“Moby Dick inteiro é uma das obras-primas de devir; o capitão Ahab tem um devir-baleia irresistível, mas que justamente contorna a matilha ou o cardume, e passa diretamente por uma aliança monstruosa com o Único, com o Leviatã, Moby Dick”
Gilles Deleuze

I
Nos filmes de William Friedkin, a Possessão pertence à ordem da mudança, do contágio, do desdobramento ou da simbiose. Ela se revela no curso de um confronto físico ou psicológico entre dois vetores de energia, duas forças em relação de domínio ou submissão inconsciente. Deste embate constitui-se um bloco novo, recém-formado, caracterizado pela soma de ambos os polos da equação, em uma espécie de fusão última que pode desembocar na vitória final de uma parte sobre a outra. Apesar de fluida, e apesar de manifestar-se de diferentes formas, a Possessão mantém como fundamento a presença desdobrada, impregnada, de uma força sobre outra, seja em relação de reciprocidade (influência mútua), seja em relação de aniquilamento (geralmente mais perigosa).
De onde nascem, no caso, as Possessões? Da natureza das narrativas. Na maioria dos filmes de Friedkin, um trabalho tortuoso precisa ser realizado a todo custo. Para que este trabalho seja cumprido, no entanto, é preciso que aquele que o leva a cabo esteja em pé de igualdade com o inimigo – por vezes até tornando-se o inimigo (O Exorcista, Parceiros da Noite) –, mesmo que isto implique na corrupção moral (Operação França) ou na autodestruição (Viver e Morrer em Los Angeles, Possuídos, O Exorcista novamente). A moral friedkiana, se moral há, pode ser elaborada nos seguintes termos: é preciso colocar-se em igualdade com o inimigo para sobrepô-lo, mesmo que disto resulte a morte efetiva ou simbólica de si. Caçado é o filme que melhor encena esta moral: Tommy Lee Jones deve manter-se à altura de Benicio Del Toro para conseguir capturá-lo; deve, portanto, colocar-se em relação de mano a mano, em terra firme, disputando de igual para igual. Ele se imiscui na floresta, entre as árvores, para estabelecer com seu duplo um embate justo. Os helicópteros que sobrevoam ou os rifles dos caçadores, porque observam o inimigo do alto, de longe, distantes, nada podem contra ele.
Se colocar-se à altura é um ponto de inflexão, talvez aí possamos compreender a importância do trabalho policial undercover e das perseguições de carro que atingem sua potência formadora (Operação França, Viver e Morrer em Los Angeles, Jade). Os espaços, no caso, são decisivos. Os filmes de Friedkin propõem, à sua maneira, uma topologia da Possessão: o método do cineasta consiste em fazer operar esta captura no seio de um dado espaço físico que será imprescindível para sua consumação. Estes espaços, que podem ser amplos ou restritos, tangenciam cidades inteiras (Los Angeles, Nova Iorque, Portland) ou microuniversos (boates homossexuais, a residência de uma menina possuída, um quarto de motel de beira de estrada). Para retornar ao trabalho dos personagens, suceder em seus ofícios implica em dominar o espaço onde ocorre a Possessão: necessidade, portanto, de encurralar o Diabo ou a entidade demoníaca em seu ambiente de negociação diabólica (quarto gélido, ateliê do falsificador, galpão abandonado, floresta, espaços de pegação, tribunal penumbrado, árvore amaldiçoada…).
II
A obsessão de Gene Hackman por Fernando Del Rey em Operação França (1971) levará o protagonista a romper com todos os limites morais e éticos de sua jornada, nivelando-se, finalmente, ao traficante que persegue. Este, por sua vez, se verá de tal forma enfraquecido pelas incursões obstinadas do policial que será obrigado a ceder espaço, fugir, tornar-se invisível: no desfecho do filme, Del Rey é dado como desaparecido. Na máquina friedkiana, os policiais constantemente dissolvem ou veem dissolver as fronteiras estanques entre Bem e Mal, pois a influência demoníaca dos antagonistas – homens ou mulheres que exercem sobre os protagonistas uma fascinação insidiosa e irreprimível – suprime a linha divisória que demarcaria uma separação bem definida. Do que se depreende que, se Bem e Mal existem nos filmes de Friedkin, eles são forças que se interpenetram e por vezes se correspondem, podendo mesmo atingir um ponto de cruel indiscernibilidade.
