Raro e esquecido, mas resgatado: “Antes, o Verão” (1968), sua trajetória crítica e uma jornada sobre memória e preservação

Certamente não é novidade para os bem versados na história do cinema brasileiro o impacto causado pelo Cinema Novo no começo dos anos 60. A modernidade cinematográfica atingiu o país num momento crucial de sua história, determinando uma nova posição dos cineastas perante o fazer fílmico, mais engajada com as questões sociais que permeavam o país. Se, por um lado, as obras socialmente comprometidas de autores hoje consagrados (Glauber Rocha, Leon Hirszman, Paulo César Saraceni etc.) dominaram a historiografia por sua relevância em como olhar para o momento do país, por outro ofuscaram, de certa forma, filmes que não seguiram os mesmos interesses. Um exemplo destes casos é o de Antes, o Verão (1968), filme dirigido por Gerson Tavares, cuja trajetória é de grande importância e interesse para a memória do cinema brasileiro, especialmente em tempos da crise inacreditável à qual foi delegada a Cinemateca Brasileira. Com roteiro inspirado no romance homônimo de Carlos Heitor Cony, o longa trabalha de forma íntima a tensão conjugal entre as personagens de Jardel Filho e Norma Bengell e a deterioração da família do casal, se colocando distante de qualquer inquietação política do período.

Toda a trajetória do filme após seu lançamento é particularmente interessante e conturbada. Acumuladas algumas frustrações, Gerson Tavares, tão logo abandonaria o cinema, jogando fora a cópia que tinha guardada consigo de Antes, o Verão e retornando integralmente à vida de pintor. Diante dessa informação, vale o registro de que, se no Brasil o incentivo e a prática plena da preservação cinematográfica têm sido constantemente embarreirados por diversos fatores, a relação afetuosa de um diretor com seu filme acaba sendo, muitas vezes, fator decisivo para a sobrevivência dela ao longo dos anos. Que Tavares, um ex-estudante do Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma, berço da formação cinematográfica italiana (e de cinemanovistas como Gustavo Dahl e Paulo César Saraceni), tenha se desiludido com a experiência enquanto diretor e tentado apagar os registros dela ao jogar fora sua cópia representou um perigo imenso à memória de seu filme, que só viria a ver a luz do dia pelo admirável esforço da equipe da Cinemateca do MAM de manter este e muitos outros preservados e pelo constante interesse de apresenta-los às novas gerações de espectadores. Então, seu segundo e último trabalho de ficção ficaria esquecido na memória até meados de 2004, quando uma mostra intitulada “Raros e Esquecidos”, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, promoveu uma sobrevida para o filme e, principalmente, o reencontro do cineasta com ele. [1]

À época de sua estreia, a recepção da crítica foi, de forma generalizada, boa. Apegados a um lugar-comum que parece ter atuado inconscientemente durante boa parte da trajetória da crítica brasileira, diversos comentários rápidos em jornais se limitaram a falar do filme como sendo “de qualidade” e que “atingiu bom nível técnico e artístico”, sem entrar em quaisquer detalhes de porquês ou como tais resultados foram atingidos. Já em abordagens críticas mais profundas, procurou-se exaltar a evolução do trabalho do cineasta desde seu longa anterior, Amor e Desamor (1966), e traçar relações com outros autores – Michelangelo Antonioni, Alain Resnais e até Walter Hugo Khouri, diretor brasileiro também afeito a Antonioni e do qual o autor da crítica em questão (Luiz Carlos Merten, escrevendo no Diário de Notícias [RS]) faz questão de tratar como “menos autenticamente nacional” do que Gerson por conta das ambientações e situações retratadas, que faziam da realidade apresentada no cinema do diretor paulista mais uma “Europa longínqua” do que o Brasil em si. Ademais, é notável a rara convergência [2] de opiniões acerca de um filme brasileiro atingida pelo grupo de críticos (formado Alberto Shatovsky, Ely Azeredo e José Carlos Avellar) atuando no Jornal do Brasil (RJ) que, apesar de comentários taxativos em relação, principalmente, ao roteiro e à exposição narrativa, atribuíram ao filme a cotação de duas estrelas, ou “bom”. Falou-se também, de novo comparando-o com o trabalho do italiano Antonioni, que o filme seguia o “terreno perigoso” do realismo interior e do “cinema desdramático”.

