Perfil de Peter B. Hutton

Sua vida, sua arte

Nascido em 1944, em Detroit (EUA), Peter B. Hutton verá, desde a sua infância, surgirem influências decisivas que futuramente norteariam os rumos de sua obra cinematográfica (D’ANGELA, 2015). A fascinação pela figura paterna e por todo o imaginário que a circundava serão decisivos: Donald Hutton, pai do jovem Peter, trabalhara na marinha mercante (HOBERMAN, 2016) e era um leitor constante de histórias de aventura (D’ANGELA, 2015), o que, desde cedo e no ambiente do lar, fez com que o futuro cineasta se interessasse pelas temáticas marinhas e pelo fascínio despertado pelo ideal das “viagens através do mundo”, vistas por ele sempre através dos álbuns fotográficos produzidos por seu pai ao longo das jornadas marítimas (HOBERMAN, 2016).

Posteriormente, segue o caminho que tanto lhe atraía e torna-se marinheiro (Ibidem). Com o salário, é capaz de bancar-se e de sustentar uma de suas outras paixões: o amor pelas artes plásticas. Em entrevista ao site Cinemad (2009), chegou a declarar (tradução nossa): “Eu paguei meu curso na escola de arte trabalhando em navios. Ia para o mar por um semestre, depois para a escola por um semestre, sempre indo e voltando, do mar para a escola”. Sua formação nas artes plásticas não terminará aí, de modo que ainda irá estudar no Havaí, sendo bastante influenciado por seus professores de pintura japonesa e chinesa e, posteriormente, por seus contatos com pintores e escultores de vanguarda, já nos anos 1960 (D’ANGELA, 2015).

O próprio Hutton, em entrevista a Tony D’angela (Ibidem), citará, décadas depois, a riquíssima relação entre seu cinema e as influências iniciais que recebeu, seja em sua forma de ver o mundo, seja em seus anseios sobre a arte (tradução nossa):

“O mar sempre foi uma influência profunda em mim por muitas razões. Em primeiro lugar, pela atmosfera visual. Imagine ser pintor e começar uma tela com ela já pintada de preto. Um dos meus trabalhos como marinheiro em navios era vigiar. Ficava na proa do navio, noite após noite, olhando para a vasta escuridão do oceano, tentando distinguir as luzes do horizonte distante para ver se havia navios em nossa direção. Depois de ver apenas a escuridão, a luz começa a emergir: estrelas refletindo na superfície das ondas, explosões de fosforescência sob o mar, a lua emergindo de trás das nuvens e, finalmente, a noite se transformando em alvorecer e um espectro de cor emergindo tão sutil quanto um sussurro.

“Quando fui para o mar pela primeira vez, pensei em mim como um pintor. Depois de uma década de embarque e de ida para a escola de arte, fiz a transição uma para a escultura e depois para o cinema. Minha última viagem em um navio foi em 1973, quando eu estava saindo da Tailândia. Eu estava filmando um filme em preto-e-branco e minha grande excitação veio ao navegarmos em tempestades, quando cruzamos o Oceano Índico. Muito da beleza que eu estava experimentando evocava J.M.W. Turner. Minha visão também se tornou tão refinada que muito do que eu via não era visível no filme. Os marinheiros tradicionalmente confiaram em sua visão para sobreviver: ler padrões climáticos, a textura das correntes oceânicas e, é claro, as estrelas. Há uma história interessante sobre os polinésios que li há algum tempo relacionados a suas viagens pelo Pacífico. Eles costumavam estudar a cor das nuvens no horizonte e, se vissem um tom de verde sob uma nuvem, sabiam que uma ilha estava ali, muito antes de se tornar visível no horizonte.”

“Barco a Vapor numa Tempestade de Neve” (c. 1842), de J. M. W. Turner

No entanto, se estas referências seminais foram aquelas que fundaram o fazer artístico de Hutton, mesmo ainda enquanto um jovem pintor/escultor, logo ele mesmo as levaria para o ambiente pelo qual ficou notadamente conhecido: o do cinema. É nos meados da década de 1960 que tem contato com os filmes experimentais que o impulsionam a esta nova forma de arte, com a qual já tinha algum vínculo, devido a uma espécie de cineclube mantido por seu pai, grande apreciador de Jacques Tati, autor pelo qual lutou para que fosse divulgado em exibições locais em Detroit (CINEMAD, 2009). Interessa-se, neste campo, pela performance e, logo em seguida, pela feitura dos filmes, porque era “cem vezes mais interessantes que as performances”, diria ele (Ibidem).  Daí, passa a dedicar-se à direção de filmes experimentais, mas, paralelamente, a uma bem-sucedida carreira como diretor de fotografia, apesar de nunca ter estudado sobre este último ofício, sempre ressaltando a importância de sua visão pitoresca do ofício de fotógrafo (Ibidem).

Assim, permanece “nas artes fotográficas”, por assim dizer, até o fim da vida, realizando mais de duas dezenas de filmes e dirigindo a fotografia de outras muitas obras. Para que se entenda a importância efetiva de suas vivências e das influências artísticas sofridas por seu cinema, no entanto, é necessário que façamos um apanhado, cronologicamente disposto, que referencie a evolução da estética de Hutton a partir do que de suas próprias obras depreendemos já no âmbito efetivamente cinematográfico. É o que veremos a seguir.

Do filme-diário ao cinema paisagístico

É em 1970 que Hutton realiza seu primeiro documentário, “In Marin County”, um curta-metragem de 10 minutos sobre algumas questões ecológicas (IN MARIN COUNTY, 2018). Mas é em 1971 que iniciará sua longa saga de filmes que retratarão seu quotidiano de estadas e viagens por diversos locais nos Estados Unidos e no mundo. Seu segundo filme é, assim, chamado “July ’71 in San Francisco, Living at Beach Street, Working at Canyon Cinema, Swimming in the Valley of the Moon” e é uma incursão, como bem relata seu longo título, por uma série de episódios da vida do autor.

Tecido como um emaranhado de fotografias quotidianas seriadas, o filme se distancia em alguns aspectos do contexto da estética documental que permearia a obra posterior de Hutton: um certo tom ensaiado na presença dos indivíduos em cena; a montagem extremamente presente, a entrecortar os planos e constitui-los cada vez mais como “instantes fotográficos”; as angulações denotando a subjetividade da câmera; e o próprio tom subjetivo na escolha de imagens, realçando certo ineditismo do quotidiano (um homem barbudo que brinca com seu pássaro esticando a língua até o seu bico; a câmera a fotografar certo rebuscamento no entrelaçar das massas de pão por uma dona de casa). Todos estes elementos apontam uma proatividade de Hutton em relação a sua obra, que seria cada vez mais suprimida ao longo dos anos e que aqui se caracteriza em duas vertentes gerais:

  1. na de um olhar primeiro, acerca do mundo, pelo qual o autor elege notadamente traçar no filme o seu itinerário quotidiano, a sua relação subjetiva com a importância dos fatos costumeiros e a sua ótica em relação a eles;
  2. na de um olhar segundo, sobre o próprio material bruto filmado, que sofre notável intervenção ao bel prazer do autor, ao reconstituir os fatos filmados como espécies de episódios fotograficamente marcantes, de caráter semi-instantâneo, expostos em série.

Tal relação proativa de Hutton com suas obras irá paulatinamente desaparecendo, sendo esta espécie de subjetivismo substituída por uma nova relação com a realidade, sem que jamais o “sujeito” representado por Hutton perca importância e sem que seu olhar nunca esteja alheio ao processo de representação do mundo que o cineasta realiza.

É isto o que verificamos na passagem de seu registro documental de uma forma inicial de filme-diário para uma forma segunda, de cinema paisagístico. Mesmo que mantenha, até o fim de sua carreira, filmes em formato de diário, seja de um quotidiano fixo em um local (como nos New York Portraits), seja de certos itinerários propriamente ditos (como em “At Sea”, a história “de vida” de um container), Hutton passará, principalmente a partir do fim da década de 1970, a fazer filmes onde cada vez mais se torna presente o conteúdo paisagístico, muitos vezes concebido à maneira pitoresca, o que lhe rendeu a fama de exercer “um olhar romântico sobre o mundo” (HOBERMAN, 2016). E há aí um amadurecimento fulcral.

Apesar de nunca ter abandonado, em sua obra, como já dissemos, um certo aspecto de “diário de bordo”, sempre retratando suas viagens e seu quotidiano, é notório que seus primeiros filmes (e aqui ressaltamos todos aqueles feitos antes de “Boston Fire”, rodado em 1979) sigam mais ou menos as duas vertentes gerais, que relacionam a proatividade do autor em relação à obra, que aqui supracitamos. A saber, principalmente, o olhar em relação ao mundo, com o qual o cineasta parece organizar os seus “retratos da realidade” a partir de suas vivências e de sua própria eleição daquilo que há de extraordinário no mundo, ou, pelo menos, do que há de extraordinariamente belo na ordinariedade do mundo. Contrariamente a isto, a maioria de seus filmes posteriores (principalmente a partir de “Boston Fire”) tendem a uma visão que poderia chamar-se de mais objetiva, no sentido de que, mesmo mantendo a eleição livre do sujeito-cineasta em retratar suas realidades quotidianas, pretende deixar a realidade, as “coisas do mundo”, “falarem por si mesmas”, como se o diretor servisse como mero veículo, que ao constatar a beleza das coisas, propicia meios para que esta, com o menor nível possível de intervenção, se exprima por si própria.

O pintor e a luz

É nesta segunda fase do cinema de Hutton onde ficam mais evidentes duas de suas vocações: a do pintor e a do fotógrafo. É por meio de ambas que baseará sua noção de retratação do mundo, porque, seja na pintura figurativa, seja na fotografia, a função do artista é, acima de tudo, dar a ver a beleza recôndita em certos instantes imagéticos que permeiam a vivência da realidade. Na primeira, naturalmente, os artifícios imitam o que se percebe a partir do contato da incidência da luz sobre as coisas, gerando a imagem a ser imitada. Na segunda, porém, há uma espécie de conformação da grafia, que, traçada pela própria luz, é conformada a esta incidência sobre as coisas.

Este “dar a ver” que caracteriza o cinema paisagístico de Hutton é delineado, assim, de modo a encarar-se o material bruto filmado não mais como algo a ser adequado ao itinerário quotidiano do autor, mas como retratações a serem expostas pela decupagem como verdadeiras “telas filmadas”, com seus movimentos exíguos, com o velar e desvelar de luzes que, pouco a pouco, evidenciam uma beleza não exatamente construída, mas revelada.

Frame de “Landscape (for Manon)” (1987), de Peter B. Hutton

É importante que se ressalte que esta concepção cinematográfica profundamente pitoresca é, no entanto, sempre subordinada às peculiaridades do próprio cinema. De modo que, em Peter Hutton, o paisagismo da pintura entremeia-se a um paisagismo fotográfico, em que a imagem é tecida pela luz e conformada fotograficamente a este delineamento que por ela se constrói. Mas nada disto significa que, em alguma instância, o “pintor Hutton” desapareça. Ao contrário, significa que aprende, pelo mecanismo cinematográfico, a construir sua imagem a partir da luz. É por isto que é tão caro a Hutton o uso do preto-e-branco, sempre num pesado contraste, cuja rigidez evidencia uma certa estilização que permanece não como traço de presente intervenção sobre a realidade retratada, mas como marca de autoralidade na veiculação desta.

Frame de “Budapest Portrait: Memories of a City” (1986), de Peter B. Hutton

Tudo isto delineia a profunda relação entre o fotográfico, o pitoresco e o cinema do cineasta. O próprio Hutton, acerca de suas aulas sobre direção de fotografia, chegou a relacionar o ato de exposição ao fotografado com o ato do espectador que assiste a um plano (D’ANGELA, 2015; tradução nossa): “Costumo mostrar aos meus alunos de cinema uma história condensada da fotografia no início do nosso semestre e me refiro a fotografias como filmes muito curtos”. Em outra entrevista, completou (CINEMAD, 2009; tradução nossa), adicionando algo sobre a relação entre a pintura e a fotografia:

“CINEMAD: Você mostra pinturas a seus estudantes, em geral?

PETER B. HUTTON: Mostro-lhes fotografia e pintura em todas as minhas aulas, especialmente quando faço uma aula de fotografia. Os primeiros cinegrafistas estudaram a pintura. Não muito seriamente, mas eles aprenderam sobre a iluminação lá. Qual foi o primeiro meio que lidou com a luz de uma maneira pictórica? A pintura! Rembrandt tinha a luz frontal, Vermeer tinha essa coisa da iluminação lateral. Há muito a aprender com eles.

Para além de seus próprios depoimentos, J. Hoberman (2016) afirma tacitamente, em seu obituário para o cineasta, um parentesco inevitável com o cinema pitoresco dos primórdios (tradução nossa): “Hutton, que fez seus primeiros filmes no início dos anos 70, passou mais de quatro décadas fazendo com que eles voltassem ao momento em que os irmãos Lumière o inventaram, na década de 1890”.

A tudo isto relaciona-se uma última questão central, que é a do tempo de exposição das imagens ao espectador: em Hutton, este ínterim é sempre entendido como a duração necessária para a contemplação, para a constatação e absorção do sentido e das construções das imagens projetadas, de seus movimentos, de suas pequenas mudanças, de sua beleza intrínseca. Não há a exposição excessiva nem temerariamente curta. Não há o entrelace de imagens (os costumeiros e lentos fade-outs, que sempre desembocam em telas negras, e a consequente permanência destas por alguns segundos antes do próximo plano, servem ao mesmo tempo como transição comedida e como descanso necessário para aqueles que assistem a seus filmes).