No corpo de Linda Blair, em O Exorcista (1973), por exemplo, Bem e Mal coexistem. A relação de correspondência entre estas forças se revela tanto mais evidente quando constatamos que o Mal se instala naquele corpo e naquele espaço doméstico porque uma brecha foi aberta pela crise familiar. Esta brecha, desgastada e traumática, abre-se como uma fenda no corpo do padre Karras quando, nos instantes finais da narrativa, o Diabo lhe possui. Não é porque o padre convida arbitrariamente o Diabo a penetrar em sua carne que a fenda já não se encontrava aberta e pulsante, consequência de seu sentimento de culpa em relação à morte da mãe. Seu gesto final, o suicídio, testemunha que o Bem só pode triunfar, neste caso, ao preço de sua própria aniquilação. Voltarei a este ponto mais adiante.
Em Parceiros da Noite (1980), Al Pacino devém, ele próprio, o assassino de homossexuais que ele inicialmente investigava: dissolução evidente das fronteiras entre Bem e Mal. Procedendo por mimese, no início (infiltrando-se nos bares gays), seu personagem incorre possuído no final. Como em O Exorcista, a fusão demoníaca é absoluta, fazendo coabitar em um mesmo corpo duas personalidades distintas; ao contrário deste, porém, o intruso que se desdobra sobre o corpo possuído não pretende apagar, ao menos em princípio, o sujeito anterior: enquanto a menina é cada vez mais tomada pela entidade diabólica, rumo ao esfacelamento completo, o policial vê coexistir em si dois sujeitos que podem mesmo desenvolver uma relação de cumplicidade: somente uma tal aliança permitiria ao personagem assassinar o vizinho por quem ele se apaixonara e, no dia seguinte, voltar para a casa da namorada, despir-se das roupas do assassino e barbear-se como outrora fazia. O olhar final no espelho é o atestado dessa duplicação interior, dessa Possessão irreversível cuja força é entrevista na simbiose das duas forças implicadas.
Viver e Morrer em Los Angeles (1985) é a síntese inusitada dos três filmes citados. Como em Operação França, uma perseguição policial culmina na Possessão – captura e declínio obsessivo – do protagonista (William Petersen) pelo antagonista diabólico (Willem Dafoe). Esta Possessão acaba por escorrer sobre um terceiro elemento, como ocorre com o Padre Karras em O Exorcista: o parceiro do protagonista, interpretado por John Pankow, será tomado pela entidade e assumirá o posto de Petersen, inclusive vestindo-se como ele, fazendo emergir um corpo múltiplo, atravessado por dois seres e em constante mutação – ecos, portanto, de Parceiros da Noite. Petersen, atualização do personagem de Hackman, é possuído por esse devir-outro (Del Rey, o Diabo ou o assassino de homossexuais) e termina por transferir essa Possessão, após a morte, ao terceiro implicado nesse devir (Pankow). O Mal, neste caso e como em Carpenter, respinga e se metamorfoseia.

Três filmes menores também investirão, com diferentes nuances e graus de autoconsciência, no tópico da obsessão possessiva. Em Síndrome do Mal (1988), o promotor liberal interpretado por Michael Biehn, depois de confrontado com a presença diabólica do assassino em série de Alex McArthur, desenvolve uma fixação avassaladora que o afasta da esposa e o conduz a uma revisão indigesta de suas posições sobre a pena de morte. A Árvore da Maldição (1990) retoma o tema da Possessão para lhe conferir contornos físicos bem definidos: uma babá demoníaca estabelece um laço diabólico com o bebê para que, surrupiando-lhe do berço, ele seja incorporado à entidade arbórea de onde ela provém. A criança é, portanto, indexada ao trono que, por sua vez, é o corpo natural da babá: captura física do recém-nascido para sua fusão ao corpo do intruso. Por outro lado, em Jade (1995), a obsessão de David Caruso por Linda Fiorentino remete diretamente à autodestruição pessoal que caracteriza o campo de atuação da femme fatale. Em outras palavras, é neste filme escrito por Joe Eszterhas (Instinto Selvagem) que Friedkin aponta diretamente para um dos arquétipos da obsessão autodestrutiva no cinema, reatualizando a fascinação pela mulher fatal como ponte para a ruína do protagonista possuído.
Em Comboio do Medo (1977), o que vemos é uma abordagem singular da Possessão, pois os termos são dispostos em outras configurações. Bem e Mal, neste caso, não são personalizados – e talvez nem se possa dizer que existam –, mas algo naquele cenário infernal dos trópicos toma posse dos personagens: trata-se da captura de seus corpos por uma entidade ancestral, esculpida em pedra, que coincide com o próprio espaço e se alastra em direção à terra, às árvores, às folhas, aos rios e aos relevos montanhosos. O título original do filme, estampado na lataria de um dos caminhões, reporta-se a essa entidade: feiticeira. Os homens tornam-se como figuras enfeitiçadas, não pelo Mal propriamente, mas pelo desejo ilusório de redenção que a narrativa promete. Bruno Cremer, dirigindo um dos caminhões, conta sobre sua esposa que ficou para trás na França; um pneu fura e o caminhão é explodido pelos ares. A Possessão, aqui, tem por nome Destino, força da qual estes homens tentam ilusoriamente escapar.

