disso, esta primeira expedição também resultou em um livro de Franz, Deutsche Filmleute am Amazonenstrom (1933).
Os dois irmãos retornaram diversas vezes às selvas brasileiras durante a década de 1930 e suas viagens geraram trabalhos notórios: diversas ilustrações e fotografias, encomendadas por uma revista alemã, foram produzidas por ambos para registrar a fauna local. Em especial, se dedicaram às carnívoras piranhas, sobre as quais, entre 1935 e 1937, fizeram um documentário. Na ocasião, os irmãos mandaram construir um aparato inédito que permitisse a eles a filmagem submersa dos peixes.
Sobre este segundo período na Amazônia, Franz escreveu seu mais famoso livro No Inferno Verde (In der grünen Hölle: Kurbelfahrten durch Nordbrasilien, 1937), onde narra as principais aventuras que as peripécias do cinema lhe proporcionaram. Logo após o período de redação desta obra, participou da produção de um filme de sucesso: Kautschuk (1938), de Eduard von Borsody. O filme era mais uma das produções alemãs (desta vez, uma ficção de época) que tinham interesse na selva amazônica como cenário principal. À época, os idealizadores do filme necessitavam de alguém que conhecesse bastante o território a ser filmado e que pudesse lhes dar boas histórias sobre a selva. Franz Eichhorn foi naturalmente o eleito e tornou-se consultor da equipe e roteirista da obra.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o destino do diretor é desconhecido. Provavelmente continuou a se corresponder com brasileiros, principalmente no comércio de equipamento cinematográfico de ponta. O fato é que só em 1946 realizou, no Brasil, seu primeiro longa-metragem, No Trampolim da Vida. O filme é uma de suas únicas incursões fora do cinema de aventura: uma chanchada com elenco estelar, entre a famosa dupla Jararaca e Ratinho e a sensual dançarina Luz del Fuego. Além da sinopse, pouco se sabe hoje acerca dessa produção, considerada perdida. Um fato é remarcável: foi nesta chanchada (naturalmente pelo superior manejo técnico de Eichhorn) que pela primeira vez se utilizou o recurso do zoom no cinema nacional. A Cinemateca Brasileira aponta que em 1959 foram noticiadas as últimas pistas importantes sobre o paradeiro desta comédia: foi realizado um relançamento do filme, naquele ano, a partir da reedição de suas partes principais e da inserção de cenas novas, dando origem a outro longa, quase idêntico, nomeado Comendo de Colher e dirigido por Al Ghiu.
A partir dos anos 1950, Franz voltará diversas vezes ao seu habitat natural, a selva amazônica, em 3 produções: Mundo Estranho (1950), Conchita e o Engenheiro (1954) e Paixão nas Selvas (1955). É neste mesmo período que encontrará reconhecimento internacional, não só constituindo constantemente co-produções com países estrangeiros, como ampliando a rede de distribuição de seus filmes para Estados Unidos e Europa. É por isso, aliás, que Mourlet poderá se confrontar com Mundo Estranho e citá-lo entre as grandes obras-primas do cinema mundial em seu manifesto macmahoniano.
É justamente este filme de 1950, entre os três, que sobreviveu até a atualidade, numa versão dublada em espanhol, resgatada há alguns anos de um acervo de países vizinhos. A história trata da ambição de um jovem europeu em retornar, após uma malfadada expedição, às aldeias das tribos do Rio Beni, que possuem uma misteriosa escultura em ouro maciço. Sua intenção é dupla: se apoderar do ouro e tentar resgatar os parentes seus que poderiam ainda estar perdidos no que ele chama de “inferno verde”. Este protagonista, interpretado pelo alemão Helmuth Schneider (que também fora ator em No Trampolim da Vida), é uma espécie de alter ego do diretor e parece representar o seu fascínio inexplicável por voltar sempre ao ambiente perigoso da Amazônia.