A imagem estática como peculiaridade cinética

É principalmente a partir deste aspecto contemplativo do cinema de Hutton que se fundarão as bases para uma das principais peculiaridades de seu cinema dentro de um espectro de cineastas experimentais que tratarão de temáticas bastante afins a estas tratadas pelo realizador. E esta singularidade consiste, mormente, num aspecto cinético das imagens por ele construídas.

Acontece que, no âmbito do cinema experimental, não é exclusividade a tendência paisagística de Hutton. James Benning seria um exemplo notório disto (JEPPESEN, 2016) e o próprio Abbas Kiarostami de “Cinco” (2003) assume, de algum modo, esta tendência. Também britânicos da década de 1970 serão caracterizados desta forma, como Margaret Tait, em seu filme “Aerial”, e Derek Jarman em alguns de seus trabalhos em Super-8 (GAAL-HOLMES, 2015, p. 88).

No entanto, em todos estes casos há um tratamento bem típico da paisagem, que se divide em duas formas gerais: ou numa espécie de filme-diário, como também fez Hutton em seus primórdios, onde a exposição do espectador à paisagem é feita tão somente para delimitar um “itinerário”; ou em obras cuja presença do elemento paisagístico é superexposta em planos longuíssimos, que, em verdade, não estão notadamente preocupados com a contemplação da paisagem retratada, mas com as pequeníssimas movimentações que se dão lentamente nas imagens aparentemente imóveis e imutáveis. São os casos dos planos filmados por Benning na maioria de seus filmes: em “Ten Skies” (2004), por exemplo, há somente a exposição de 10 planos, cada um com cerca de 10 minutos, onde a única preocupação é o movimento vagaroso das nuvens no céu. Não se trata mais, nestas obras, de um tempo de contemplação da imagem, mas no tempo necessário para a decorrência de determinados movimentos, cuja vagarosa execução, esta sim, é o objeto de contemplação.

Peter Hutton, entretanto, nos filmes realizados após “Boston Fire”, posiciona-se numa terceira e intermediária via: sua preocupação não é a de uma contemplação cinética dos movimentos internos à paisagem, nem sua relação com esta última é a de uma mera junção de relatos de um itinerário quotidiano. Se sua preocupação é eivada de um aspecto contemplativo, esta característica de sua obra está sempre subordinada à “paisagem em si” e a nada mais. A contemplação é unicamente da paisagem como um todo, em toda a beleza por ela dimanada, em toda sua capacidade pictórica e fotográfica.

É por isto que o “tempo de exposição” dos planos de Hutton é propiciador deste ato contemplativo e que também se impõem em seus filmes certas características relativas à estática que lhes são muito próprias. A ausência de movimento, de narratividade, de som, toda esta profunda austeridade configura uma espécie de “esvaziamento” que permite com que a obra se fie unicamente no poder das imagens retratadas. É, mais ainda, um esvaziamento da própria intervenção do autor em relação à obra, ele que, mais uma vez, aqui se configura como mero veículo para os retratos realizados.

Conclusão

Em tudo até agora precisado sobre a obra de Hutton, um dado impera, fortemente reiterado: seu cinema, seja influenciado por suas vivências pessoais ou pela própria interação de seu autor com as imagens por ele retratadas, é fruto de uma bem delimitada e bem pessoal cosmovisão, não como herança de alguma bagagem teorética, mas como consequência da relação individual de um homem e de seu mundo.

Nos referimos ao autor, em primeiro lugar, como profundamente influenciado pelo seu quotidiano de vivências familiares, de viagens, de experiências profissionais e intelectuais; posteriormente, verificamos por quais formas a relação entre o cineasta e seu quotidiano se manifestou em sua obra, de modo a cronologicamente discernir nela duas fases [1]: uma de filmes-diários e outra de cinema paisagístico; logo após, relatamos a influência da fotografia e da pintura em sua forma peculiar de contato com as paisagens, para, por fim, relatar o que seria uma peculiaridade cinética de seu cinema, propiciadora de uma espécie de “contemplação do paisagístico” ou, teologicamente, da criação.

Assim, as formas por ele administradas em suas obras propiciam um ato de contemplação, mas não permanecem no campo da física do mundo meramente. E aí talvez esteja outra peculiaridade cinética (e estética). Seu cinema possui uma busca metafísica e sua austeridade faz com que suas imagens se conformem a uma beleza que escapa às mãos do artista humano, que prefere anular-se para pôr as atenções focadas todas num Artista Maior, num criador cujas obras o homem não seria capaz de realizar, senão de retratar.

Neste sentido, Hutton pode ser considerado, antes de um realizador, um realista, muito mais radical que quaisquer outros que comumente são associados a esta designação. Seu cinema não pretende criar realidades, senão ser veículo para todo o poder do belo e do real. E se não podemos desvencilhá-lo de algum olhar subjetivo, na escolha das paisagens, do filtro inevitável que é a fotografia em relação ao mundo, da irreparável distância entre o objeto artístico e a realidade mesma, em sua defesa deveríamos dizer que é, então, um cosmógrafo. Não no sentido geral da acepção do termo, mas designando uma espécie “retratista da criação”.

Nisto implica dizer que o seu traço de autor não está eliminado da “grafia do cosmos”, como os estilos dos autores bíblicos nunca estiveram distantes da literatura contida nas Sagradas Escrituras. No entanto, seu papel é de conformidade: seus traços são traços conformes a algo de maior, a uma realidade cujo estado e cuja beleza não devem sofrer qualquer intervenção. Devem somente serem dados a conhecer.

Yuri Ramos

NOTA

[1] Poderia ser acusado como temeridade tal discernimento tão rígido, visto que os dois últimos “New York Portraits” realizados pelo artista carregavam algo da sua perspectiva inicial dos filmes-diários. No entanto, é notável que mesmo estes filmes já estavam profundamente eivados de uma estética advinda do paisagismo idealizado pelo autor, de modo que não se faz completamente ilusória a delimitação, já feita antes neste artigo, de que é a partir de “Boston Fire” que Hutton inicia sua estética paisagística já bem fundamentada.

BIBLIOGRAFIA

CINEMAD. Peter Hutton. 2009. Disponível em: http://www.cinemad.iblamesociety.com/2009/11/peter-hutton.html . Acessado em: 25 de julho de 2018.

D’ANGELA, T. Peter Hutton: Silent Music, Travel Diaries, Echoes of World. A Conversation with a Friend. Revista La Furia Umana, nº 24, 2015. Disponível em http://www.lafuriaumana.it/index.php/61-archive/lfu-28/583-toni-d-angela-peter-hutton-silent-music-travel-diaries-echoes-of-world-a-conversation-with-a-friend . Acessado em: 25 de julho de 2018.

GAAL-HOLMES, P. A History of 1970s Experimental Film: Britain’s Decade of Diversity. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2015.

HOBERMAN, J. Peter Hutton, Filmmaker With Austerely Romantic Worldview, Dies at 71. The New York Times. Nova Iorque. 27 de junho de 2016. Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/06/27/movies/peter-hutton-filmmaker-with-austerely-romantic-worldview-dies-at-71.html . Acessado em 25 de julho de 2018.

IN MARIN COUNTY. Experimental Cinema. Disponível em: https://expcinema.org/site/en/wiki/work/in-marin-county . Acessado em: 25 de julho de 2018.

JEPPESEN, T. On the Road: James Benning’s Landscape Cinema. Ran Dian. 18 de agosto de 2016. Disponível em: http://www.randian-online.com/np_feature/james-bennings-landscape-cinema/. Acessado em: 25 de julho de 2018.

Amílcar de Castro: concisão e materialidade

“Não há mistério em uma chapa de ferro”

Amílcar de Castro

Amílcar de Castro é, ao lado de João Cabral de Melo Neto, o artista brasileiro mais rigoroso em seus procedimentos formais, que fez da concretude, da precisão e da objetividade os fundamentos que conduziram do início ao fim a atividade escultórica a qual se dedicou ao longo de cerca de cinquenta anos. Desdobrando-se por um gesto lúdico, mas comprometido, em que a vontade de ordenação, de controle sobre a matéria, é a essência do próprio jogo de criação, quase a totalidade de sua obra representa a continuidade de um trabalho diretamente aplicado à placa de aço.

Valendo-se estritamente de técnicas e materiais industriais para a realização de suas obras, Amílcar se afasta de um trabalho baseado no gesto artesanal do escultor e de uma subjetividade convencional que se exprimiria nos detalhes desta manipulação da matéria. A partir da distância e da mediação do processo, entretanto, se manifesta em seus trabalhos outro tipo de subjetividade, marcada pela reflexão sobre a própria escultura (particularmente, em termos de formulação estrutural), como um aspecto conceitual que se materializa de maneira despojada, para além de qualquer automatismo que o rigor geométrico de seus trabalhos poderia fazer presumir.

A partir de uma superfície plana, Amílcar projeta a sua escultura espacialmente através da técnica de corte e dobra, a um só tempo bruta e delicada, sem que desta placa de aço original nada se tire ou acrescente, sem realizar qualquer tipo de soldagem, nem requerer a afixação sobre pedestais. Preserva, assim, a unidade da placa de aço e encontra em sua própria constituição as bases de sustentação de uma escultura que é pura estrutura e equilíbrio de composição: “Eu gosto de fazer uma escultura que não deixa restos, não deixa pedaço nenhum sem uma solução perfeita”, dizia [1].

O próprio Amílcar relata como nos seus primeiros anos de estudos artísticos, quando teve aulas de desenho com o pintor Alberto da Veiga Guignard, desenvolveu sua economia e rigor, que, levados à escultura, limite da expressão material do objeto artístico, expressam uma atitude física, direta e impetuosa (podendo-se dizer mesmo heróica): “Ele me ensinou a pintar com lápis duro, o 6H, que sulca o papel e não permite correções. Riscou, está riscado. Assim, aprendi a usar o máximo de precisão e de sensibilidade. Tinha de pintar o sensível, mas o sensível certo, correto: o melhor golpe de espada é no coração, e ele deve ser feito sem um cálculo prévio.” [2]

Entre a simplicidade e a grandiosidade, o peso e a leveza, a serenidade e a gravidade, há um tensionamento que é fundamental às suas esculturas e expõe o próprio trabalho necessário para executá-la: “O ferro, sua resistência ao gesto do artista e a marca desse embate são partes do drama que reside no paradoxo de construir obras sinfônicas com recursos de câmara” [3]. Assim, a partir de uma concepção aplicada a um mínimo de recursos materiais, as obras de Amílcar são capazes de transcender sua limitação inicial para atingir a grandiosidade de seus efeitos.

Em sua forma abstrata, estas esculturas comunicam a obstinação do próprio gesto responsável por moldá-las, a dureza e a persistência do artista, mas também sua sutileza e sensibilidade, pois a escultura rígida e imponente possui, ao mesmo tempo, a extrema leveza da dobra, de um movimento que se ensaia no espaço. Fora de qualquer sistema de representação simbólico, a planaridade da placa de aço da qual parte encontra uma correspondência na literalidade do trabalho finalizado – que justifica, também, o fato da maior parte de seus trabalhos não possuir qualquer título.

A partir das aberturas formadas pelo corte e dobra da placa de aço, ao criar intervalos em que a luz perpassa o objeto, se dispõe não apenas uma disposição rítmica da escultura como também uma impressão de leveza contraposta à gravidade de um trabalho que, em grandes dimensões, chega a pesar toneladas. Como resultado, esta fratura da superfície chapada implica também em um movimento que se dá frente ao espectador, na transformação do objeto plano bidimensional em tridimensional, manifestação de uma exterioridade que, entretanto, jamais se dissocia de sua unidade fundamental.

Concentradas em sua realidade concreta e limitada, cada uma destas esculturas tem como traço maior de sua interação com o ambiente ao redor o fato de se deixa contaminar por ele, em um processo que materialmente se define pelo enferrujamento da placa de aço. Assim, a contingência desempenha um papel fundamental nestes trabalhos, revelando uma abertura neste processo de composição rigoroso e caracterizando a fatura da obra em dois momentos distintos, mas absolutamente complementares, pois a ferrugem é também o rigor, a dureza e o comportamento natural da matéria, que a modifica em continuidade à ação física e material do escultor, estando agora independente de sua intervenção. No processo de envelhecimento e oxidação se define a sua textura e coloração, camada superficial que se associa à lógica estrutural da escultura para afirmá-la como uma coisa em si, denotando uma personalidade independente e particular.

Matheus Zenom

NOTAS

[1] “Amílcar de Castro: A Poética do Ferro”. Série O Mundo da Arte. Rede SescTV, 2001. Vídeo digital, 30”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WO1OzWYFLps. Acessado em 07/12/2020.

[2] Amílcar de Castro, “Cortar o ferro, Dobrar o ferro”, entrevista por Mario Sergio Conti, Folha de São Paulo, 10 de fevereiro de 2002. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1002200210.htm. Acessado em 07/12/2020.

[3] Paulo Sérgio Duarte, “A aventura da coerência”, em “Amílcar de Castro”, MAM-RJ, 2015.

A economia estética do filme de ficção científica dos anos 50

Muito se fala a respeito da onda de filmes de ficção científica produzidos em Hollywood por volta dos anos 50, a maioria mais próxima do que hoje se entende por horror do que ficção científica. Muito do que se fala, entretanto, é sempre o mesmo; a relação entre esses filmes e o momento político vivido nos Estados Unidos no período, a Guerra Fria, o macarthismo, o medo da bomba, o medo do comunismo (o chamado “Red Scare”). Na grande maioria dos casos a aproximação é evidente, assim como as respostas à corrida espacial, fossem estas de medo ou fascínio. Entretanto, acredito que a questão acaba por resumir esses filmes a uma mera ilustração caricaturesca de uma época já saturada de esteriótipos (epítome do conservadorismo americano), em detrimento, por vezes, de seus potenciais estéticos.