Que tudo isso que foi escrito sobre o filme não deixe de ser verdade, muito dele parece sobrar para além destas análises, aliado ao fator das comparações em excesso; não poderia Gerson Tavares ser somente Gerson Tavares e não ter de ser, a todo momento, equiparado com qualquer outro autor estrangeiro (ainda que a semelhança com Antonioni seja mesmo verdadeira ou que estes fossem de fato inspirações para ele)? Que estes comentários foram feitos num bom sentido, na intenção de aproximar realizadores brasileiros (nesse caso, um ainda “novato”) aos já consagrados europeus (e aí seja em um sentido de instigar o público, dependendo da linha editorial do veículo utilizado para publicação, ou apenas de traçar paralelos entre as obras e entender melhor as referências ali presentes, ambos completamente compreensíveis) é evidente, mas não deixam de ser passíveis de serem tidos, hoje, como espécies de subterfúgios, como se não se pudesse falar própria e unicamente do filme brasileiro, do realizador brasileiro e de seu trabalho em particular. Nesse sentido, das aproximações traçadas, a mais interessante é mesmo a de Merten, justamente por tensionar Tavares diretamente com outro brasileiro, Walter Hugo Khouri.

Para além da atenção direcionada a suas características formais e estéticas, Antes, O Verão também teve em sua cobertura um enfoque na questão envolvendo a censura de uma de suas cenas, a mais memorável e quiçá mais importante do filme: Maria Clara e Luis, em meio a forte crise no casamento, se encontram no terraço da casa. Um pedido simples por parte de dela (o zíper de seu maiô estava enterrado e ela pede a Luis para cortá-lo com uma tesoura) acaba acrescentando uma tensão sexual gigante à situação. Logo, Norma Bengell está nua [3] com Jardel Filho a seus pés e com as mãos escorrendo por seu corpo. Sobre a cena, de modo geral, a fala dos jornais foi de lamentação quanto a sua remoção forçada, mas com espaço para rápidos comentários que elogiaram a forma com a qual Tavares filmou-a. José Carlos Oliveira, em crônica publicada no Jornal do Brasil, diz:

Há entretanto uma cena, com Jardel Filho e Norma Bengell, que ficará nas antologias. Norma Bengell, nua, Jardel ajoelhado. Naquele instante, o cinema nacional – e o cinema mundial, se não me engano – prestam finalmente a homenagem que a Vênus Calipígia merece. Fiquei feliz quando me lembrei que a semelhante homenagem só poderia ser prestada no Brasil. […] Desde que a Censura não lance mão de sua ímpia tesoura… (OLIVEIRA, 1968, p.3).

A despeito de sua previsão errônea – pelo menos até os dias de hoje, em que o filme permanece relativamente pouco conhecido – de que a cena “ficará nas antologias”, o comentário de Oliveira parece muito preciso quando toca na similaridade encontrada entre o enquadramento encontrado para filmar Bengell e a antiga estátua romana. Ele coloca em discussão uma característica importante da obra de Tavares, que é a aplicação de suas habilidades como pintor (sua formação original) nos filmes, ao enquadrar planos de maneira pictórica e, ao mesmo tempo, pelo menos nesse caso, olhar para a história da arte para compô-los (vide a referência que é mesmo bem clara a Vênus de Calipígia). Esse caráter pitoresco de Tavares é ainda mais notável em Amor e Desamor, no qual a apropriação espacial de uma Brasília recém-inaugurada (é, inclusive, o primeiro filme rodado lá) é muito sagaz, cria planos com linhas de composições e rigor geométrico que, de forma bem mais acentuada do que neste filme de 68, escancaram suas inspirações em Antonioni. Um outro comentário no mesmo sentido do de Oliveira sobre a questão da censura foi feito por Ery Azeredo, que acabou por destacar a habilidade do cineasta para remontar a cena:

A inaceitável intervenção da Censura também pesou no prato adverso da balança. Ainda assim, a remontagem efetuada pelo cineasta com grande habilidade não nos permite vislumbrar onde sua obra foi violentada. A cena carnal da reaproximação entre os personagens de Norma e Jardel, no terraço batido pelo vento, foi considerada magnífica por observadores que tiveram acesso à versão integral, mas, após a remontagem realizada com mãos de expert, mostra-se (ainda) um atestado da sensibilidade de Gerson Tavares (AZEREDO, 1968, p.31).