O filme, de fato, como parecia sublinhar Mourlet, se inscreve numa muito específica e interessante tradição de realizações que souberam utilizar o realismo como fonte abundante para a fantasia. Há nele o fantástico que está no que é espetaculoso, raro, exótico: as piranhas destroçando a carne de animais, índias nuas e sorridentes se banhando nos rios, coadjuvantes vilanescos e enigmáticos, meio mutilados, meio bêbados, colocando medo nos forasteiros. Mas tudo isto é retratado à moda de um documentarista, nas formas documentais. As piranhas, de fato, são mostradas na sua caça, sem quaisquer filtros. As índias, se foram atrizes ou não, são registradas com tanta naturalidade no seu banhar-se habitual que as imagens registradas por Eichhorn parecem ter sido vindas dos arquivos de um antropólogo ou de algo que o valha. Mas tudo isto não é eivado de nenhum didatismo enfadonho, mas se encaixa de modo bem orgânico naquilo que o filme traz de declaradamente ficcional: a trama por trás do ídolo dourado. É como se o filme, para nos traduzir o tamanho da empreitada do protagonista, recorresse a um elemento extremo e externo: nos mostrar de modo nu e cru o que é o mundo primitivo no qual ele estaria, para isto recorrendo não ao que está dentro da encenação, mas às imagens “verdadeiras”, aparentemente enxertadas.
Estas “amostras do real” dão conta de ajudar a construir um filme enxuto, de certo modo simples, que não precisa da construção minuciosa de cenários de época ou de long-shots mostrando a amplidão da selva. O “bizarro” desta pequena coleção de imagens, somado àquele vulto que rege todo o filme, o vulto do ídolo de ouro, é o tesouro do Inferno Verde que Eichhorn apresenta com o mesmo entusiasmo que teria um recém-chegado europeu naquele mundo de perigos e maravilhas. E isto basta.
De fato, Franz mergulhou com o mesmo fervor de sempre nestas viagens dos anos 50 à Amazônia, que resultaram nos três filmes citados. Sybelle Urban, neta do diretor, conta que o avô teria, por exemplo, colocado a sua vida e a de toda sua equipe de filmagem em risco quando resolveu, para uma produção, filmar o fenômeno da pororoca. A correnteza era muito forte na ocasião e quase afundou a embarcação onde estavam. Outra aventura encerrou este período, segundo Sybelle: durante as filmagens de Paixão nas Selvas, toda a equipe alemã liderada por Franz foi presa pela Polícia Federal e mandada para o Rio de janeiro, o que atrapalhou futuros planos de continuarem a filmar onde estavam.
Eichhorn se assentou em terras fluminenses e ali fez o que certamente é seu filme mais famoso: Treze Cadeiras (1957), comédia estrelada por Oscarito e baseada no conto homônimo de Nikolai Gógol. Mais do que uma adaptação do autor russo, esta chanchada é uma curiosa versão de 13 Stühle (1938), um pequeno clássico do cinema alemão dirigido por E. W. Emo e que conta com a mesma história. Na Alemanha, durante a época da estreia, Eichhorn fora convidado para uma sessão deste filme e desde ali ficara maravilhado com aquele enredo de desventuras cômicas narradas em tela. Quase vinte anos depois, refaria o filme de modo bastante fiel, inclusive com cenários e planos muito parecidos. Mas com algumas mudanças substanciais: alguns personagens importantes são mudados e o final é drasticamente invertido.
Nos atenhamos um pouco a esta produção, porque, além de ser uma das únicas películas ainda disponíveis ao público dirigidas por Eichhorn (cujo conteúdo, por conseguinte, podemos explorar um pouco mais), é, talvez, seu melhor filme. O enredo é bastante simplório: Bonifácio, um homem de poucas posses, recebe a notícia de que sua tia faleceu, deixando a ele, em testamento, uma possível fortuna. O protagonista, vivido por Oscarito, fica muito feliz, mas, ao verificar seu espólio, percebe que se trata simplesmente de treze cadeiras. Inconformado e cheio de raiva da tia morta, manda vender aquela herança maldita. Porém, no dia seguinte, atrás de um quadro, na antiga residência da velha, encontra um bilhete que lhe revelava: havia um malote enorme de dinheiro escondido em uma das treze cadeiras. Bastava abrir os estofados e, em uma delas, o encontraria.