Esses filmes, afinal, constroem sua própria ficção científica, que em muito pouco tem a ver com grandes nomes do gênero literário ou com sua interpretação em filmes contemporâneos, sendo talvez mais próxima das revistas pulp que popularizaram o gênero. Em muitos casos, aqui, a ficção científica se mistura ao filme de monstro, formando um híbrido menos científico do que o primeiro e menos fantasioso do que o segundo: algo próximo de um realismo mágico, no qual a realidade é o mencionado momento político americano, os emblemáticos anos 50. Na fórmula mais comum, um monstro de origens explicáveis (frequentemente um alienígena ou uma mutação de algum animal conhecido) surge em uma pequena cidade ou subúrbio americano, de preferência isolada. Frequentemente, para isso, se utilizam de cenários desérticos, seja no oeste americano, como em Them! (1954), ou nos pólos, como em The Thing From Another World (1951). Há, é claro, motivos lógicos para essas histórias se darem em espaços isolados, que compartilham com o filme de terror, que vão desde impedir a fuga de seus personagens à evidenciar sua vulnerabilidade frente à ameaça, estabelecendo um cerco que permite que o monstro, ou a ameaça que representa, seja literal ou figurativamente maior que suas vítimas. Surgem, entretanto, efeitos secundários dessa escolha, efeitos plásticos: somente em cenários e estruturas tão límpidos podemos realmente sentir o efeito de estranhamento do monstro ou evento que irromperá.

Um filme exemplar nesse sentido é Invasion of Body Snatchers (1956), no qual uma pequena cidade próxima a Los Angeles será contaminada por alienígenas que imitam a forma humana. Estas criaturas, a princípio absolutamente iguais aos humanos originais, provém de casulos de planta gosmentos, que fecundam os novos corpos. A imagem é perturbadora justamente por seu deslocamento, pelo elemento absolutamente orgânico e asqueroso que irrompe no meio da paisagem suburbana idílica. A ameaça, entretanto, será dividida entre este elemento absolutamente exterior e material e a suspeita interior que se alastra diante dos próprios habitantes da cidadezinha, que podem não ser quem parecem; o medo do desconhecido se entrelaça ao medo do conhecido ser desconhecido.

Nem todos os filmes encaixados nessa espécie de sub-gênero são de fato “filmes B” ou pequenas produções. Se filmes como It Came From Beneath the Sea (1955) ou The Blob (1958) passavam um pouco dos cem mil, filmes como When Worlds Collide (1951) ou The Day the Earth Stood Still (1951) tiveram um custo próximo a um milhão de dólares. Os melhores, entretanto, parecem trabalhar, justamente, a partir de uma economia material, que acaba constituindo uma economia estética, seja esta intencional ou não. Se esta escassez não é tão favorável para os efeitos visuais que esse tipo de filme geralmente demanda (com notáveis exceções como em Tarantula!, de 1955), ela com certeza o é para a construção do suspense narrativo; o que acaba acontecendo, então, é uma tentativa de encontrar maneiras de evitar esses efeitos, guardando a sua presença para momentos de clímax dramáticos.

Na falta de recursos cinematográficos, busca-se o estranhamento dentro da própria realidade. Um filme como It Came From Outer Space (1953), do diretor talvez mais proeminente desse sub-gênero, Jack Arnold, é um belo exemplo neste sentido. Nele, a cidade isolada se encontra no meio do deserto e o monstro que interrompe sua paz chega dos céus, sua nave caindo como um meteoro que o casal protagonista vê em um telescópio e vai em busca de alguma pista do mistério. Durante a maior parte do filme, entretanto, vemos apenas o deserto e os personagens – por vezes através do ponto de vista do próprio alienígena. 

Essa busca pelo mistério, aliás, é o que há de mais “científico” neste e em tantos dos outros filmes; geralmente há um personagem cientista que investiga e explica a questão, de forma semelhante a uma trama detetivesca. Em It Came From Outer Space, o personagem é um astrônomo amador olhando por seu telescópio, quase como se estivesse esperando o dia em que este meteoro iria cair diante de seus olhos. Seu olhar é científico, buscando objetivamente pistas na paisagem, interpelado por diferentes aparatos (telescópios, binóculos) – que encontram uma contraposição no “aparato” que representa o olhar do próprio alienígena, onde há sempre um efeito na imagem e uma música que o acompanham.

Olhar de um binóculo
Olhar de um telescópio
Olhar do alienígena

Para além dos rastros encontrados, como um brilho que se espalha pelo chão demarcando os lugares onde os alienígenas passaram, há poucas cenas que revelem de fato as criaturas, um pouco toscas, o que o próprio filme parece perceber e por isso evitar mostrá-las; há uma cena em que o protagonista olha para dentro de uma mina escura onde conversa com o alienígena, aterrorizante até vermos de fato a criatura um tanto ridícula. Há um vazio poético que se alastra pelo filme, que se manifesta em sua paisagem desértica, que é, entretanto, aquilo que há de verdadeiramente mais estranho por ali: o deserto é um grande vazio da onde irrompem formas estranhas.

Como em Invasion of Body Snatchers, os alienígenas também assumem forma humana, e a suspeita se instaura diante dos próprios habitantes da cidade. Tudo e todos, assim, tornam-se suspeitos, estranhos: o deserto com suas formas bizarras, os humanos abduzidos com sua rigidez  inquietante. Novamente, na ausência de demais recursos para causar esse estranhamento, é a própria figura do ator que deve assumir esse papel, seja efetivamente em sua expressão e figurino ou mesmo numa certa postura e disposição no espaço; o resultado são imagens que contém em si mesmas suas precárias disrupções cotidianas, não muito distantes, afinal, de uma suposta interpretação alienígena dos costumes humanos.

O deserto, portanto, aqui, não apenas serve como um local isolado e vulnerável ou um cenário límpido para se sujar, mas como um lugar de uma estranheza já dada, que já nos parece um cenário alienígena. Em um momento emblemático, quando o protagonista ilumina uma árvore com sua lanterna, ao ver uma estranha flor espinhosa característica da região, sua mulher, que está ao seu lado, grita. Ou um momento ainda mais interessante, este de fato poético, quando encontram um eletricista no meio da estrada, mexendo nos postes de eletricidade, que afirma ouvir sons estranhos e então fala “Depois de trabalhar no deserto por quinze anos como eu, você ouve muitas coisas, vê muitas coisas. O sol, o céu e o calor… toda essa areia e os rios e lagos que não são nem um pouco reais… E às vezes você pensa que o vento está nos fios e murmura, escuta e fala. Como o que estamos ouvindo agora.”. O filme não precisa fazer muito, assim, além de observar os mistérios preexistentes do espaço ao redor; com a objetividade, neutralidade, de um cientista.

Paula Mermelstein

A pintura de Luc Tuymans

Há uma parcela da pintura figurativa contemporânea das últimas décadas que partilha de algumas características semelhantes o suficiente para que possa ser referida em conjunto, ainda que englobe obras de artistas essencialmente distintos, entre eles Luc Tuymans, Peter Doig, Marlene Dumas, Wilhelm Sasnal, Kerry James Marshall e Mamma Andersson.

Essa pintura é figurativa e, na maioria dos casos, óleo sobre tela – o que a aproxima inevitavelmente da tradição da pintura –, mas é informada por imagens reprodutíveis, processos análogos à montagem cinematográfica ou à colagem, e relaciona-se de diferentes maneiras aos ready-mades, aos objets trouvés e à arte conceitual. A relação que estabelece com o modernismo é ambígua. Por um lado, parece evitar as premissas utópicas, principalmente no que diz respeito à sua veiculação na abstração formal; por outro lado, essa pintura não é necessariamente contrária, por exemplo, à planaridade do meio pictórico (1) ou “a ênfase no toque, na textura e no gesto” (2), características da pintura moderna.

Essa pintura se dá, justamente, a partir da contradição entre planaridade e ilusão, entre matéria e imagem, objetividade e subjetividade, passado e presente. Este texto irá se ater a Luc Tuymans, artista belga que parece de certa forma encabeçar o conjunto e cuja obra evidencia algumas dessas principais contradições. Tuymans pinta a partir de outras imagens, fotografias, cartões-postais ou mesmo de outras pinturas e desenhos, por vezes de sua autoria, por outras não. Sua pintura, entretanto, está longe de um fotorrealismo, sempre deixando evidente seu aspecto pictórico, re-trabalhando os sentidos das imagens que parte nas condições específicas da pintura, que incluem sua carga material, histórica e, para usar um termo do pintor, shamanística (3). O que gostaria de observar aqui é, justamente, o que Tuymans faz a partir destas imagens pré-existentes, como ele sugere, através de diferentes recursos formais, possíveis sentidos e significados em suas pinturas.

1. Cascas Vazias

O que Tuymans busca ao pintar a figura humana – o retrato, mais especificamente – parece um bom ponto de partida para uma compreensão mais ampla de sua obra (ao menos da parcela mais interessante desta, que aqui será discutida e que vai até meados dos anos 90). Os retratos de Tuymans não buscam caracterizar as personalidades dos retratados, mas evitam qualquer tipo de  interioridade, buscando esvaziá-las completamente de qualquer vestígio de psicologia e pintando o que sobra: suas “cascas vazias”, como o próprio pintor as caracteriza (4). E o que seria a pintura se não uma casca vazia, com vestígios de sentido, de ilusão? O que é a pintura senão uma pele morta, fabricada e maquiada para aparentar viva? As melhores obras de Tuymans são essas peles mortas, cascas vazias: pinturas que são pura superfície, pura aparência, puro exterior, pois ainda são, afinal, retratos pintados a partir de fotografias, retratos de retratos; seu objeto é antes a imagem do que a pessoa retratada.

Um exemplo emblemático desses retratos é sua série “Der Diagnostische Blick” (1992) (“O Olhar Diagnóstico”), que pinta a partir de imagens de um livro de medicina com retratos de doentes com manifestações visíveis de sintomas na pele. O uso desse livro como fonte, parte, justamente, da busca por retratos sem objetivo psicologizante, pois as pessoas retratadas nessas fotos são apenas portadores das doenças que carregam, páginas em branco onde se pode ver esses sintomas desenhados, e utilizá-los como tipologia para futuros sinais, em outras peles/páginas. O que Tuymans faz em sua pintura diante dessas imagens é apagar os desenhos, os sinais, os sintomas, voltar à página em branco. Fazendo este caminho inverso, ele alcança sua casca vazia, esvaziando essas cascas    manchadas. Para isso, desvia o olhar das figuras retratadas, que nas fotografias olhavam diretamente para a câmera, utilizando uma pincelada horizontal, que reforça justamente o ato de apagar e constrói  um muro de opacidade.

Ainda que representem pessoas, assim, essas figuras são tratadas como objetos e é aí que reside o efeito desconcertante de seus quadros. Qualquer retrato carrega este efeito, em algum nível: seja este fotografado ou pintado, já carrega a imagem de uma pessoa ausente, denuncia a presença de sua ausência, transforma a pessoa em objeto. A “dúvida de que um ser aparentemente animado esteja de fato vivo ou, inversamente, de que um objeto inanimado esteja vivo” (5) é mencionada, afinal, como um dos exemplos para a definição do conceito de “inquietante” de Freud.

Tuymans escolhe pintar a partir deste livro médico em busca de uma indiferença, sim, mas escolhe estampar essa indiferença em retratos justamente porque é impossível alcançar plenamente uma indiferença ao representar a figura humana, ainda mais o rosto. É precisamente dessa impossibilidade que Tuymans parte, e o mais interessante é que não chega a nenhum resultado novo: a indiferença continua impossível, mas a sua busca, o seu esforço, está estampado nessas carcaças e no próprio ato de pintar, condenado histórica e materialmente à relevância. Ao elencar estas imagens e refazê-las não apenas em tinta, mas em tinta a óleo, Tuymans lhes denota justamente de uma diferença, as insere no circuito de um meio artístico que, não por acaso, foi dominante na história da arte ocidental até meados do século passado.

Mas não é apenas sua história que a tinta carrega. Tuymans pinta uma tela por dia, alla prima (6), utilizando pouca tinta, pois, como relata: “eu não posso trabalhar de outra forma. É sobre realmente se focar, e isso é carregado sexualmente.” (7). Por trás das camadas de indiferença (ou talvez por cima), sua pintura é, assim, carregada de investimento libidinal. Se a fotografia, afinal, – e particularmente esses retratos produzidos para fins científicos que Tuymans utilizou – pressupõe uma limpidez em sua representação da realidade, reconfigurando mecânica ou digitalmente a realidade material em imagem, a pintura – e particularmente a pintura de Tuymans – devolve uma materialidade que haveria se perdido, “ressuscita” os retratos, refazendo-os manualmente, recriando-os em outra pele e carne. Evidentemente, essa “ressurreição” não passa de uma impressão, de um efeito, certamente realçado pelo gesto alla prima, propositalmente imperfeito, de Tuymans.

Em seu livro The Love of Painting, Isabelle Graw sustenta que a pintura, tanto como “um conjunto de práticas artísticas”, “quanto um conjunto de regras historicamente situadas que podem continuar efetivas sob novas condições históricas”, carrega “fantasias vitalísticas”. Graw engloba nessas fantasias diferentes crenças de vida na pintura, sejam associações fantasmagóricas entre a obra e seu criador, nos “sinais de atividade das pinceladas” ou na “corporeidade do pigmento”. A autora então contrapõe essa fantasia à realidade concreta da pintura, como objeto inanimado, matéria morta, e mesmo como uma commodity submetida ao fetiche da mercadoria (8), ainda que uma “commodity ideal”, sujeita à regras e consequentes valores especiais, valorizada precisamente por carregar em sua própria materialidade o seu processo de trabalho.