Em Caçado (2003), a última obra-prima de Friedkin, duas Possessões estão em jogo: na primeira, o fantasma da guerra parecer querer capturar o personagem de Benicio Del Toro, buscando reduzir o sujeito aos seus instintos animais básicos (sobrevivência e proteção de si e dos próximos). Que se tome nota, por exemplo, da semelhança entre uma cena do filme e outra de O Exorcista: Del Toro, em um quarto escuro, é assombrado pelas imagens e pelos sons da guerra; seu rosto na escuridão, recortado por uma luz pontual que ilumina seus traços no breu profundo, remete ao rosto do Diabo que Linda Blair vê surgir em sua consulta no hospital. Na segunda Possessão que o filme tematiza, Tommy Lee Jones desenvolve pelo seu antigo aluno (Del Toro) uma obsessão que, em última instância, aponta para si mesmo. Enquanto um é produto dos ensinamentos do outro, as partes desenvolvem entre si uma correspondência que os afunda em seus próprios seres. Trata-se, então, de uma obsessão que gira sobre o próprio eixo. Jones verá o Mal ser atualizado na forma de um homem cuja conduta é resultado de seus próprios ensinamentos, mas este Mal pertence a alhures: ele percorre os nervos da máquina estatal de Guerra que captura os personagens.
Possuídos (2006), enfim, desloca o tema da Possessão para o domínio do delírio. Capturados pela paranoia, os personagens desenvolvem uma fixação incendiária pela noção de contágio e vigilância política. No interior do surto esquizofrênico, as forças de Possessão são os microrganismos subcutâneos; no contexto mais amplo da narrativa, o que se constata é que os protagonistas se retroalimentam e possuem um ao outro (cf. a cena de sexo): a esquizofrenia de um se alia à paranoia de outro para resultar em uma força cujo vetor aponta para a aniquilação. O traço singular de Possuídos é fazer da influência mútua entre as partes a medida de sua própria autodestruição – onde nos outros filmes a morte (efetiva ou simbólica) decorre da suplantação de uma parte sobre a outra.
A ideia-matriz de um filme como Possuídos é a de que o Mal só é derrotado quando o Bem, inteiro ou em partes, é destruído simultaneamente. As Possessões até podem ser interrompidas ou sabotadas pela vitória do sujeito sobre a parte diabólica – é o caso de A Árvore da Maldição e Caçado –, mas esta não é a regra. Mais frequente, como já se disse, é a dissolução das fronteiras entre o Bem e o Mal – consequência, sem dúvidas, de uma visão pessimista do mundo como máquina infernal. Em Operação França, Hackman verá seus esforços frustrados pelos resultados pífios de suas investigações. A entidade diabólica que se apodera de Petersen em Viver e Morrer em Los Angeles desviará sua trajetória em direção ao parceiro de trabalho do protagonista. O Diabo de O Exorcista, entidade milenar, dificilmente interromperá sua série de possessões após a morte de Karras, como nos indica o olhar do padre para as escadas na cena final. Al Pacino, em Parceiros da Noite, se tornará ele próprio um assassino de homossexuais. O caminhoneiro interpretado por Roy Schneider em Comboio do Medo atravessará o delirante inferno azul da noite americana para depois ser bruscamente assassinado a tiros. Eis o pessimismo friedkiano: no interior da máquina infernal não existe escapatória, salvação ou redenção possíveis.