A partir desse curto escopo crítico, não obstante os elogios recebidos, não demorou para que Antes, o Verão sumisse do panorama do cinema nacional. O trabalho pouco foi abordado à parte de seu momento de lançamento; a Revista Filme Cultura chegou a dedicar a capa de uma de suas edições [4] para o longa, ainda em 1968, mas sequer uma linha de texto se prestou a analisá-lo. A única menção a Gerson e seus filmes ficou por conta de uma discreta passagem ao final do ensaio “Erotismo & Cinema Brasileiro” de Regina Paranhos Pereira [5], indicando-o como um possível representante dessa vertente no país ainda antes do lançamento do filme – tomando como referência, portanto, o trabalho de nudez e sensualidade em Amor e Desamor – sem que tal reflexão fosse retomado em edições posteriores. Essa escassez crítica sobre o filme e a falta de revisões ou menções a ele, tendo em vista a sua recepção positiva quando foi lançado, é curiosa e, ao mesmo tempo, frustrante, por evidenciar um buraco deixado pela fortuna crítica tanto no momento quanto nos anos posteriores.

Outro ponto sobre a recepção crítica e sobre o filme em si: independentemente do modo pelo qual os críticos o encararam – um drama, um suspense, uma mistura mal ou bem dosada de ambos os gêneros – a questão, ao que parece, é que ninguém tocou num ponto crucial do molde narrativo do filme, que é sua adequação ao drama suburbano norte-americano, talvez esse sim um ponto a ser explorado mais a fundo no âmbito das comparações com outros cineastas, principalmente estrangeiros, devido a sua raridade no cinema brasileiro. No filme, seus elementos estão dispostos e identificáveis de maneira clara e adaptada ao contexto nacional: Temos a família nuclear, com sua casa de férias, aqui construída ao invés de comprada, funcionando como símbolo-mor da própria estabilidade doméstica (consequentemente, a degradação de uma afeta a outra; a casa é violentada pela natureza, a família pelos próprios defeitos de seus membros) situada na localização remota de Cabo Frio, que funciona mesmo como um subúrbio estadunidense. Pelo local paira a figura da personagem de Hugo Carvana, que já começa o filme morto e do qual pouco descobrimos a respeito, mas que carrega uma aura suspeita construída ao seu redor evocada a partir da estrutura em flashback: é ele quem instiga marido e mulher a irem a fundo em suas investigações sobre a infidelidade um do outro (natural, nesse sentido, que Maria Clara assassine-o, eliminando o vestígio de ameaça à família). Por fim, trabalha-se em cima da própria ideia da “família perfeita”, seu possível desmantelamento e suas mil e uma formas de enfrentá-lo e se manter de pé apesar de tudo, como o filme deixa bem claro em seu final: um zoom intenso na direção do rosto de Norma Bengell intercalado com Hugo Carvana sendo atropelado, desvendando a charada que já era clara desde o início, mas confirmando de vez o fato e atestando a cruel disfuncionalidade dessa família.

No sentido dessa aproximação com os filmes suburbanistas americanos, vale notar que o final de Antes, o Verão é extremamente parecido com o de Bigger than Life (Delírio de Loucura, 1956) de Nicholas Ray. Em ambos paira um desconforto, bem mais prenunciado no filme de Tavares, quanto ao “final feliz” que ele atinge; apesar da reconciliação, fica submerso entre Luís e Maria Clara tanto suas infidelidades quanto o fato dela ser uma assassina. Já em Ray, de modo mais implícito, a iluminação quase divina sobre a família reconciliada também não esconde o fato de que a arrogância quase fascista de James Mason está a apenas algumas pílulas a mais de cortisona de voltar à superfície. Em suma: nessas famílias nada se resolve, tudo se esconde.

O trajeto histórico de Antes, o Verão, portanto, amadurece a ideia de que, por muito tempo, a crítica cinematográfica nacional não se prestou a buscar filmes e reflexões fora dos lugares comuns do movimento cinemanovista, ignorando contribuições tal qual a de Tavares [6]. Construiu-se a impressão de que esses filmes de fora do núcleo “Novo” representavam um universo em paralelo ao cinema brasileiro hegemônico da época, tendo algumas exceções como o caso de Khouri (cujo cinema muito parecido com o de Gerson Tavares talvez tenha recebido maior atenção por motivos como o caráter mais declaradamente comercial de alguns de seus filmes, maior longevidade do corpo de sua obra e o rápido reconhecimento em prêmios nacionais e internacionais) e outros sobrevivido à passagem do tempo. O distanciamento de Tavares das propostas engajadas [7], sem dúvidas, levou seu filme a ser tomado como apenas mais um dentre tantos, sem que se atentasse para seus alguns de seus requintes estilísticos (em especial seus já mencionados interesses pictóricos acerca da imagem), para sua atenção a uma utilização poderosa de seus atores e da dinâmica sensual deles – essa tão atingida pela ditadura militar, e que por si só já constituiria um primoroso objeto de estudo e análise – e para toda uma coerência narrativa muito bem construída em torno do filme, no que parecia prefigurar um nome interessante para o cinema nacional.