As cascas vazias de Tuymans também estão absortas nessas fantasias: apontam ao mesmo tempo para a vida – nas pessoas retratadas, no material pictórico (“corporeidade do pigmento”, nos termos de Graw), na contingência da pincelada – e para a morte – no rosto congelado em pintura, na na figura como objeto inanimado, na tinta como matéria morta. É interessante observar assim, o próprio termo fetiche, que surge da palavra “feitiço” em português. O termo aponta tanto para suas ramificações psicanalíticas, da relação libidinal entre sujeito e objeto, quanto para suas interpretações materialistas, na relação também libidinal do sujeito com o objeto de consumo, quanto para as origens do objeto de arte, na crença mágica e fantasmagórica no objeto. Esta crença não parece tão distante de um artista que fala que a “superstição poderia ser um pseudônimo para a arte” (9), ainda que esta seja evidente e calculadamente encenada. Mas assim o é, afinal, com tantos objetos de arte: a crença mágica já não existe mais, mas os resquícios de seus efeitos permanecem – aquilo que defende Freud, justamente, a respeito do que nos é “inquietante”: “Parece que todos nós, em nossa evolução individual, passamos por uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos, em que em nenhum de nós ela transcorreu sem deixar vestígios de traços ainda capazes de manifestação, e que tudo hoje nos parece ‘inquietante’ preenche a condição de tocar nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação.” (FREUD, 2010, p.359).

Não é de se surpreender, assim, que Tuymans tenha um interesse particular por certas figuras que estão em algum lugar entre o humano e o objeto, e que explore, justamente, através dos mecanismos formais da pintura, efeitos sugestivos nesse sentido “inquietante”. Na exposição “Intrigue: James Ensor by Luc Tuymans” (10), da qual foi curador, Tuymans dispõe em um lado da sala o quadro de James Ensor que dá título à exposição, Intrigue (1890) (Imagem 1), e no outro lado, de frente, um quadro de Léon Spilliaert, Portrait de Andrew Carnegie (1913). O quadro de Ensor, como grande parte de sua obra, apresenta algumas figuras mascaradas, e aquela que está no centro do quadro, virada de frente para nós, tem os olhos quase inteiramente pintados de preto, como os buracos da máscara, à exceção de dois pequenos pontos vermelhos. O quadro de Spilliaert também retrata sua figura com o que parecem buracos no lugar de olhos, e Tuymans achou interessante que as duas figuras estivessem frente a frente, quem sabe se olhando (11).  

Imagem 1

Ambos os pintores são grandes influências para Tuymans, e as máscaras de Ensor, afinal, não estão muito distantes de sua ideia de casca vazia. Para Ensor, também, não parece haver nada por trás da máscara, como é o caso em diversas de suas obras em que as figuras não mascaradas são simplesmente esqueletos. Mas se as máscaras de Ensor ainda teriam algum significado satírico em sua representação carnavalesca, as cascas vazias de Tuymans são apenas peles deixadas para trás, transformadas em pintura, essa outra pele.

É interessante observar, nesse sentido, outras obras de Tuymans como Geese (1987) ou Body (1990). Em Body temos um corpo infantil cuja cabeça e parte dos membros foram aparentemente cortados pelas margens do quadro. O enquadramento, aqui, escancara o aspecto fragmentário da imagem a tal ponto que mutila sua figura. Ao menos é esta a sensação de mutilação que os traços pretos horizontais ao longo do tronco do corpo também parecem corroborar, como cisões cirúrgicas. Tuymans conta que pintou a figura a partir de uma imagem de uma boneca de pano que tinha um zíper que a abria para enchê-la de seu recheio – zíper que imaginamos serem os tais traços pretos. Novamente, o corpo como uma casca vazia, um boneco sem recheio. Mas o zíper aponta também para outra ideia, que permeia a obra de Tuymans, mais uma “superstição”: a ideia de um buraco na imagem, uma entrada no quadro.

O buraco nos olhos volta em sua pintura Geese, no que poderia ser uma cena de um filme de animação infantil, onde dois gansos atravessam o quadro em primeiro plano e um caminho leva até uma casinha no fundo. O olho do primeiro ganso é um grande borrão preto, sobre o qual Tuymans fala: “Não é realmente o olho, é mais como um ponto preto. É um elemento através do qual você pode desaparecer, através do qual você poderia ser deslocado ou engolido. Na pintura há sempre um ponto fraco: uma pintura deveria sempre ter uma entrada ou buraco pelo qual você pudesse entrar” (12). 

A cabeça do segundo ganso está fora de quadro, como se o filme tivesse pausado no meio do movimento. A escolha do enquadramento, novamente, mutila a figura, corta sua cabeça: afinal, na pintura, diferentemente do cinema, não existe movimento ou som –  isto é, a possibilidade de um fora de campo – que possibilite uma percepção da continuidade deste corpo em outra instância. Toda essa pintura parece falar de movimento: entra-se pelo olho/mancha do ganso, segue-se o caminho curvado até a casa, onde sai-se pela porta, também preta e no local onde seria o ponto de fuga da perspectiva  (que o quadro evidentemente não segue à risca, apesar de haver uma mínima concordância nesse  sentido em relação à escala das figuras).

2. Tempo congelado

Este não é o único quadro de Tuymans cujo enquadramento parece provir de um momento aleatório de um filme pausado. O pintor, que durante uma época chegou a fazer filmes experimentais, trabalha frequentemente com imagens que parecem frames cinematográficos escolhidos ao acaso, que sozinhos não significam nada, indiferentes. Sua escolha por este enquadramento, entretanto, não deve ser tomada como arbitrária, pois a contingência do frame cinematográfico ganha diferentes conotações na tela de pintura. O frame cinematográfico, afinal, é algo passageiro, que nos costumeiros 24 frames por segundos, passa despercebido. Na pintura, não: a mais insignificante das imagens está fadada ao congelamento, se não perpétuo – afinal, ainda que nos engane com sua aura de eternidade, a pintura também se desgasta com o tempo –, um congelamento material, em um objeto físico e, como comentado anteriormente, precioso.

Acrescenta-se, então, mais uma justificativa para sua preciosidade: o aspecto unitário e imóvel da imagem na pintura. Ainda que exista uma narrativa por trás da imagem de Jesus, sugerindo esta narrativa escrita na Bíblia e recitada oralmente de forma fragmentária nas cerimônias religiosas, é sua imagem que recebe a adoração, sendo ela a contenção de toda essa potência narrativa em uma figura comensurável. A arbitrariedade é, novamente, impossível na pintura: quanto mais é buscada, mais evidente é a inutilidade da busca.

Na série de quatro pinturas intitulada “Die Zeit” (“O Tempo”, 1994), estas cascas vazias ganham ainda outro sentido quando enfileiradas em uma sequência. Uma vista aproximada de uma cidade com as palavras escritas “nada à vista” (13), prateleiras vazias, dois tabletes circulares e uma figura de óculos escuros, que parece, novamente, uma máscara (no caso o rosto foi de fato colado sobre a pintura). Cada uma das imagens é, a seu modo, uma casca vazia, um espaço/objeto/pessoa sem movimento, sem vida. Ao serem ordenadas e apresentadas como uma série, essa sequência de imagens parece colocar em funcionamento as potências cinematográficas imbuídas nos enquadramentos contingentes, remetendo a uma espécie de montagem fílmica, incentivando possíveis associações, possíveis narrativas. Nenhuma resposta é certa, entretanto, nenhuma associação é evidente, e qualquer tentativa de compreensão apenas nos afunda ainda mais no que nem sabemos mesmo se é um mistério ou apenas a pura arbitrariedade. O título poderia ser a chave para a solução; estariam cada uma das imagens, à sua maneira, falando sobre o tempo? A representação de momentos congelado no tempo, talvez; mas não seria toda pintura uma representação de um momento congelado no tempo? Se essas pinturas representam momentos, afinal, são momentos esvaziados, contidos em si mesmos,   contidos na tinta; não momentos passageiros, mas o tempo em si: Die Zeit.

Outra série de Tuymans, talvez a mais visualmente próxima do cinema, explora essa   materialidade de um tempo congelado, com pinturas como The Swimming Pool (1989), The Cry (1989), The Murderer (1989), Suspended (1989) e Birdwatching (1990). A proximidade com o cinema começa pela cor, que nestas pinturas é saturada, até mesmo vibrante, com algo do Technicolor do cinema dos anos 50, que já lhes denota de uma certa artificialidade e lhes insere no âmbito da ficção. Também lembram a obra do pintor Edward Hopper, cuja aproximação com o cinema já é lugar-comum, que, para Tuymans, “não pintava figuras reais. Para mim, elas são como bonecos.” (14).

As obras desta série de Tuymans foram feitas a partir de modelos de brinquedo cuja imprecisão de detalhes (não conseguimos ver nenhum rosto) e rigidez parece ser mantida. Essa informação deturpa um pouco a ideia de uma imagem cinematográfica: não são imagens pausadas, pois as próprias figuras originais são inertes – não apenas como bonecos, como as obras de Hopper, mas, de fato, bonecos. Aqui, Tuymans parece brincar justamente com a qualidade inerte da pintura: assumimos que as figuras estão congeladas pelas limitações do meio pictórico, quando na verdade elas partem de figuras estáticas – uma contradição que permeia toda sua obra e de outros pintores contemporâneos que pintam a partir de imagens. Mas, ainda que não partam de frames, as figuras nas imagens parecem, de fato, congeladas em meio a movimentos, o que já é diferente dos exemplos anteriores. Essas imagens, sim, parecem representar cenas, personagens em meio a ações interrompidas, suspensas – como diz o título de uma das pinturas e da exposição em que foram exibidas em 1990 na Antuérpia, “Suspended”.

O tempo contido nesses quadros se condensa em tensão narrativa, sem, entretanto, que revelem qualquer possível história. Os títulos de alguns fornecem algumas pistas: The Cry, nos sugere que a mulher representada esteja chorando; The Murderer nos sugere que o homem representado é um assassino; Birdwatching nos sugere que a figura esteja observando pássaros. A imprecisão de detalhes não nos permite, porém, garantir que a mulher esteja de fato chorando: há apenas a inclinação de sua mão sobre seu rosto, parcialmente sombreado por algumas poucas pinceladas. Da mesma forma, não há nada na imagem de The Murderer que nos indique um assassinato, tampouco pássaros em Birdwatching. Como qualquer ação interrompida, podemos apenas supor o que aconteceu antes ou depois, ou, como essas imagens dialogam diretamente com o cinema, o que apareceu antes ou depois. Assim, não necessariamente acompanhamos os personagens, mas as imagens, como se no plano seguinte após o de Birdwatching pudéssemos ver os tais pássaros, sob o ponto-de-vista da    personagem representada no quadro.

Mas essas pinturas não parecem apenas recortadas de um tempo narrativo, mas também de um espaço; como Body e Geese anteriormente, parecem enquadramentos fragmentários. Como se essas pequenas cenas fossem elencadas de um cenário mais amplo, isolando essas figuras em meio à suas ações, como um zoom. Parecem declarar, assim, um ponto-de-vista parcial, subjetivo, mais do que simplesmente um recorte; como se alguém estivesse observando essas figuras com um binóculo: algo próximo, afinal, de Birdwatching, pintura que parece complementar as outras da série nesse sentido, como um contra-plano ao plano ponto de vista, onde essa figura observadora poderia estar observando as outras, dos outros quadros, e não pássaros como se indica no título.

Há algo voyeurístico nestes recortes que sugerem subjetividade, uma observação escondida, que nos permite uma aproximação, por exemplo, dos filmes de Alfred Hitchcock, onde a trama detetivesca é delineada pelo olhar, como coloca Luiz Carlos Oliveira Jr.: “Em filmes como ‘Janela indiscreta’, ‘Vertigo’ e ‘Os Pássaros’, o ato de olhar é em si o motivo, o ‘tema’ da narrativa, além de ser o ponto nodal da decupagem e da trama. O olhar produz a ficção.” (15). Aqui, também, essas imagens parecem não apenas permeadas por um certo olhar, um certo ponto de vista, mas produzidas por este. A aproximação imediata que essas imagens parecem ter com o cinema, afinal, talvez provenha mais especificamente desse “plano hitchcockiano” que “fecha o campo visual sobre o objeto suspeito, aquele que, em meio à totalidade do real, torna-se um operador de ficção, um foco de intriga.” (Imagem 2).  

Imagem 2

As similaridades não terminam com Hitchcock, pois esse enquadramento pode funcionar tanto para um olhar investigativo – como neste plano de “Janela Indiscreta” (1954), onde o ponto-de-vista do binóculo do personagem detetivesco (interpretado por James Stewart) enquadra o assassino (Imagem 3) –, quanto para um olhar ameaçador, que elenca sua vítima – como o ponto-de-vista de um atirador, figura que, junto com um uso abundante de zooms, ganha proeminência nos anos 60-70 (como Davi Braga coloca em seu texto sobre “Targets”, filme de 1968, na edição anterior da Revista Limite) (Imagem 4). No caso da imagem única da pintura, da ausência de um contraplano que revele o dono do ponto-de-vista (ou quaisquer outras pistas narrativas), não sabemos quem olha essas figuras, não sabemos quais são suas intenções e se é um olhar investigador, ameaçador ou mesmo apenas voyeurístico. Podemos associar este papel ao observador de pássaros de Birdwatching, mas não há nada que indique que essas pinturas sejam parte de uma mesma narrativa; o observador de pássaros parece funcionar mais como um “intermediária[o] de nossa posição”, como diria Daniel Arasse (16), em relação aos outros quadros do que, de fato, o dono desse olhar. Em The Murderer, assim, resta a dúvida, quem é o assassino? O homem representado, talvez indo ou vindo do local do assassinato? Ou quem o observa e planeja seu assassinato? Ou seja, na prática: o pintor e consequentemente, nós, os observadores do quadro. 