O resto nós já sabemos: Oscarito fica doido e passa o filme inteiro nesta saga engraçadíssima, tentando reaver o que havia vendido. Para seu auxílio na empreitada, existe a jovem Yvone, que se encanta por ele ao conhecê-lo num ponto de ônibus em direção ao Rio de Janeiro, ouvindo-o dizer que está indo para a cidade grande “porque lá lhe espera muito dinheiro, uma casa imensa, automóveis e tudo mais”. Se na versão alemã o filme trata da interação de dois amigos em busca da fortuna, aqui, a possibilidade do romance entre Bonifácio e Yvone é um fator diferente e importante. Nosso protagonista é em tudo um necessitado: apesar de não ser muito pobre, encarna um pouco aquele arquétipo do mendigo gentil de Charles Chaplin, abandonado do amor e sem ter onde cair morto. Neste sentido, há nele duas ilusões: a do romance e a da fortuna. Mas Bonifácio não é tão inocente: desde o início percebe que Yvone é muito mais uma sócia interesseira do que outra coisa. Ele, no fundo, iludido da riqueza quer, enfim, comprar o amor.

A caracterização do personagem, que ao longo da história vai se tornando visualmente a de um homem mais e mais maltrapilho, é, neste sentido, um aviso moral das consequências da ambição de Bonifácio. Ela lembra alguma coisa do neorrealismo italiano nos seus momentos menos sérios e mais cômicos, como em Vittorio de Sica: emolduram a desventura do protagonista o cenário urbano, as suas roupas que vão ficando surradas e o seu sorriso que aos poucos desvanece.
Mas nem tanto aos poucos: um dos grandes trunfos de Treze Cadeiras é ser um filme abrupto, dramaticamente chocante. Assim como em 13 Stühle, grande parte do tempo de exibição é entremeado por inúmeras gags visuais, verdadeiros malabarismos nos cenários que plastificam a comicidade daquela odisseia aparentemente tão simples, mas que acaba se tornando cada vez mais impraticável. O choque dramático, no entanto, vem no fim, num pequeno período de grave melancolia que invade o filme. Bonifácio, que já tinha pouco dinheiro, se esforçara para chegar ao Rio como um novo rico, vestido em terno alinhado, chapéu bonito e contando as vantagens que fizeram Yvone “se apaixonar”. Mas, na ambição desmedida em encontrar sua fortuna acolchoada, vai perdendo ainda o pouco que tem. Perde também o amor, porque Yvone, perto do fim, desiste da busca, se mostrando a interesseira que desde o início anunciava ser. Ao longo do filme, o protagonista consegue rastrear as treze mobílias, mas perde por acidente a última, que, ao ser jogada de uma janela, acaba caindo num caminhão de donativos que a leva para destino incerto. E daí brota o epílogo melancólico: Bonifácio, a esta altura, está sujo, errante no meio da rua e sem recursos para reaver a décima terceira cadeira que quase alcançara. Ouve, então, um coral de crianças cantando. Atraído por aquele som, percebe que vem da direção de um orfanato católico. Naquele momento, o protagonista, sem destino, sem ter mais o que perder e sem ter pressa para conquistar a fortuna, resolve parar no local para ouvir a apresentação até o fim. Neste ponto, vemos sua imagem entrar pela porta principal da instituição, que é filmada como uma espécie de portal do paraíso, extremamente iluminado, destoante do resto das paisagens anteriores, como se agora estivéssemos vendo a retratação de um de sonho ou de uma fantasia. Ao entrar no local da récita, Bonifácio percebe que a música é interrompida para um breve discurso de um dos benfeitores responsáveis pelo orfanato. Ele pede a palavra para agradecer, em tom de prece, a um doador anônimo; aponta para uma cadeira toda decorada que chegara ao local naquele dia, dentro de um caminhão de donativos. Dentro do seu estofado, um milhão de cruzeiros e uma carta que dizia: “Esse dinheiro lhe dará sorte e felicidade”. Bonifácio olha para aquela cena atônito, tem um átimo de esperança em reivindicar a fortuna, mas logo ouve aquele mesmo senhor dizer que a bela música que cantariam a seguir era dedicada a ele e tão somente a ele, o doador desconhecido que assegurara o futuro das várias crianças ali presentes. O protagonista olha o rosto de cada órfão e substitui seu sorriso de esperteza por um sorriso emocionado pela gratidão de todos os presentes. Decide sair do recinto, ainda sorrindo porque ele, o homem mais egoísta do mundo, ganhara tão gratuitamente a intercessão das almas puras. Isto era, enfim, a felicidade e a sorte.