Que pese não ter tomado partido do engajamento político do Cinema Novo, tampouco embarcado na aventura do Cinema Marginal que se aproximava, ou até mesmo sua curtíssima carreira, Antes, o Verão e Gerson Tavares não tiveram a figuração que merecem. Ele se soma a uma lista de filmes de que caíram no esquecimento muito rápido após seu lançamento, e, além de atender uma “demanda” oriunda de um pensamento primitivo que sempre pairou sob o cinema brasileiro e que saciou parte da crítica da época – a da exímia qualidade técnica, como se a mesma salvasse um filme de seus defeitos formais e estéticos – é, de todo modo, um filme muito bem dirigido, executado por um cineasta consciente de suas limitações e convicto de suas ideias.

*

Em 24 de maio de 2021, nos dias de finalização deste texto, Gerson Tavares faleceu aos 95 anos. Que essa pequena reunião da fortuna crítica em torno de seu filme fique como uma homenagem à sua obra e seu legado, ainda a ser melhor descoberto.

Davi Braga

NOTAS

[1] O documentário Reencontro com o Cinema (2014), dirigido pelo professor, historiador e pesquisador Rafael de Luna, narra com detalhes o processo, desde a concepção da mostra, envolvendo diversos outros títulos brasileiros esquecidos e ou desconhecidos dos anos 60, até a recuperação da filmografia do diretor. Foi o contato com Tavares que revelou que as cópias em posse do MAM eram as únicas existentes restantes, e as condições não tão boas de ambas exigia um processo imediato de preservação e restauro, realizado em 2012 através de um edital da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. O realizador, já idoso, forneceu documentos históricos para a memória do filme, como cartas trocadas entre ele e o departamento de Censura da época, além de detalhes da produção, de forma a matizar o conhecimento e entendimento da concepção da obra em seu contexto histórico, tal como de sua própria breve carreira enquanto cineasta. Foi a partir da diferença do tamanho de ambas as cópias, inclusive, que foi possível identificar que a obra havia sido censurada e que, por ser maior, uma delas conteria o filme “intacto”, com a cena da nudez de Bengell sem cortes.

[2] Essa menção à raridade do consenso entre os críticos é atribuída ao texto de Rafael de Luna, em seu blog pessoal, sobre o resgate da obra de Gerson. FREIRE, Rafael de Luna. Projeto Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares. 2015. Disponível em: http://preservacaoaudiovisual.blogspot.com/2015/09/projeto-resgate-da-obra-cinematografica.html. Acesso em: 13 abr. 2021.

[3] E esse um nu que pode ser tido como mais “maduro” (por seu encaixe narrativo, pela forma como é filmado), por exemplo, que outro protagonizado também por Norma Bengell em Os Cafajestes (1962), ainda tido como o primeiro nu frontal do cinema brasileiro.

[4] E nesse caso, na edição de n.10, protagonizou uma confusão ao escrever que o filme em questão era Amor e Desamor (1966), o longa anterior de Tavares. O esclarecimento viria no número seguinte.

[5] Ensaio contido na mesma edição em que o filme faz capa, n.10.

[6] Tavares diz, em um debate acerca do filme, que esse interesse concentrado no Cinema Novo lhe ofuscou à época e possivelmente lhe impediu de obter coproduções para seus futuros projetos.

[7] Interessante notar que, no mesmo debate citado acima, o cineasta revela que tinha planos de filmar Quarto de despejo: Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, o que representaria uma virada de chave temática completa de seus filmes.

REFERÊNCIAS

RAMOS, Fernão Pessoa. A Ascensão do Novo Cinema Jovem. In: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila (org.). Nova História do Cinema Brasileiro Vol.2. São Paulo: Edições Sesc, 2018. cap. 1, p. 16-109.