Paula Mermelstein

Imagens 3 e 4

Notas:

1 – Para Clement Greenberg, “foi a ênfase conferida a planaridade inelutável da superfície que permaneceu, porém, mais fundamental do que qualquer outra coisa para os processos pelos quais a arte pictórica criticou-se e definiu-se a si mesma no modernismo. Pois só a planaridade era única e exclusiva da arte pictórica.” Em “Pintura Modernista”, 1960 (em “Clement Greenberg e o debate crítico, orgs. COTRIM, Cecília e FERREIRA, Glória).

2-  Fala de Meyer Schapiro mencionada em “Pintura: tarefa do luto” de Yve-Alain Bois (trad. por Taís Ribeiro, revista ARS: http://www.revistas.usp.br/ars/article/view/2966)

3 – Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

4 – “I take all the ideas out of individuality and just leave the shell, the body”, em entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003. No mesmo catálogo, Ulrich Look utiliza em seu texto o termo “empty shells”.

5- Em “O Inquietante” (1919), texto de Freud. Tradução disponível no livro “Freud (1917-1920) – Obras completas volume 14: “O homem dos lobos” e outros textos”.

6 – Pintar diretamente sobre a base enquanto a tinta ainda está molhada.

7 –  “I cannot work otherwise. It’s about truly focusing, and that is sexually loaded.”. Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

8 – Informada, aqui, por Karl Marx.

9 – “Superstition could be a nom de plume for art.” Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

10 – Que esteve na Royal Academy of Arts, de 29 de Outubro de 2016 à 29 de Janeiro de 2017

11 – https://www.youtube.com/watch?v=vQPmtvmA8-8&t=234s&ab_channel=FinancialTimes

12 – “It’s not really an eye, it’s more like a black dot. It’s an element through which you can disappear, through which you could be displaced or swallowed. In a painting there is always a weak spot: a painting should always have an entrance or hole through which you can enter.” Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

13 – “Nichts in Sicht”.

14 – “I have always liked Edward Hopper because he didn’t paint real figures. To me they are like puppets.”. Entrevista com Juan Vicente Aliaga no catálogo “Luc Tuymans” de 2003.

15 – Ver tese “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno” (2015), de Luiz Carlos Oliveira Jr..

16 – Em seu ensaio “A Mulher na Arca”, no livro “Nada se vê: Seis ensaios sobre pintura” (2019), tradução por Camila Boldrini e Daniel Lühmann.

O cinema como fetiche: dois curtas de Stephen Dwoskin

“É bastante revelador o quão complexa é a forma simples”

Stephen Dwoskin

O curta-metragem, em seu caráter sintético e destituído, tantas vezes, de uma função narrativa (à qual se substitui, antes, uma instância ficcional), é capaz de articular com o seu espectador outro tipo de jogo, quando seus elementos, dispostos sob uma unidade definida, resumida e simplificada no interior da obra, expressam uma espécie de “conceito”, síntese de uma experiência através de relações intrincadas. “Dirty” e “Moment”, curtas-metragens londrinos de Stephen Dwoskin, apontam, desde os seus títulos, para esta carga conceitual e à maneira como seus aspectos conteudísticos e formais se complementam de maneira exemplar.

“Dirty” (1971), a começar pelos seus créditos, escritos à mão sobre um papel amassado e sujo fotografado pela câmera, sem qualquer preciosismo de composição, demonstra já uma qualidade material que lhe será muito cara. Finalizado em 1971, trabalha com material produzido em 1965 e esta diferença de seis anos entre a sua filmagem e sua finalização é essencial ao desenvolvimento de uma nova solução expressiva pelo seu realizador: todas as imagens do filme são resultado da refilmagem dos rushes originais através do visualizador da mesa de montagem, criando imagens difusas, desfocadas e “sujas” em sua superfície material.

“Dirty” também é um filme “sujo” moralmente e é a admissão desta imoralidade que torna efetiva a sua provocação. Nele se veem duas mulheres nuas sobre uma cama, compartilhando uma mesma garrafa de vinho, que oferecem uma à outra, trocando constantemente de mãos. Situação extremamente íntima, de um caráter marcadamente voyeurista, estas ações são apresentadas pela repetição e fixação das mesmas imagens, fixando os frames exatamente nos momentos de toque entre as duas, sublinhando o caráter erótico dos seus gestos e sugerindo a eminência de um ato sexual entre elas.

A partir de um pequeno conjunto de imagens e situações – que não constituem “cenas” propriamente ditas, em um sentido dramático, mas pequenas vistas fugazes de gestos desempenhados por suas duas atrizes –, Dwoskin desacelera e fixa os frames, muitas vezes desenvolvendo novos enquadramentos e movimentos de câmera sobre a sua superfície estática, observando os pormenores de cada detalhe de seu registro e explorando suas diferentes capacidades expressivas. Assim é que imagens como as das mulheres levando a garrafa à boca adquirem um sentido sexual bastante evidente: seu gesto em direção a ela torna-se constante, incisivamente sublinhado pela repetição e decomposição do movimento efetuada por Dwoskin, que pouco a pouco estabelece um crescente potencial erótico no que diz respeito a este objeto fálico que ambas possuem em mãos.

No entanto, a fragmentação das ações e o constante escurecimento dos frames pela flicagem da tela neste mesmo procedimento impedem que se veja com maior clareza aquilo que efetivamente acontece entre as mulheres na confusão de suas movimentações sobre a cama, guardando apenas o caráter sugestivo das suas relações. Dwoskin, afinal, não oferece estas imagens ao seu espectador sem contrapartidas, pois a imposição desta impossibilidade do olhar evidencia uma expectativa frustrada pelo visionamento do ato sexual, denunciando, no limite das suas possibilidades de significação, que aquele que se torna “sujo” é, em realidade, este mesmo espectador.

Esta impossibilidade do olhar está também presente, de maneira distinta, em “Moment” (1968). Nele, não há elementos que se sobreponham à superfície das suas imagens, nem quaisquer máscaras, efeitos ou contextos dramáticos, mas tão simplesmente uma representação muito centralizada na relação entre ator, câmera e cineasta, de que decorre o registro frontal de uma ação que é disposta muito explicitamente para a câmera.

Toda esta ação será resumida em um longo plano de aproximadamente dez minutos (correspondente à integridade do rolo de filme), mantido sob um único enquadramento, sem movimentações de câmera, sem entradas e saídas de quadro, sem deslocamentos espaciais de sua única atriz, que permanecerá enquadrada em um primeiro plano do começo ao fim desta duração. Assim, é pela proximidade da câmera em relação a sua atriz que esta impossibilidade do olhar se perpetua, determinada exatamente pela limitação àquilo que está espacialmente contido nos limites restritos do quadro.

A princípio, vemos esta atriz balançar a cabeça positivamente, possivelmente em concordância com Dwoskin, atrás da câmera, para que a ação do filme comece, gesto que aponta não somente a presença de uma outra pessoa (o realizador), como também, a partir de um detalhe de preparação que é guardado pela preservação da unidade do rolo do filme, se refere ao próprio espectador que a observa, fazendo-lhe uma menção indireta que será enfatizada nos minutos seguintes. A atriz acende um cigarro (que manterá sempre visível em uma de suas mãos), dá alguns tragos, e logo começa sua ação, fora de quadro: ela se masturba, a princípio de maneira indiscernível, mas pouco a pouco sugerida pelo ritmo cada vez mais intenso de sua vibração corporal e pela recorrência de seu olhar, a um só tempo de êxtase e provocação, em direção à câmera.

Imagem ausente, a masturbação corresponde ao eixo central deste filme, em que não há nada acessório: sua duração corresponde a da totalidade de um rolo de película, ao tempo que a personagem leva para chegar até o orgasmo e o seu cigarro para queimar completamente. Na perfeição do encaixe entre a representação e o suporte em que ela se apresenta se impõe um senso de economia absoluto, em que a realização é possível somente a partir de sua adequação à limitação do seu meio expressivo, gesto contraditório de domínio e submissão que evidencia o caráter plástico e material de “Moment” e das relações os seus elementos, que chegam juntos ao esgotamento, em uma espécie de gozo simultâneo.

Jamais é evidente se a masturbação apresentada aqui é verdadeira ou falsa, se o filme se constrói a partir de um realismo radical ou de um puro artifício – questão que permanece suspensa ao longo do registro e que o filme não se deseja responder, valorizando esta necessária e decisiva imprecisão. Mais uma vez, aqui é o cinema, o espectador e seu olhar que se põem em questão, apontando ao fetichismo do próprio dispositivo cinematográfico e do ato de criação, nas possibilidades de manipulação, na obsessão pela perfeição dos encaixes e, principalmente, nas potências sugestivas da imagem e seus jogos de representação.

Matheus Zenom

As tintas de Hong Sang-soo

Li, em um folha de sala da Cinemateca Portuguesa, após uma das sessões da retrospectiva destinada ao cineasta coreano Hong Sang-soo, uma afirmação que achei muitíssimo curiosa (apesar de um bocado vulgar), realizada por Antonio Rodrigues. Por não ter o texto, parafraseio: há quem diga que todos os filmes de Hong são iguais – talvez sejam as mesmas pessoas que dizem que todos os orientais têm a mesma cara. Curioso paralelo estabelecido aqui, entre as feições humanas e as feições de narrativas. Os filmes de Hong Sang-soo, para os desavisados, possuem, de fato, feições extremamente parecidas. Os filmes, em nossa memória, acabam até por misturar-se, justamente por caracterizarem-se de uma maneira semelhante (apesar de completamente diferentes entre si, alguns traços são parecidos). Penso, portanto, em duas frases, de dois grandes cineastas. A primeira, de Jean Renoir, é justamente a máxima de que todo grande cineasta faz o mesmo filme a vida toda. A outra, de Robert Bresson, é um aforismo de suas “Notas sobre o cinematógrafo”: não mudar nada, para que tudo seja diferente.

Hong Sang-soo, por sua vez, tem uma frase que acho essencial para entender o seu cinema, que também parafraseio: o único tema do meu cinema sou eu mesmo, porque sou a única coisa que conheço. Se os filmes de Hong são tidos frequentemente como parecidos, isto acontece porque o cineasta está, em todos eles, falando sobre as coisas que conhece: homens, mulheres, comida, álcool, etc., coisas que fazem parte do seu universo. Os atores são muitas vezes, também, os mesmos. A repetição de temas em seus filmes é constante porque estes temas são, eles próprios, recorrentes em nossas vidas. Conseguimos enxergar, também, uma certa obsessão bressoniana em relação a aspectos da linguagem cinematográfica: o uso cirúrgico do zoom (que reinscreve o plano dentro dele mesmo) é uma das marcas registradas de Hong, sendo um elemento da linguagem que acaba por aprimorar-se com o tempo, através, justamente, de suas repetições.

Repetição. Aí está uma palavra essencial para entender o cinema de Hong Sang-soo. Novamente Bresson: não mudar nada, para que tudo seja diferente. É impossível entrarmos no mesmo rio duas vezes, é impossível assistirmos o mesmo filme duas vezes, é impossível realizar o mesmo filme duas vezes (apesar da receita ser similar). Quando experienciamos assistir à obra de um cineasta, fazemos um verdadeiro percurso do seu desenvolvimento, do estabelecimento do seu estilo, daquilo que o faz um autor. Algumas escolhas se repetem, outras variam, mas há sempre um acúmulo de sentido em relação à obra.

Pensemos nos filmes como estrelas: estão lá, brilhando no céu do corpus de um realizador. Quais são as relações entre estas estrelas? Quais as constelações? Esses traços entre as estrelas são dados por nós enquanto nos tornamos íntimos dos filmes, quando passamos justamente a conhecer aquilo que os conecta: acumulação constante dos sentidos que um autor apresenta. Conforme assistimos e reassistimos aos filmes, conforme este acúmulo acontece, os sentidos das imagens acabam por mudar – e, consequentemente, as relações existentes entre estas imagens, entre estes filmes. Contudo, como sabemos, as estrelas de onde as vemos têm todas elas características que acabam por se repetir, sejam elas de formato, de cor ou brilho. Ao analisar uma obra, a mesma coisa acontece: o efeito acaba por se repetir, justamente, porque alguns aspectos e procedimentos de construção entre os filmes também se repetem. Renoir, parece-me, falava de algo similar a este efeito repetitivo quando fez sua afirmação.

Entretanto, há algumas estrelas que brilham mais forte nas constelações dos autores, as obras-prima, as estrelas que acabam por nortear o sentido do caminho traçado. Filmes-síntese de toda uma exploração do cinema, filmes que acumulam em si todo o sentido de um estilo, de uma obra: este seria o caso de Right Now, Wrong Then (2017).

O filme se inicia com uma cartela: “Right Then, Wrong Now”.A história, como sempre, é simples: um homem e uma mulher se conhecem, comem e bebem, apaixonam-se, conversam, discutem. O filme acaba. Então, o filme se inicia novamente. A cartela repete-se, porém, com uma variação: “Right Now, Wrong Then”.O filme acontece de novo, as duas personagens conhecem-se novamente, passam pelos mesmos lugares, mas a repetição não ocorre sem estar acompanhada da variação. Posturas mudam, jeitos de encarar as mesmas coisas, gestos são diferentes e parecidos, os enquadramentos às vezes são e outras não são os mesmos. As coisas são as mesmas, mas são completamente diferentes.