Terminado Treze Cadeiras, Eichhorn foi contratado para uma produção de Mário Civelli que o faria voltar ao norte do Brasil: Rastros na Selva (c. 1959), filmado no Pará, foi um documentário a quatro mãos, parceria entre Civelli e Franz, a fim de retratar a fauna da Amazônia, enquanto um grupo de especialistas se encontrava no local para coletar espécimes para um zoológico. Esta nova produção representou um retorno do diretor alemão às suas raízes como documentarista e, ao que parece, constituiu um exercício de forte realismo, como testemunham alguns intertítulos exibidos na película: “Para escolher exemplares da fauna brasileira, organizou-se uma expedição composta de homens especializados. Este filme foi feito seguindo os passos dessa expedição através de várias regiões do Brasil. Nada foi trucado em favor de emoção barata. Não se buscaram requintes e técnica cinematográfica. Filmou-se apenas a realidade que, por si só, já é maravilhosa”.
Apesar do aparente sucesso da produção à época, hoje poucas cópias restaram para que pudéssemos, de fato, assisti-la. Aqui, uma denúncia pode ser feita: já há muitos anos os responsáveis pelo espólio da Família Civelli vêm alertando sobre o estado deplorável das cópias deste e de outros filmes, que, ao que se consta, estão prestes a entrar em situação de irreversível deterioração. O caso, portanto, desta obra de Eichhorn, é mais um daqueles em que o “tesouro do Inferno Verde” está prestes a se tornar mais uma lenda do que uma realidade.
E esta mística por trás das “cópias quase impossíveis” do mestre da aventura não para por aí: destino parecido, porém menos incerto, tem seu próximo filme, Manaus, Glória de uma Época (1963). Dele, rastreamos duas cópias à venda na Europa, uma em 16mm, provavelmente dublada em francês, e outra, com o áudio original, num VHS lançado na Alemanha. Se há cópias públicas, disponíveis em cinematecas, não sabemos. Além disso, um trailer do filme vem circulando há alguns anos pela internet, dando uma pequena amostra da qualidade da produção, que parece surpreendente.
Esta nova história de aventura retoma um tema caro a Eichhorn desde Mundo Estranho: a obsessão em resgatar algum familiar perdido na selva. No enredo, uma jovem (interpretada por Barbara Rütting) organiza uma expedição à procura do pai, perdido na Amazônia e tido como morto. Lá, precisa se aliar ao aventureiro Pedro (Harald Leipnitz), a fim de também vingar-se do pirata Demônio Verde, teoricamente responsável pelos infortúnios da família.
Apesar de o contato com a obra em si ser bastante difícil para dizermos alguma coisa sobre suas qualidades, é certo que tenha sido um dos maiores sucessos do diretor. O fato de ser co-produção entre Brasil e Alemanha facilitou o interesse europeu pela película, e verificamos que houve estreia do filme em diversas partes do mundo, possivelmente até no Japão.
No ano seguinte, Eichhorn fará seu último filme, Os Selvagens (1964), uma (quase) refilmagem de Mundo Estranho, com um ou outro detalhe diferente do enredo do filme de 1950. Esta produção, ao contrário da maioria da obra do diretor, tem paradeiro certo e bastante localizável: foi recentemente restaurada e lançada em DVD na Alemanha, sendo exibida também em cópia dublada na TV espanhola. Sendo assim, o acesso ao filme é relativamente simples, o que nos contenta em podermos falar um pouco mais sobre esta sua última película.
Os Selvagens é o que deveria ser toda refilmagem: uma abordagem estética completamente original sobre um tema já repetido. É o avesso de Mundo Estranho: neste filme, não há mais o Eichhorn documentarista, que retratou durante décadas a fauna e a flora amazônica, mas um diretor que, enfim, havia se tornado grande metteur-en-scène. O uso dos espaços enormes e abertos da selva parece inicialmente simples, mas aos poucos vai mostrando sua graça: Eichhorn, assim como Feng Yueh, Vittorio Cottafavi e outros grandes geometristas do Scope, sabia exatamente como agrupar na imagem panorâmica, elementos cênicos de grande porte para potencializar o drama. Especialmente, produz certa “tensão dramática” ao agrupar multidões em formatos geométricos bastante regulares e distinguíveis, como se os grupos representassem um sólido, poderoso e unificado, que se contrapõe ao que resta em cena. É o que ocorre num dos planos finais do filme, quando uma heroína tenta fugir de um grupo de índios, sendo encurralada por um semicírculo coeso da tribo que se volta contra ela num uníssono de ameaça. É o mesmo proceder das belíssimas cenas de ação que Yueh formulou em The Magnificent Swordsman (1968) e o mesmo das inesquecíveis primeiras cenas que Cottafavi dirigiu em Messalina – Venere Imperatrice (1960).