FREIRE, Rafael de Luna. Projeto Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares. 2015. Disponível em: http://preservacaoaudiovisual.blogspot.com/2015/09/projeto-resgate-da-obra-cinematografica.html. Acesso em: 13 abr. 2021.

Reencontro com o Cinema. Direção: Rafael de Luna Freire. Brasil: 2014. Disponível em: https://vimeo.com/142828827. Acesso em: 13 abr. 2021

ALPENDRE, Sérgio. Gerson Tavares. [S. l.], 2019. Disponível em: https://sergioalpendre.com/2019/07/19/gerson-tavares/. Acesso em: 13 abr. 2021.

LIMA, Cesar Garcia. Gerson Tavares: O Cinema Novo sob o signo da melancolia. In: IMAGOFAGIA – Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual, [s. l.], 2016. Disponível em: https://redib.org/Record/oai_articulo2001306-gerson-tavares-o-cinema-novo-sob-o-signo-da-melancolia. Acesso em: 13 abr. 2021.

Debate com Gerson Tavares no Cine Arte UFF. Disponível em: https://vimeo.com/157427419

OLIVEIRA, José Carlos. O preço do verão. In: Jornal do Brasil (RJ), 29 ago. 1968, p.3.

Diário de Notícias (RJ), 1968, ed. 14113 (referência da Hemeroteca Digital)

Diário de Notícias (RS), 1969, ed. 00088 (referência da Hemeroteca Digital)

Jornal do Brasil (RJ), 16 nov. 1968, p.31

Diário de Notícias (RS), 1969, ed. 00094 (referência da Hemeroteca Digital)

Correio Braziliense (DF), 1969, ed. 02924 (referência da Hemeroteca Digital)

Diário de Pernambuco (PE), 1969, ed. 00117 (referência da Hemeroteca Digital)

Revista Filme Cultura n.10, 20 jul. 1968. Disponível em: http://revista.cultura.gov.br/item/filme-cultura-n-10/. Acesso em: 13 abr. 2021

Viagem ao fim da noite

“E eu parti”: é a primeira fala da voz off, em primeira pessoa, de “Je Tu Il Elle” (1974), primeiro longa-metragem ficcional de Chantal Akerman, sugerindo desde já um deslocamento que precede à situação de sua personagem (interpretada pela própria realizadora) e introduzindo o quarto em que a vemos como uma nova dinâmica em sua rotina. “No primeiro dia, pintei os móveis de azul. No segundo dia, repintei de verde”, ela nos indica, complementando aquilo que não podemos distinguir pelo filme em preto e branco.

O quarto é entupido de móveis que, a princípio, são organizados a cada vez de modos distintos, até que a voz off diga: “Vazio, o quarto é grande”. Então, a personagem passa a tirar todos os móveis para ter espaço, fazendo-os ranger no chão com o esforço de empurrá-los. A câmera, em oposição, move-se lenta e levemente pelo espaço, com uma panorâmica para a direita e, depois, para a esquerda, acompanhando o movimento da personagem, até que sobre apenas o colchão em que estará deitada pelo restante de toda esta primeira parte. Quando finalmente termina de tirar todos os móveis e a luz se expande pelo espaço, ela encontra para si o único lugar sem luz, atrás de uma pilastra, e se senta no chão.

Os dias passam, a princípio bem demarcados pela voz da realizadora/personagem, mas logo se tornam confusos, perdidos em sua rotina irregular e dispersa. Sua única ocupação será escrever cartas que não enviará e que nos revelam que, tudo o que ela diz, portanto, é um relato que deve ser transmitido a uma segunda pessoa, que desconhecemos. No quarto vazio, a personagem passa os dias comendo açúcar diretamente de um saco, apenas com uma colher, tal como se ali ela houvesse perdido qualquer sentido de realidade para além da fascinação com esta escrita.

Entretanto, o vazio desejado é também o motivo da inquietação que persiste nos dias a seguir, forçando novas mudanças de posição da personagem, que dispõe o seu colchão em todos os cantos distintos do espaço em que nada mais se coloca entre a câmera e a personagem. Chantal, realizadora, nutre este mesmo vazio no filme pelo prolongamento da duração de sua imagem, pela ausência de conflitos, pela dissolução dos objetos de cena. Preservando seu vazio essencial, nenhuma música o acompanha, nada dita o seu tom senão suas escassas imagens e comentários.