O que acontece nas histórias, em ambas às vezes, é o seguinte: um diretor de cinema chamado Han Chumsu (Jeong Jae-yeong) chega à cidade de Suwon para apresentar um de seus filmes em um festival e realizar uma conversa com o público. O diretor chega um dia antes da exibição de seu filme e então decide visitar um templo, onde conhece Yoon Heejun (Kim Min-hee), uma jovem pintora. Conversam um pouco, decidem tomar um café e depois vão ao ateliê de Yoon Heejun. Depois, jantam, bebem e visitam alguns amigos dela. Chumsu e Heejun caminham pelas ruas de noite até a casa dela. No dia seguinte, Chumsu apresenta seu filme. Na primeira variação da história, tem uma discussão com o público. Na segunda, reencontra Heejun enquanto ela assiste a um de seus filmes. A primeira versão da história possui narração em off, coisa que não acontece na segunda vez. A linha narrativa é basicamente a mesma, excetuando pequenas mudanças. Contudo, parece-me que a cor da tinta desta narrativa acaba por mudar quando a olhamos novamente.

Tinta. É uma metáfora simples, banal: um diretor de cinema realiza um filme como um pintor faz um quadro. O próprio Hong Sang-soo, em entrevistas, já realizou comparações similares a esta, ao dizer ter “inveja dos pintores que podem exercer sua disciplina diariamente”[1]. Apesar de Hong diferenciar as duas atividades em sua afirmação, ainda é possível pensar a metáfora da tinta utilizada pelos pintores e da “tinta” utilizada pelos cineastas. Tanto um quanto o outro escolhem determinadas cores e pincelam-as de uma determinada maneira. Em Right Now, Wrong Then, por exemplo, Hong Sang-soo realizauma vinculação da própria construção formal do filme com a atividade artística de uma das personagens, a pintora Heejun.

Como sabemos, o filme acontece duas vezes. O filme repete-se. Duas vezes Chumsu e Heejun vão ao ateliê, duas vezes Heejun pinta um quadro (somente uma vez tomam chá, curiosamente). Repetição. Na primeira vez, observamos o pormenor de um pequeno prato com tinta (filmado da esquerda para a direita) enquanto Heejun ajusta a tonalidade da cor. Quando está bem, a câmera produz um zoom out. Neste momento, agora posicionada em plano médio, vemos Heejun ao lado do seu quadro realizando uma pincelada. Temos uma visão geral do quadro:

Na segunda vez que a cena acontece, contudo, Heejun pinta de outra maneira (Hong Sang-soo, também, filma de outra maneira — desta vez o que está sendo enquadrado é o verso do quadro, filmado da direita para a esquerda). A cor produzida pela pintora e o pincel utilizado também são diferentes: ao invés do cor-de-rosa alaranjado do primeiro momento, o que temos agora é um verde fosforecente. Quando Heejun termina de ajustar a tonalidade de sua tinta, a câmera produz mais uma vez um zoom out. Entretanto, desta vez, vemos Chumsu observando ostensivamente o quadro e vemos Heejun realizando a pincelada. Não sabemos o teor do quadro, justamente por estar sendo filmado a partir de seu verso (na verdade, filma-se muito mais a sua lateral). A pintura é omitida e assim permanecerá ao longo de toda a cena:

Outra palavra essencial para pensar em relação ao cinema de Hong é a variação. Creio que seja impossível repetir a mesma ação sem que haja variações de elementos nessa repetição. Caso você queira colocar um copo no exato mesmo lugar que você o colocou anteriormente, seria preciso uma marca exata de onde este copo fora colocado. Se você, às cegas, tentar colocá-lo no mesmo lugar, uma pequena variação de posição irá acontecer. É isto o que acontece com o cinema de Hong Sang-soo: repetição, variação.  

As duas cenas prosseguem, como já visto, de jeitos completamente diferentes. Há uma variação de uma cena para a outra, como há uma variação da primeira para a segunda parte do filme. Enquanto na primeira vez Chumsu parece querer impressionar Heejun ao elogiar seu quadro, chegando até a parecer emocionado com a pintura, na segunda vez ele critica a pintura abertamente. Enquanto na primeira cena ela não se chateia (por ele muito provavelmente haver mentido), na segunda ela chateia-se justamente por ele ter falado a verdade, a sua verdadeira opinião sobre o quadro que pintou. Temos uma conduta completamente diferente de Chumsu e, consequentemente, uma reação completamente diversa também de Heejun. Vamos do cor-de-rosa ao verde.

Outra questão essencial para pensarmos a dupla-vida deste quadro no filme é a elipse que Hong realiza na segunda parte do filme. Vemos claramente o quadro uma primeira vez; na segunda, não vemos absolutamente nada. Sabemos, entretanto, que a tinta e o pincel utilizados por Heejun são diferentes. Se Hong revelasse o conteúdo do segundo quadro, teríamos uma aproximação concreta entre as duas obras. Saberíamos no que elas se assemelham e no quê elas se diferenciam, dinâmica muito parecida com a estabelecida por nós para enxergarmos as duas partes do filme. Entretanto, ao não explicitar o segundo quadro, Hong quebra com a possibilidade de comparação entre as pinturas, como se o mais importante fosse o estabelecimento da distinção entre os dois quadros e não os pormenores exatos que diferenciam as duas pinturas. Sabemos apenas que um tem a pincelada cor-de-rosa, enquanto o outro possui o traço verde brilhante.

Por quê fazer uma coisa de uma determinada maneira e não de outra? Por qual motivo Chumsu, age de um determinado jeito na primeira vez e age de um jeito completamente diferente na segunda? Por qual motivo Heejun pinta da primeira vez o quadro de rosa, e da segunda de verde? Por qual motivo Hong Sang-soo opta por mostrar o quadro da primeira vez e não mostrá-lo da segunda? Nenhuma destas perguntas possuem respostas: ainda bem! O que Hong Sang-soo faz em seu filme é estabelecer perguntas e apenas possibilidades de respostas. Atribuir algum motivo a qualquer uma destas decisões parece-me equivocado: as diferenças e semelhanças entre as duas partes estão presentes justamente para ficarem uma ao lado da outra, ou melhor: uma depoisda outra. Há uma questão primordial entre estas duas partes de Right Now, Wrong Then que é o conceito da acumulação. Hong Sang-soo constrói sua narrativa (e sua obra), portanto, a partir destas três vigas estruturais: repetição, variação e acumulação. Vejamos como acúmulo narrativo entre as duas partes de Right Now, Wrong Then opera.

O filme somente se repente, somente “acontece de novo” depois de uma hora da sua primeira parte. A duração é essencial para a sensação acumulativa entre a segunda parte e a primeira, justamente por haver um passado existente entre todos nós, uma memória comum entre o espectador, as personagens, os atores e o realizador. Toda a segunda parte do filme acontece com toda a presença do passado da primeira, há verdadeiramente um acúmulo de experiência. Como quando lemos um poema que gostamos muito pela segunda vez, o passado da primeira leitura ainda estará vivo e influenciará a segunda vez que nos relacionamos com a obra. 

A lembrança do que se passou (e o fato desta ação nunca ser plena – nunca lembramo-nos de tudo) é imprescindível para que as duas partes passem a existir juntas. Se as duas partes do filme fossem os quadros pintados por Heejun, poderíamos colocá-los lado a lado e compará-los, apesar de Hong Sang-soo não nos deixar fazer isto. Por se tratarem de dois momentos que acontecem um depois do outro, somos obrigados a lembrar do momento anterior quando estamos apreendendo o seguinte, mais ou menos o que sempre acontece quando assistimos a um filme ou vivemos a nossa vida, o passado está aqui conosco e influencia completamente a nossa apreensão do presente. O sentido de Right Now, Wrong Then se dá pela acumulação deste passado e da possibilidade de sua repetição, de sua variação. Quando me lembro de Right Now, Wrong Then, enquanto escrevo este texto, as tintas parecem estar misturando-se cada vez mais.

Paulo Martins Filho

[1] Segundo entrevista ao Télérama, durante o Festival de Cannes de 2017. Disponível em: https://www.telerama.fr/cinema/la-methode-de-tournage-de-hong-sang-soo-je-m-adapte-a-la-meteo-et-je-laisse-les-idees-venir,159229.php

A maravilha do acaso

Em todo caso, não confie assim na primeira pessoa que encontrar”

É isto que François ouve de Lucie, garota que conheceu de sopetão em um ônibus, quando ela ainda compra a ideia de que ele seria um detetive. Evidentemente a recomendação é válida, mas jamais incorporável para o tipo de filme que Éric Rohmer faz em La Femme de L’Aviateur, em que o acaso impera sobre qualquer tipo de minúcia pré-definida, desde seus desenrolos narrativos até sua mise-en-scène.


Inaugurador da série “Comédias e Provérbios”, o filme é inspirado na máxima “é impossível parar de pensar”, que comenta sobre o caráter de pensamento especulativo dos personagens que, quase sempre envolvidos em situações amorosas, têm a imaginação elevada ao extremo, tornando-a suscetível ao passo que até mesmo o menor detalhe que se apresente a cada passo que a narrativa toma é capaz de inflar ainda mais o estado de teorização excessiva por parte deles. Esse comportamento, presente também em outros filmes do conjunto, caracteriza então uma certa homogeneidade entre eles e permite diferenciar as ‘Comédias’ da série predecessora de Rohmer, “Contos Morais”: lá, os personagens não parecem tão abertos às imprevisibilidades que surgem, mas sim presos a alguma teoria por eles elaborada e que é defendida do início ao fim (Le Genou de Claire é um exemplo muito claro), de modo completamente oposto ao que o provérbio que La Femme postula. Há, também, uma diferença que se dá no próprio registro fílmico, de teor muito mais próximo do documental, tanto pela maneira de filmar quanto pelos locais onde toma parte a ação.

A trama se apresenta quando François, um estudante e trabalhador, deixa o plantão noturno do trabalho e decide entregar um bilhete à sua companheira, Anne, cujo complicado relacionamento logo se revela quase platônico. Sem conseguir deixar o recado, ele sai e, ao voltar, flagra-a com o aviador Christian, um ex-namorado dela que havia sumido. No almoço, após procurá-la “por todos os cafés do bairro”, como o próprio diz, ele encontra a garota e a confronta sobre o flagra, sendo imediatamente dispensado. Já dissuadido de continuar a importunar Anne e pronto para viver o dia propriamente, ele logo vê o tal rapaz sentado num café e decide segui-lo, sendo instigado principalmente após uma moça desconhecida se juntar a companhia de Christian.

Desde o começo, Rohmer experimenta com as decisões narrativas completamente casuais que são tomadas: François apenas tem a visão de Anne e o aviador saindo juntos do apartamento por não ter tido tinta na caneta para deixar o recado mais cedo – o fato gera até uma pequena gag, já que Christian chega de táxi à esquina do prédio da moça no exato momento em que François vira para ir à papelaria, evitando um possível confronto por questão de detalhes. A própria investigação que toma conta do filme se inicia por um mero vislumbre de susto que o rapaz tem do aviador, quando fazia uma passagem corriqueira por seu local de trabalho, e que resulta na tomada de decisão de acompanhá-lo completamente por impulso.

Se essa sucessão de eventos esporádicos lembra (por que não?) algo de natureza onírica, o filme faz questão de brincar com isso a partir da perspectiva de seu protagonista, exausto do pós-labor: o próprio François admite, conversando com Lucie, já não saber mais se está acordado ou sonhando. Quando se senta no café após encontrar o aviador, logo cai no sono e um efeito de íris em direção ao seu rosto fecha o plano. Em seguida, quando o mesmo efeito abre a imagem, algum tempo se passou (jamais sabemos quanto cada elipse omite; o filme é toda uma trama de, provavelmente, 12 horas diegéticas condensadas em quase 2 de duração). O aviador agora tem a companhia de uma loira misteriosa, e aí se inicia a trama de perseguição, quase como num indício de que fora preciso ele dormir, e então sonhar, para que a situação, por si só já interessante, ganhasse contornos ainda mais envolventes.

Acompanhando esta perseguição, o filme imbui em seu registro uma natureza documental. A despeito de algumas cenas filmadas em interiores mais reservados (apartamentos, principalmente), toda a ação passa a se desenrolar por locações como parques, ônibus e cafés, aproveitando-se da espontaneidade emergente desses lugares. Similar à essa lógica de acontecimentos ocasionais que tem o filme, também se mostra livre a forma que o diretor escolhe para capturar esses momentos, não se fechando em uma rigidez sobre como abordar as cenas. Em um diálogo, por exemplo, não há uma limitação a tradicional convenção de campo e contracampo, mas sim uma liberdade da câmera para se perder nas expressões de cada personagem, por vezes deixando o declamador no fora de campo e assim tornando a filmagem da conversa mais solta, quase “irregular”, mas de uma irregularidade totalmente coerente ao método aplicado por Rohmer durante o filme. Se é possível falar de alguma “regra” no que concerne à decupagem aqui, ela parece ser muito simples: estar aberto ao que se apresenta à câmera nos espaços de Paris.

Durante uma longa cena na beira do lago com François e Lucie, enquanto ambos observam o casal à distância, frequentemente há uma intercalação com planos de pessoas comuns que olham para as câmeras – idosos e crianças, por exemplo. Esses planos, que operam um corte bruto em longos diálogos travados pelos personagens principais, não aparentam estabelecer qualquer relação anterior ou posterior de continuidade com a conversa que acompanhávamos, a não ser pelo som em off das vozes que é preservado. Como se já não bastassem a fotografia natural e a ambiência sonora jamais cessante, Rohmer acha, no meio do diálogo, espaço para nos lembrar da vitalidade daqueles locais onde toma lugar a ação. É o atestado de sua abertura ao acaso que se dá não só na diegese, mas também na realização, como se, no meio de toda uma filmagem objetiva, fossem necessários 3 ou 4 takes para capturar algo fora do script e desanuviar mais ainda o filme de sua carga ficcional, incorporando nele um verdadeiro documento da cidade.