III
No sistema topológico de Friedkin, triunfar equivale à apreensão das coordenadas do espaço e expulsão (morte) do inimigo. Neste sentido, O Exorcista conduz esta lógica à condição de paradigma: Blair tem seus braços e pernas atados às extremidades da cama para que sua força não influa nos demais cantos da câmara mortuária onde os Padres buscam limitar seu campo de ação. O confronto com o Outro se torna a medida do espaço, e vice-versa: em Operação França, Hackman percorre as ruas imundas e degradadas de Nova Iorque para perseguir seu antagonista e é filmado com uma câmera trêmula que vacila e reconhece as imperfeições do relevo. Al Pacino, em Parceiros da Noite, se infiltra nas casas noturnas através de travellings laterais que caracterizam e fornecem as coordenadas topográficas daquele submundo. As ruas ensolaradas de Los Angeles, em Viver ou Morrer, são vias de trânsito constante: Petersen e Pankow circulam nos espaços de convívio do artista que falsifica dinheiro (a academia, a sauna, o ateliê do mercador de arte) e são eles próprios perseguidos, em determinado momento, pelo FBI. Em Possuídos, enfim, as paredes do quarto de motel são cobertas por papéis-alumínio que supostamente interrompem a “transmissão” dos insetos, e o corpo humano se torna o espaço de disputa primordial (pensar, por exemplo, nos arranhões e cortes na carne). Os espaços dispõem as condições da Possessão e são por ela desdobrados: importância da sujeira, da deterioração e dos vícios que compõem os cenários urbanos de Friedkin. Comboio do Medo, no caso, faz da apreensão e superação do espaço a ideia-motora do filme.
O inimigo a ser futuramente expulso, cuja força é aquela do devir, manifesta seu princípio de aliança diabólica no instante em que um personagem mira um ponto no espaço e neste olhar reconhece seu devir-outro. Neste sentido, um conjunto específico de imagens se repete nos filmes de Friedkin: campo do observador e contracampo da entidade que ele observa. Blair, em O Exorcista, lança seu olhar para o teto da sala hospitalar e vê aparecer, sinalizado na escuridão, o rosto do Diabo. O assassino em série de Síndrome do Mal, diante dos corpos que mutilou, é acometido pela imagem mental de si próprio banhado em sangue num espaço cujo fundo é preenchido pelo leopardo que ele devém (homem-leopardo). Em Comboio do Medo, outra imagem mental: nos instantes que antecedem a viagem através da mata infernal, Fernando Rabal recolhe-se em seus próprios pensamentos. Friedkin, neste momento, performa um zoom sutil na direção de seu rosto envolto em sombras e nos revela, em seguida, a imagem que sua mente forja e que funciona como contracampo ao seu olhar: as chamas que inundam o plano antecipam seu destino trágico. Em Caçado, outro zoom discreto: Tommy Lee Jones, quando procura por Del Toro na cidade, vislumbra um rosto na cascata de água: a câmera descreve um zoom em sua direção e depois no rosto por trás da cascata, mas mais do que a face de seu antagonista, o que ele vê através das águas turvas é o reflexo atualizado de um passado que se tentou, em vão, deixar para trás.
Porque o olho humano não é fisicamente capaz de reproduzir o zoom, este se torna, aqui, o efeito ótico por excelência para sugerir o movimento diabólico da Possessão. Ele está presente, por exemplo, em outras três cenas-chave em que o personagem principal concentra seu olhar em uma coordenada do espaço para melhor encarar seu devir. Em Operação França, Hackman encara o vão de uma porta no galpão onde acontece a última perseguição e, absorto, não olha outra coisa senão um espelho: o vazio que ele contempla é uma imagem de si próprio esvaziado. Por outro lado, o espelho factual em que Al Pacino vê refletida a duplicação de seu ser, em Parceiros da Noite, é uma imagem especular que aponta para a existência de um Outro de si mesmo. Em Possuídos, enfim, o olhar de Ashley Judd em direção ao ventilador de teto funciona como presságio para os helicópteros que, em sua paranoia camicase, sobrevoarão o quarto encardido do motel.
IV
Como se disse, as Possessões nascem da natureza das narrativas, mas o cineasta é consciente da extensão necessária de suas premissas dramáticas. Em outras palavras, a Possessão não se restringe ao argumento da história: ela dispõe as coordenadas necessárias para a organização espaço-temporal do filme, sendo ela, por sua vez, guarnecida por esta disposição. É por esta razão que Friedkin, como Carpenter, sempre fez o mesmo filme e ao mesmo tempo nunca o fez: se a ideia da Possessão percorre a maior parte de seus filmes, ela é sempre retalhada, brutalizada, subvertida, desviada ou metamorfoseada pelo material concreto com o qual ele trabalha. Pelo que se descreve, não estaríamos diante de uma seta apontando para o sentido ontológico do próprio cinema? Se em Friedkin o confronto entre dois sujeitos faz nascer uma entidade inusitada, “que se revela no curso de um confronto físico ou psicológico entre dois vetores de energia”, é também na disputa entre ideia e forma que nasce um filme: presença desdobrada de uma força sobre outra, o cinema é um pacto inevitável, uma impregnação perigosa, uma aliança monstruosa.
Luiz Fernando Coutinho