As flores que desaparecem com o tempo

Percurso de um poema de D.Dinis I entre a trova e a canção popular

Dinis Afonso nasceu em 9 de outubro de 1261 e foi coroado em 1279 como sexto rei de Portugal. Dinis foi filho do rei Afonso III com sua segunda esposa, Beatriz de Castela, duas figuras históricas de suma importância — visto que a primeira lhe legou a Casa Ducal da Borgonha e a segunda uma genealogia oriunda de monarcas ingleses. Na ocasião em que assumiu o trono, Afonso assumiu o título de D. Dinis I. Apesar de conhecido primordialmente como o rei lavrador devido às suas políticas rurais, o monarca foi um homem de notório apego aos artefatos culturais, sendo um dos grandes fomentadores da intelectualidade galega. Fundou, por exemplo, a Universidade de Coimbra, a primeira instituição do gênero no solo que hoje conhecemos como Portugal. É também lembrado por ter sido profícuo trovador. O primeiro intuito deste texto é propor uma possibilidade de leitura para uma de suas cantigas de amigo.

Ai flores do verde pino

Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do qui mi há jurado?
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntardes polo voss’amigo,
e eu bem vos digo que é sã’e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntardes polo voss’amado,
e eu bem vos digo que é viv’e são.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é sã’e vivo
e seera vosc’ant’o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv’ e são
e seera vosc’ant’o prazo passado
Ai Deus, e u é?

O primeiro elemento que nos salta aos olhos é a homogênea e simétrica distribuição dos metros: a canção se divide em oito estrofes de três versos cada; nas quatro primeiras estrofes todos os dois versos iniciais de cada estrofe são decassílabos que terminam em rima toante. Já nas duas estrofes seguintes o que acontece é uma espécie de cavalgamento, onde o primeiro verso se apropria de uma das sílabas métricas do verso seguinte. Por fim, as duas últimas estrofes têm seus dois versos iniciais regularmente constituídos por eneassílabos. 

Nas estrofes I e II o sujeito lírico dirige perguntas melancólicas às flores aqui personificadas como seres capazes de responder às súplicas que lhe são feitas. Aparentemente, o que interessa ao sujeito lírico é descobrir o paradeiro de seu amigo/amado. Nas estrofes III e IV as perguntas do sujeito são permeadas por uma incerteza relativa à reciprocidade de seu afeto por parte de seu amigo/amado, cuja ausência poderia ser indício de falsas promessas, engodos.

Encetando a segunda parte narrativa do poema, as estrofes V e VI promovem uma modulação no ritmo construído até então, através do recurso já mencionado do cavalgamento, que faz com que o primeiro verso de cada estrofe seja um hendecassílabo suplantado pelo eneassílabo que o sucede. Aqui o interlocutor, que pela lógica interna do poema supomos serem as flores, responde perguntas que foram feitas pelo sujeito lírico das quatro primeiras estrofes. Declaram assim as flores: o amigo/amado encontra-se são e vivo.

Nas estrofes VII e VIII, a reutilização de versos das estrofes anteriores reforça o bem-estar do amigo/amado, mas dessa vez adicionando a informação de que tal pessoa regressará antes mesmo do que havia sido combinado. É curioso notar que nas estrofes V e VII também ocorre rima toante em seus respectivos primeiros dois versos, já nas estrofes VI e VIII, se ignorarmos o refrão que se repete ao longo de todo o poema, o que ocorre são rimas interpoladas, criando assim uma distância entre o amado e o passado, manifesta também pela dimensão rímica.

Se tomarmos a repetição do refrão de cada estrofe como um indício de imobilidade, não se torna um absurdo supor que os eventos do texto se passam em um momento não prolongado, tal interpretação cristaliza a hipótese de que toda a aflição do Sujeito não passa de ansiedade. O poema é um exemplo das cantigas de amigo, onde era de costume a utilização de uma voz feminina a fim de que fosse expressada uma situação concernente a um afeto tensionado pela ausência do amado. Este é tido como um dos melhores exemplos do gênero, e por isso justifica a posição até hoje renomada de D.Dinis I na história da Literatura Ocidental.

Muitas interpretações musicais já foram feitas a partir do texto supracitado. Confessamos, contudo, que a prática mais comum é a de construções harmônicas e rítmicas que tentam de certa forma emular a ambiência e a prosódia dos tempos de D. Dinis. Nos chama particularmente mais atenção a performance de José Mário Branco, transcrita abaixo:

Ai flores, ai flores, ai flores, ai flores do verde pino,
Se sabedes novas, se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?

Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas, se sabedes novas do meu amigo?
Aquel que mentiu, aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai Deus, e u é?

Ai Deus, e u é?

Ai Deus, e u é?

Ai Deus, e u é?

O prestigiado músico português fez algumas modulações sonoras e textuais que consideramos deveras simbólicas. Em primeiro lugar, ele duplicou expressões como “Ai flores” e “se sabedes novas”. Acreditamos que isto aprofundou a dimensão ansiosa, tornando-a de certa forma um tanto quanto desesperada. Diferentemente de outros intérpretes, José também fez do refrão algo muito mais potente quando o performou não apenas repetindo o conteúdo lírico, mas introduzindo também uma flauta que harmoniza com a voz. Esta flauta, doce e melancólica em sua melodia, coaduna com o dedilhado feito no violão — instrumento que nas demais partes é tocado de maneira percussiva com rastilhos alternados para cima e para baixo. Em suma, acreditamos que a cantiga, ao ser apropriada por José, adquiriu uma dimensão paroxística marcada por breves intervalos onde o sujeito abdica do desespero em nome da completa entrega à sua situação absurda. Dizemos “absurda” sem medo, porquanto aqui foram preteridos os versos nos quais estão originalmente inseridas as respostas das flores. A canção denota assim, através da ausência, uma natureza que já não é mais capaz de consolar o desespero humano.

Yael Carvalho Torres 

Referências:

DOM DINIS (1261 – 1325). modo de usar & co., 6 de maio de 2013. Disponível em: http://revistamododeusar.blogspot.com/2013/05/dom-dinis-1261-1325.html Acesso em: 18 de maio de 2022.