É em Lucie, essa personagem tão predisposta à aventura (e que poderia ser confundida mesmo com uma figurante em sua primeira cena no ônibus), que parece se manifestar mais intensamente uma marcante característica do cinema de Rohmer, que são seus diálogos. O trabalho feito aqui aproxima em muito o filmedo ápice de espontaneidade vista em outra obra de ‘Comédias’, Le Rayon Vert (1986).A todo momento, a menina instiga o protagonista a comentar sobre essa situação investigativa, o relacionamento com Anne e sobre ele mesmo, em uma troca inesperada e quase absurda de tão frutífera para dois desconhecidos. A palavra aqui jamais se esgota, mas sempre renova a narrativa e lhe mantém de pé: em certo momento, François ameaça cair no sono novamente e Lucie acorda-o, sem deixar a peteca que segura o ritmo cair, mantendo a conversa viva a todo tempo. Logo se percebe que o casal, outrora foco da investigação, já não representa mais a pedra angular da situação: virou mero pretexto. O lance todo que se segue é muito mais pertinente ao interesse aparentemente mútuo que se desenvolve entre ambos.

O final do filme, então, amalgama todo o sentimento de acaso – e também de fracasso amoroso, como não poderia faltar em Rohmer – que lhe é tão caro. Ao ir até a casa de Lucie para entregar-lhe uma carta, contando-a sobre a suposta verdade que finalmente descobrira, através de Anne, sobre o aviador e a moça (irmã ou amante, nesse ponto o fato já não parece mais importar tanto, nem a ele e tampouco a nós), François descobre que o namorado dela, cuja pista de identidade fora, por coincidência ou não, bem escondida durante todo o tempo que passaram juntos, é seu colega de trabalho nos correios, que até então tinha tido uma participação ínfima na trama. Se mais uma vez a coisa toda remete a um sonho, esse desfecho seria então o ápice, a hora derradeira em que o prazer, o familiar e a estranheza se chocam e o sonhador finalmente acorda. Se ainda não põe em prática o modelo dos filmes posteriores de “Comédia e Provérbios” em que o plano final é exatamente igual ao primeiro, La Femme de L’Aviateur termina, pelo menos, com o mesmo sentimento e situação: o flagra seguido da desolação. Tendo sido necessário um dia todo de perambulação por Paris e mais uma desilusão amorosa, é provável que, dessa vez, François finalmente pare de pensar.

Davi Braga

Linguagem de George Brecht

Os trabalhos mais conhecidos de George Brecht, proeminente artista conceitual americano associado ao Fluxus de George Maciunas, são as suas chamadas “event-scores” (“partituras de evento”), realizadas entre 1959 e 1963: “instruções” escritas em pequenas cartelas, cada uma delas dispondo de um título e uma proposição de ação a ser performada, a seguir, pelo seu interlocutor. A priori, estes cartões eram enviados individualmente a seus conhecidos e alguns deles recebem mesmo uma dedicatória específica para seu interlocutor, impondo um ato de leitura contingente e particularizado. Mais tarde, reproduções de todos eles serão reunidas e comercializadas em uma caixa intitulada “Water Yam”.

Muito do que nessas cartelas se apresenta (bem como em outros trabalhos do Fluxus) é inspirado pela experiência dadaísta do início do século e dialoga estritamente com as propostas “performáticas” de John Cage, amigo de Brecht, a partir do qual ele formulou e desenvolveu o conceito de suas “event-scores”. Esta afinidade se expressa em partituras como “Instruction: turn on a radio”, em que há um aspecto musical fragmentário, tomado do som aleatório que se emite pelo rádio, como efeito imediato do ligar e desligar do aparelho. Em outras cartelas, se impõe a destituição das funções utilitárias de determinados objetos associados à prática “performática”, como em “Flute Solo: disassembling: assembling”, em que, ao invés de se tocar a flauta, se indicam os atos de desmontá-la e montá-la novamente, ignorando completamente de sua função como instrumento musical. Algo semelhante acontece em “Piano Piece, 1962: a vase of flowers on(to) a piano”, que trata apenas de usar um piano como apoio para o vaso de plantas, tomando-o apenas como móvel doméstico, como superfície de suporte.

Ainda que a maioria das “event-scores” tenha sido escrita pensando em levá-las a fundo como performance, estas cartelas possuem um valor particular pela linguagem que nelas se concentra e que ressalta também o seu lado conceitual, para além de suas características simplesmente performáticas. Neste mesmo “Flute Solo”, por exemplo, há um tensionamento entre o sentido do título da cartela, diretamente associado a uma partitura convencional, com a indicação que vem logo a seguir, gerando uma completa inversão de expectativas ao sugerir este gesto sem qualquer tipo de finalidade.

Algumas destas cartelas põem em questão a própria ideia de instrução da performance, como em “Impossible Effort”, em que apenas “faça 1” e “faça 2” se apresentam, sem nada que estes números indiquem especificamente, assim tornando o “esforço impossível” justamente pela imensa abertura de possibilidades de ação que ali se dispõem, ausência de delimitações que dificulta qualquer tomada de qualquer atitude. Aí opera também o senso de humor de George Brecht: “Event: pulse start: pulse stop” remete à própria ideia da circulação sanguínea e de estar vivo, dialogando com “Two Approximations:(: obituary:)”, que, pela única apresentação da palavra “obituário”, sugere a “aproximação” entre datas de nascimento e morte. Estas “instruções”, naturalmente desempenhadas sem qualquer tipo de esforço que o seu interlocutor precise ter, evidenciam um caráter essencialmente irônico destas cartelas em relação a tomada de ação em si e representam muito bem o que nelas há de lúdico e cotidiano.

A impossibilidade do “evento” proposto se aprofunda em outros casos, como em “Six Exhibits”, em que se subverte a ideia da sala de exposição, tomando-a não como suporte para outras obras, mas como as obras em si, pela dissociação de cada um dos seus seis elementos (o teto, as quatro paredes e o chão). Esta ideia ganha continuidade em “Word Event”, em que se pretende criar um evento “da palavra”, no singular, no qual a única que se dispõe, efetivamente, a seguir, é “saída”: assim se apresenta um espaço negativo, vazio, em que se entra apenas para sair, como se somente uma placa com esta indicação ali houvesse, apontando, no limite, a uma negação da materialização do objeto artístico e do espaço de exibição em si.

De fato, este tratamento irônico à possibilidade de performance está em “eventos” em que não apenas a ação é totalmente impossível, como é, de fato, absurda a ideia de sua proposição. “Keyhole: through either side” descreve a condição de um objeto sem qualquer tipo de ação humana que possa ser desempenhada a partir dele. “Mirror: reflecting: reflecting” sugere continuidade da ação de reflexão do espelho, evidenciando a sua existência e propondo que este objeto ordinário desempenha por si mesmo esta “ação”, como se ela não fosse simplesmente uma condição inerente a sua existência material.

A partir disto, há algumas cartelas que destacam não exatamente uma ação, mas uma apresentação de objetos domésticos que denotam também o seu processo de composição como pequenas observações tomadas no dia-a-dia. “Sink: on a white sink: toothbrushes: black soap” é como tão simplesmente o registro de uma imagem, um instantâneo fotográfico que mostra a oposição entre a pia branca e o sabão negro, semelhante à de “suitcase: black suitcase: white objects”. Em “3 Table and Chair Events”, três ações ordinárias neste espaço doméstico, em que a leitura de um jornal, um jogo e a louça disposta para refeição são dispostos. “Table: on a white table: glasses, a puzzle: and: (having to do with smoking)” trata novamente de objetos domésticos, abrindo ainda a margem de imprecisão para que o leitor seja capaz ele mesmo de definir que objeto que “tem a ver com fumar” pode estar ali presente junto, completando essa composição.

Assim é que estas proposições se tornam mais direcionadas a uma projeção do olhar, sem que se tenha de agir, necessariamente. Em “Smoke: where it seems to come from: where it seems to go to” se indica o acompanhamento do movimento desta fumaça que se desloca em um ambiente. Isto se desdobra também em “Three Lamp Events”, em que se observa um movimento nas mudanças entre estas três lâmpadas, a primeira que, de acesa, se apaga; a terceira que, de apagada, se acende; e a segunda, indicada apenas como “lâmpada”, como se tratasse de apenas destacar o objeto, mantendo uma mesma aparência, sem tomada de ação. “Three Windows” terá estrutura semelhante, mas já complexificada, apontando uma janela que se fecha e outra que se abre, restando uma terceira janela omissa neste texto, na qual (a sugestão leva a pensar) se coloca o espectador que observa as outras duas, implicando um olhar diretamente atuante como elemento centralizador destas relações. Se em “Word Event” há um “espaço negativo”, em “Three Window Events” ele definitivamente é positivo, pois enquanto o primeiro representa a pura impossibilidade de realização, no segundo ela é possibilitada exatamente pela noção imagética que o ponto-de-vista proposto oferece.

Sendo estas cartelas pequenos objetos sem um valor material destacado, cuja expressão se define de modo essencialmente conceitual, é no jogo presente em sua própria estrutura de linguagem, em sua inversão e laconismo, bem como nas possibilidades de projeção que elas oferecem, que estes eventos são “realizados”. Assim, em todos estes trabalhos se manifesta uma espécie de moldura pela eleição de um objeto de acesso cotidiano em comum entre Brecht e seu interlocutor (seja ele material ou projetado, como em “Three Windows”), partindo de uma dimensão espacial deliberadamente apartada entre ambos para aproximar-se através desta possibilidade de identificação através do texto, em seu aspecto de cartão-postal, dependente da necessidade de participação ativa de seu interlocutor , que lhe completa o sentido e a comunicação.

Matheus Zenom

Yi Yi (Edward Yang, 2000)

O último filme de Edward Yang, Yi Yi (2000), se inicia com um casamento (e a expectativa por uma nova vida, tanto a do bebê por nascer, quanto a nova dinâmica do casal que figura a celebração) e acaba com um funeral, indo de um cenário com tons saturados de vermelho a outro povoado de personagens trajados em preto. Da simples, porém expressiva, antítese configurada pelos dois extremos do longa, é possível identificar a temática que lhe serve de força motriz, e um olhar geral sobre os temas com os quais trabalha diretamente – a descoberta da vida, problemas românticos, o luto… – evidencia a expansão da gama sensível do filme, tratando de assuntos comuns a todos nós: as coisas simples da vida, como o título brasileiro coloca precisamente.

Se em trabalhos anteriores como Taipei Story (1985) e A Brighter Summer Day (1991) as questões quase que exclusivamente pertinentes à cultura e identidade taiwanesa eram as baterias que moviam a narrativa, aqui os temas parecem, de algum modo, mais abrangentes. Seguindo uma família em que cada membro lida com algum anseio pessoal, ao mesmo tempo em que todos se preparam para digerir a iminente partida da avó (cuja saúde já está deteriorada), Yang parece lidar em Yi Yi com os temas mais universais de sua carreira. Não se trata de uma redução completa do papel do país no longa; ele está ali, inclusive com sua importância particular no que tange a modernização crescente de Taipei – como é visto, por exemplo, na trama do pai e seus negócios empresariais, de certa forma reverberando o que já fora abordado no filme de 1985, ou até mesmo em That Day, On the Beach (1983).

De pouco em pouco, Yang vai costurando e aproximando essas tramas que a princípio parecem se dispor de maneira isolada, cada qual em seu âmbito singular e tendo apenas o laço familiar como elemento unificador, para reforçar a ideia de uma universalidade temática. Quando o pai da família parece entrar de cabeça numa crise de meia idade, é justamente seu filho, o adorável Yang-Yang, quem passa a bombardeá-lo de questões sobre o mundo que se abre para ele. A ex-cunhada da mãe, que não superou a separação com o noivo da cerimônia de abertura, soa mesmo como uma versão mais exagerada do que se passa com o pai da família, que revisita um romance antigo. E ele, por sua vez, tem sua história de certo modo refletida pela filha Ting-Ting, que começa a se envolver amorosamente com um rapaz, fato explorado em uma bela sequência de montagem paralela que intercala os encontros de pai e filha.

Dessa grande juntura narrativa familiar que é construída, são postas em jogo questões metalinguísticas que, para além do próprio filme, parecem dialogar mesmo com toda a carreira de Edward Yang. O caçula da família, no diálogo filosófico com o pai, lhe pergunta “Só podemos conhecer as coisas pela metade?”, um questionamento que alude a vários dos filmes do taiwanês, em que a verdade é sempre elemento pivotal (lembrar, principalmente, de ‘That Day,’ e ‘Taipei Story’). Ele logo passa a tirar fotografias a todo momento, buscando mostrar aos outros aquilo que eles não podem ver de si mesmos, e também elas se inserem em uma lógica meta, já que o próprio diretor faz questão de não nos omitir os detalhes que se escondem por trás das ações de seus personagens. Tomando a situação da mãe como exemplo, não nos é escondido o fato de que o seu suposto retiro espiritual não passou de uma máscara conveniente que ela veste para, de algum modo, amenizar a iminente tragédia que está por tomar lugar na família. Desse zelo pela intimidade – e também a subjetividade, como quando acompanhamos o sonho da filha mais velha antes que a avó faleça – o retrato dessa família se faz mais completo. Se Yang-Yang fotografa as nucas daqueles próximos a ele para que tenham uma visão “privilegiada” do real, o mesmo busca fazer para nós o outro Yang, o arquiteto de toda essa obra, nos fazendo cúmplices dos personagens em vários momentos.

Como de praxe em sua filmografia, o cineasta lança mão de um rigor formal muito bem definido, que, se a priori apresenta uma força dramática simples para as cenas, funciona em uma espécie de acúmulo das situações apresentadas até seu desfecho. A decupagem em planos longos e muitas vezes estáticos maximiza qualquer expressão, gesto ou até silêncio que estejam em cena. Em certo momento num restaurante, o pai NJ fica completamente absorto em seu próprio pensamento enquanto aprecia uma interpretação de Sonata ao Luar, feita pelo japonês com quem realizava negócios. Ele não diz nada, mas tanto o silêncio quanto sua reclusão emocional dão um certo indício de para onde toda aquela melancolia o direcionaria: o romance de juventude que lhe reaparece e viria a atormentá-lo pelo resto do filme. A apreensão da cena, sempre muito imediata, centraliza o que aparenta ser o mais importante no que concerne a história: as emoções tão humanas desses personagens, carregadas de ambiguidades e conflitos.