Ao investir em uma representação do tédio, do vazio e da espera, Chantal questiona o espetáculo e lança uma provocação ao seu espectador, cujo gesto maior se dá, ainda na primeira parte, quando a voz off anuncia: “Esperei até que acontecesse alguma coisa”, enquanto a personagem segue comendo açúcar, indiferentemente, na imagem.

Finalmente, ela sai de casa e se posta à uma estrada, sinalizando aos veículos passantes o pedido de carona. Antes, foi preciso o açúcar acabar e, talvez, de maneira significativa, que ela se olhasse no reflexo da janela pela primeira vez, nua, para que deixasse de esperar. “Parei um caminhão”, diz a voz, indicando o que jamais é mostrado. No plano seguinte, a personagem está já a bordo do automóvel, ao lado de seu motorista (Niels Arestrup), e começa a sua viagem.

Em toda esta segunda parte do filme, a voz off desaparece, e nenhuma palavra será dita por Chantal ao caminhoneiro. Eles farão uma série de paragens em bares e restaurantes pela estrada e, em uma delas, um plano os mostra jantar assistindo a um filme na televisão, cuja tela jamais vemos, mas cujos sons tomam conta do plano, em ruídos de tiro, carros, sirenes, música, tudo o que, em geral, diz respeito a uma ideia de espetáculo que está totalmente excluído de “Je Tu Il Elle”.

O laconismo se expressa também de maneira exemplar em uma das cenas a seguir, quando, de volta ao caminhão, depois de uma aproximação romântica frustrada nas paragens, o homem apanha a mão de Chantal e a coloca em seu colo: “mexa a sua mão”. Logo, começa a dar ordens de como ela deve masturbá-lo e descreve as sensações que tem, em um primeiro plano fixo, de uma interpretação puramente centrada em sua expressão facial, que é quase uma repetição exata daquilo que constitui o “Blowjob” de Andy Warhol, destacando o papel de uma atuação que projeta a centralidade daquilo que está ao seu redor, em um filme em que quase tudo nos é apresentado em off.

A seguir, o homem inicia um monólogo em que dura aproximadamente nove minutos do filme, em que conta grande parte de sua vida e de suas relações sexuais (com sua esposa ou a bordo do caminhão, com outras jovens como Chantal), trecho em que o caminhoneiro expõe as suas intimidades e revela mais de si do que é revelado da protagonista em todo o filme. Longuíssimo plano “documental”, direto e “naturalista”, que cria um novo contraste com a estranheza e o vazio do início do filme, com o quarto cada vez mais sem móveis, com as ações desleixadas e o silêncio de Chantal.

Assim, depois de “28 dias” (como pronuncia a voz off, logo antes de sair do quarto, no início) e uma longa noite de viagem, Chantal chega finalmente à porta de um prédio em que toca a campainha e responde apenas “sou eu”, como se fosse também esperada. Toma o elevador e, após hesitar, entra no apartamento; entretanto, tão logo entra no quarto onde sua amante (Claire Wauthion) lhe espera, tropeça, cai e se levanta rapidamente. Senta-se à cama e tira o casaco; no mesmo momento, a outra mulher diz que não quer ela ali. Mais uma vez se levanta e tentar vestir o seu casaco, mas o zíper emperra, passando um longo tempo em silêncio enquanto segue tentando, até fechá-lo e encarar a outra com um sorriso.

Após a longa viagem, seu encontro é frustrado não apenas para a personagem, mas também para o espectador, para quem as expectativas são rompidas duas vezes, seja por esta negação ou pela intromissão do elemento cômico destas falhas. Possivelmente imprevistos na filmagem, esta sucessão de eventos (que, em um curtíssimo tempo, apresentam bem mais ações, concentradas, que em todo o restante do filme) adquirem seu sentido cômico pela recusa a repetir esta ação de maneira “correta” em um novo take do mesmo plano. Neste momento, Chantal retoma em sua interpretação a verve humorística de seu primeiro curta-metragem, “Saute Ma Ville” (1968), que já a trazia como centro da cena – até o seu filme final, muitos outros o farão – desempenhando, à sua maneira, um papel particular na tradição de atores-realizadores burlescos, de Chaplin, Keaton, Tati e muitos outros (Stroheim, Lewis, Moullet, Monteiro, Moretti…), mesmo que discretamente, por um humor tão sutil como uma música de notas esparsas, executadas em um tom baixíssimo.