Este filme parece (até por estas comparações) também se inserir bastante na tradição dos diversos gêneros de aventura que se consagraram tipicamente nos anos de 1950 a 1970: o filme de arte-marcial chinesa, o western spaghetti, o peplum, entre outros. Por mais que Eichhorn acompanhe uma tendência alemã da época a aventuras exóticas, emolduradas por lugares inóspitos, Os Selvagens parece um espécime bem mais cosmopolita: com o kung-fu chinês, se parece na antológica cena coreográfica em que dois companheiros de viagem são obrigados por índios a se enfrentarem tendo como armas serpentes venenosas; dos westerns spaghetti, possui um pouco das fortes narrativas de amizade dos filmes de Sergio Leone; mas as imagens já não são tão áridas e realistas como neste tipo de filme. São muito mais afeitas ao classicismo do western americano, em que muitas vezes se pretendia constituir cada quadro a partir de uma noção pitoresca das paisagens. Cada imagem paisagística é feita para ser acachapante, facilmente eternizada na mente dos espectadores, como se fossem pinturas.
Neste ponto é que Os Selvagens não é só exemplo de um “Eichhorn diferente”, mas de um Eichhorn verdadeiramente maduro, que aprendeu que não necessariamente o documental, o extremamente figurativo é a melhor forma de transmitir o exótico e o selvagem. Neste filme, parece que o diretor já tinha tal familiaridade com os espaços e com as imagens tipicamente brasileiras que pôde, finalmente, coordená-las, dirigi-las, encená-las para que pudessem demonstrar todo o seu potencial. E isto se dá sem exageros, em momentos tímidos: na bela retratação da roda de samba carioca no início do filme, nos planos coloridíssimos da fauna amazônica. Principalmente no fim do filme, em que o explorador, saindo da busca pelo deus de ouro, desce o Rio Beni de cabeça erguida num pequeno barco, todo circundado por índios rebeldes na beira da água que, no entanto, deixam-no passar. Ali não há nada do aspecto de um documentário, tudo é bastante ficcional, mas a rudeza da selva, a ferocidade dos índios e a coragem do explorador são retratados com clareza, sem que sejam necessários muitos complementos dramáticos à força própria da imagem. Eichhorn, portanto, havia, ali, achado sua própria economia estética, plasmando com segurança diversas das referências que haviam influenciado sua obra ao longo dos anos.
Após este filme, Franz abandonou de modo definitivo a direção, mesmo tendo vivido até 1982. No entanto, não abandonou nem o Brasil nem o cinema: continuou a representar a empresa alemã Arriflex no meio cinematográfico e televisivo brasileiro, importando para cá materiais de ponta através da empresa que fundou no Rio de Janeiro para esta função, a Eurobrás.
Até hoje, sob o comando de sua neta, Sybelle Urban, esta representante atua ativamente no mercado nacional e mantém, na medida do possível, a memória de Eichhorn, o cineasta-empreendedor. No site da empresa há algumas menções curtas à vida de aventuras que levaram o alemão a se alojar no Rio e idealizar a Eurobrás, mas a própria Sybelle afirma que muitas das histórias de seu avô não podem mais ser contadas: “Vovô era muito introspectivo e apesar de ter uma variedade enorme de histórias e aventuras para nos contar, foi sempre muito reservado”.
A verdade é que o principal tesouro do Inferno Verde é impalpável e permanecerá somente com aqueles que puderam conhecê-lo: são as memórias mágicas dos exploradores que, como Eichhorn, se deslumbraram pelo ambiente inóspito, inacessível e fantástico da Amazônia e se aventuraram a desbravá-lo, não como colonizadores, mas como homens que desejavam viver a experiência quase mitológica que esta selva pode proporcionar. Franz Eichhorn se diferenciou dos demais, no entanto, por ter transformado grande parte dessas experiências em obras de arte. Por isso, nos resta a nossa exploração cinéfila, bastante citadina, de procurar descobrir esta Amazônia redescobrindo seus filmes, divulgando sua obra e exigindo que ela seja conservada antes que se perca. Este pequeno tesouro é o que, ainda, está ao alcance das nossas mãos.
Yuri Ramos