Se o reflexo se faz presente no que diz respeito ao paralelismo entre os personagens, ele também se coloca como um ponto de interesse constante da mise-en-scène, servindo muitas vezes como a superfície da qual se filma os personagens e fazendo do plano uma espécie de prisão emotiva da realidade, da qual sempre emanam os verdadeiros sentimentos daqueles que acompanhamos. Dessa contemplação a princípio quase abstrata dos espaços comuns (que inevitavelmente nos lembra do cinema de Yasujiro Ozu) surge algo que poderia ser denominado como evidentemente “yangiano”: um rigor no olhar aos atores que leva suas personagens a sucumbirem às cargas emocionais apenas quando em face de uma delicada composição de quadro. Mas o reflexo é, principalmente, um indicativo muito claro que nos lembra sempre o quão real o filme é: nada do que se desenrola aqui, nessa conjuntura de eventos supostamente banais, está de algum modo distanciado do que nós mesmos vivenciamos na vida real. “Os filmes são como a vida, e por isso os adoramos”, diz o parceiro de Ting-Ting em dado momento.

Quanto ao âmbito da avó enferma, se apresenta um desafio a cada membro da família: as difíceis últimas palavras a serem ditas para essa que está por partir. Cada qual reagindo à sua maneira – a mãe foge para um suposto retiro religioso numa predisposição ao luto e evita o trauma a priori, a filha parece falar aos ventos, o caçula não sabe o que dizer – os componentes da família organizam, em torno dessa conversa, o grande passo que se exige deles: a aceitação da vida como essa imprevisível caixa de surpresas que nos bagunça a todo momento. Não é à toa, portanto, que o filme só se encaminhe para seu encerramento no momento em que a avó da família falece, após todos da família terem, se não resolvido, pelo menos encontrado certa paz em seus problemas pessoais, deixando como atestado disso o emocionante discurso de Yang-Yang.

O que esse filme nos oferece está posto de maneira clara na breve apresentação do businessman japonês: “porque nós não entendemos completamente a nós mesmos: os seres humanos”. Tudo está em consonância com essa afirmação. Não se trata, portanto, de tentar desvendar a complexidade emocional do ser humano. E, assim, o efeito final de Yi Yi se dá de forma fulminante. Com ele se encerra não apenas uma experiência singular, talvez a melhor já realizada por Edward Yang (e falamos aqui de obras do mais alto nível), mas também toda a carreira do cineasta que, desde sua estreia em longas-metragens com That Day…, construiu seus filmes comungando um senso de realidade, um minimalismo dramático e um forte interesse pelas questões caras ao seu país de origem. Sua morte em 2007 deixou um vazio no cinema, reforçado a cada visionamento que se faça de seus filmes.

Davi Braga

Didática de Fogo Inextinguível (Harun Farocki, 1969)

No primeiro plano, um homem aparece em frente à câmera, apoiado em uma mesa, olhando para um papel que pousa entre suas duas mãos. É o próprio Farocki, que começa a ler. Afirma que irá dizer um depoimento realizado pelo vietnamita Thai Bihn Dan, realizado perante o tribunal Vietnã em Estocolmo. Farocki assume a voz de Bihn Dan e expõe o seu relato, que diz querer “denunciar (…) crimes dos imperialistas americanos contra mim e meu vilarejo(…)”. Esta denúncia acontece com Bihn Dan relatando detalhadamente um ataque de napalm feito pelo exército americano. Quando termina de contar o que ocorreu, Farocki levanta a cabeça em olha em direção à câmera. Continua a falar, desta vez sem ler: “Como podemos demonstrar os efeitos do napalm e mostrar os ferimentos por ele provocados? Se lhes mostrarmos uma foto de ferimentos por napalm, vocês fecharão os olhos. Primeiro, fecharão os olhos diante das fotos; depois, fecharão os olhos diante da lembrança; depois, fecharão os olhos diantes dos fatos; depois, fecharão os olhos diante do contexto. Se lhes mostrarmos uma pessoa com ferimentos por napalm, vamos ferir seus sentimentos. Se ferirmos seus sentimentos, vai lhes parecer que os estamos expondo ao napalm, a suas próprias custas. Só podemos dar-lhes uma vaga noção de como o napalm age”. Neste momento, a câmera realiza um travelling in, um tilt down e um pormenor das mãos do realizador é enquadrado, enquanto o vemos abaixando a cabeça, apanhando um cigarro aceso e queimando-o em seu próprio braço. Volta a falar: “Um cigarro queima a uma temperatura de cerca de quatrocentos graus. Napalm queima com um calor de três mil graus. Continuamos a ver o pormenor das mãos, desta vez, contudo, com uma delas com uma mancha preta de queimadura”. A voz continua: “Se os espectadores não quiserem ter nada a ver com os efeitos de napalm, então é importante determinar o que é que eles têm que ver com as razões do uso de napalm”.

Como o espectador que assiste a Harun Farocki queimar o seu próprio braço se relaciona com o uso de napalm contra a aldeia de Thai Bihn Dan? A provocação realizada por Farocki ao espectador, nesta sequência inicial, trata justamente disso: o quanto somos responsáveis pela violência que nos rodeia? Se tratando de um filme feito e veiculado ao longo da Guerra do Vietnã, o que o espectador que estivesse assistindo-o na altura poderia fazer para interferir em algum aspecto o mundo horroroso relatado por Thai Bihn Dan? O que verdadeiramente podemos fazer em relação à crueldade? É com algumas destas indagações que se inicia The Inextinguishable Fire, filme que propõe uma espécie de crise em relação à imagem: seja ela a imagem presente (um homem queimando seu próprio braço), seja a imagem evocada pelo relato lido por este homem (o de um sobrevivente de um ataque realizado por napalm), estabelecendo duas instâncias principais da imagem: uma mais concreta, que diz respeito às imagens do filme; a outra, mais abstrata e indeterminada, diz respeito às imagens que o filme nos sugere. Falemos sobre estes diferentes níveis da imagem.

Um homem fala um discurso e, como para comprová-lo, queima seu próprio braço. É o cúmulo da concretude, justamente por estarmos vendo um corpo (uma matéria) alterar-se a partir de sua relação com um elemento exterior (a brasa): vemos o estado de mudança de uma pele para uma queimadura, que não chega nem a um sexto da temperatura do napalm. Belíssimo momento baziniano da montagem proibida: não há corte algum entre o ato de queimar-se e a mostração da queimadura em si, nem entre o discurso inicial de Farocki e Bihn Dan e a queimadura realizada contra si próprio. O choque passa a ser, definitivamente, o de assistirmos à criação desta queimadura, instância concreta da imagem que só existe depois da instância indeterminada do relato de Thai Bihn Dan nos ser apresentada.

Chamo esta instância da imagem de “indeterminada” pelo simples fato de não ser uma imagem que aparece em movimento no filme, diante de nós, como é a imagem de Farocki queimando seu próprio braço, mas sim a partir do que este corpo que se movimenta profere por sua boca. Harun Farocki começa seu filme colocando em sua própria voz a voz de um homem que sofreu extremamente com a violência. O que este homem sofreu nos é indeterminado, justamente: nunca saberemos o que é sofrer com uma queimadura de napalm, a não ser que soframos de fato com esta queimadura. Ao queimar-se com o cigarro e nos trazer as diferenças entre esta queimadura e a de napalm, Farocki acaba aproximar-mos minimamente do sofrimento de Thai Bihn Dan – mas é apenas uma aproximação: saber o que foi o sofrimento de Thai Bihn Dan é impossível, porque nós não somos Thai Bihn Dan. A queimadura do presente filmado e do passado evocado pelo discurso são mediadas por uma terceira via, a do espectador. É claro que assistir este filme ao longo da Guerra do Vietnã e hoje em dia são duas coisas absolutamente diferentes, mas o impacto causado quando nos damos conta destas duas instâncias da imagem continua sendo gigantesco, justamente por Farocki deixar-nos claro o abismo existente entre os dois tipos diferentes de queimadura (consequentemente, Farocki também deixa-nos claro o abismo entre as duas instâncias da imagem).

Penso no que Michel de Montaigne afirma acerca da tentativa do pintor Timanto (século IV a.C.) de representar os traços de Agamêmnon no momento do sacrifício de sua filha: “Diante da impossibilidade de dar-lhe uma atitude em relação com a intensidade da dor, pintou-o de rosto coberto, como se nenhuma expressão pudesse ilustrar semelhante desespero”. Timanto e Farocki agem de forma parecida, tendo em vista a intransmissibilidade do sofrimento de Thai Bihn Dan e a maneira que Timanto não representa a dor de Agamêmnon: enquanto Timanto pinta Agamêmnon com o rosto coberto, Farocki, por sua vez, utiliza-se apenas daquilo que Thai Bihn Dan pôde falar depois do ocorrido. Qualquer tentativa de representação imagética do acontecimento parece completamente ineficiente e a impossibilidade do retrato da violência é um dos grandes pontos para o realizador não se utilizar de imagens de found-footage, mas da imagem proferida por um discurso. Ao relatar o ocorrido, Farocki confronta o espectador a imaginar o que ocorreu com este homem, sob a violência de um fogo que não se apaga.

É importante, no entanto, deixar marcado em tela, na concretude da imagem, os efeitos de uma chama de napalm, para aí depois mostrar-nos o que há por trás do processo industrial responsável pela sua feitura. Assim, no segundo plano do filme, vemos um cadáver de rato desmanchando-se pelas chamas do napalm, enquanto uma voz em off passa a dar detalhes das características da ação do napalm. Aprendemos, por exemplo, que o napalm-B é praticamente impossível de ser retirado do corpo e continua queimando mesmo quando entra em contato com a água, informações que deixam a imagem ainda mais abjeta. Mais uma vez, Farocki utiliza-se da tensão entre as duas instâncias da imagem para, desta maneira, relacioná-las e intensificar o seu efeito imediato: nunca vemos atos propriamente ditos de violência ao ser humano derivada do uso de napalm, mas vemos como este produto atinge outros seres, cabendo a nós, espectadores, a associação do quão maligno é este produto.

Em outra sequência, Farocki apresentará satiricamente uma reencenação da dinâmica de funcionamento de uma fábrica da Dow Chemical, uma das maiores produtoras de napalm para o governo dos Estados Unidos, em que alguns cientistas se reúnem para assistirem ao poder do napalm em imagens de found-footage passam na televisão. Uma das cientistas questiona-se: “temos de assistir isto?” Depois, outra cientista apoia sua cabeça no ombro de um colega e afirma: “querido, tenho muito frio.” Aqui, Farocki humaniza os responsáveis pelo napalm, pois eles também sentem frio e, consequentemente, podem se queimar: contudo, não se questionam acerca do produto que realizam e a violência decorrente da fabricação do napalm. Farocki, então, nos diz: “Por causa da divisão intensificada do trabalho, muitos cientistas e peritos já não reconhecem a sua contribuição criminosa na destruição. Perante os crimes no Vietnã sentem-se como observadores.”

A sequência final do filme é tão marcante quanto a inicial e dá continuidade a abordagem didática presente em todo este filme. Vemos uma mesma configuração cênica repetindo-se três vezes, porém, com pequenas variações. Trata-se de outra breve encenação. Os enquadramentos são os mesmos, o ator também. O que muda é seu vestuário, seu discurso e o que ele produz. No primeiro momento, vemos este homem retirando uma peça de dentro do lugar onde ficam os papéis para secar-se. Então, vira para a câmera e fala: “Sou trabalhador e trabalho numa fábrica de aspiradores. A minha mulher precisa de um aspirador. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-lo, mas não consigo e acaba sempre por se transformar numa pistola-metralhadora”. A cena, então repete-se: “Sou estudante e neste momento trabalho numa fábrica de aspiradores. Mas acho que a fábrica produz pistolas-metralhadoras para Portugal. Mas nós precisamos mesmo é de uma prova. Por isso levo uma peça comigo todos os dias. Em casa quero montá-la, mas não consigo, e acaba sempre por se transformar em um aspirador”. A terceira e última vez que a cena se repete: “Sou engenheiro e trabalho numa empresa de eletrodomésticos. Os trabalhadores pensam que produzimos aspiradores. Os estudantes pensam que produzimos metralhadoras. Este aspirador pode tornar-se numa arma útil. Esta metralhadora pode tornar-se num eletrodoméstico. O que produzimos depende dos trabalhadores, estudantes e engenheiros”.

A frontalidade inicial do filme repete-se aqui, desta vez com um ator fazendo três papéis diferentes: um trabalhador, um estudante e um engenheiro. Cada um destes papéis representa uma fase do processo fabril de produção. Uma fábrica pode produzir o que bem entender, sejam armas químicas ou aspiradores de pó. Sem os trabalhadores, os estudantes e os engenheiros, nada seria produzido, nem um aspirador de pó, nem uma pistola metralhadora, nem uma arma química. Os responsáveis pelo horror não podem colocar-se distanciados do horror em si, o produto não pode ser dissociado das mãos que o produzem – e, principalmente, de quem manda estas mãos o produzirem. Não há como nos colocarmos distantes dos processos responsáveis pela criação de queimaduras, de mortes, de violência. A responsabilidade pelos atos deve ser exposta: fazemos parte deles.

Paulo Martins Filho

[1] MONTAIGNE, Michel de, 1533-1592, Ensaios, edição integral, tradução de Sérgio Milliet – São Paulo: Editora 34, 2016 (1ªedição), pág. 48