Na sequência dos eventos dramáticos, a personagem posta-se ao elevador para sair, ao que ambas hesitam novamente, até que Chantal diga “Estou com fome” e a outra mulher corra para dentro do apartamento, a lhe preparar algo para comer. No próximo plano, está sentada a mesa, comendo um sanduíche, que termina apenas para dizer “Quero mais”. Novos sanduíches são feitos, acompanhando-se toda a preparação e a exigência de Chantal que, com gestos, aponta o que ela deseja que seja passado no pão. Desta vez, entretanto, um corte inverte o posicionamento da câmera na mesa e, com isto, é também já um novo tom que se inaugura no filme. Deixando os pães de lado, ela estende a sua mão até o peito da mulher e abre lentamente os seus botões, delicadamente dobrando o decote para somente sugerir um dos seios. A este gesto de erotismo, ausente até aqui, a mulher sinaliza negativamente, balançando a cabeça também lentamente para os lados em um gesto de reprovação, enquanto em sua boca permanece um discreto sorriso que a deixa seguir adiante. A voz off se impõe novamente, depois de tanto tempo: “Ela me disse que devo ir embora amanhã”.

O corte seguinte apresenta já as duas na câmera, despidas, em uma carícia agressiva que é quase como uma luta corporal entre as duas, marcando a intensidade deste encontro. Seus corpos, de tal maneira atrelados, se homogeneízam aos lençóis e paredes brancas, formando uma única imagem, tal como um conjunto esculpido em uma estátua de mármore. Entretanto, não se trata simplesmente de “sexo” aquilo que o filme mostra, mas uma bastante óbvia simulação de ato sexual, que não procura o engajamento, a excitação do espectador, mas antes a sua distância – como o filme no restaurante e a masturbação no caminhão nos sugerem.

Uma vez que, a princípio, tudo o que era dispensável foi negado, ao quarto e ao filme, a recusa, o rigor e a estrutura devem fundamentar a realização de Chantal, que constrói o filme sobre seus princípios mais básicos, como se comesse açúcar puro, direto do saco. Entre a primeira parte, em que se vê a personagem solitária, e a última, em que o encontro acontece, o deslocamento no caminhão tem o sentido literal da passagem, mas é simbólico, também, como trajetória de afirmação de personagem e cineasta. Assim, no último plano, Chantal se levanta da cama e abre as cortinas, finalmente deixando, pouco a pouco, a luz entrar: retornamos à tela em branco do cinema e ao ponto zero de sua criação; chegara ao fim da noite pela qual esperou.

Matheus Zenom

O anti-Brasil (brasileiro) de “Sem Essa, Aranha” (1970)

Em Sem Essa, Aranha (1970), de Rogério Sganzerla, há um sem número de maneirismos, explosões de falas e gestos, todos de uma ordem caótica e desregrada, que, na configuração primordial da estrutura do filme – um punhado de longos planos-sequência –parecem não conseguir estabelecer diálogos concretos uns com os outros no sentido de uma progressão narrativa. Jamais um defeito, mas sim uma ideia extremamente bem lapidada, essa noção de caos é justamente o que interessa a Sganzerla, num filme que se manifesta, a todo momento, como um singelo grito de ode ao Brasil e uma resistência ao processo da descaracterização identitária do país.

Realizado dentro da extremamente prolífica produção da Belair [1], comandada em parceria por Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, o longa-metragem é uma obra chave do cinema independente brasileiro (comentário que poderia se estender para os outros filmes feitos pela produtora) pela forma rica com a qual a inventividade de seu realizador se manifesta. Entremos na questão da narrativa, ainda que seja até difícil falar de uma propriamente dita: nós acompanhamos Aranha, interpretado por José Loredo, personagem cujos valores morais se demonstram nulos pela revelação de seus diversos esquemas, golpes etc., e suas duas mulheres – personagens sem nome, vividas por Helena Ignez e Maria Gladys – perambulando por lugares remotos do Brasil enquanto regurgitam frases escatológicas. Aranha, portando um trejeito de malandro inigualável, faz uma infinidade de promessas messiânicas que resolveriam todas as mazelas do país: encerraria a fome, a miséria e a precariedade na educação e outros problemas, tudo feito através de um suposto “capital estrangeiro”.

Se por parte do Cinema Novo houve um desejo pulsante de redefinir o que seria uma estética brasileira e lançar os caminhos de uma forma verdadeiramente revolucionária, essa vontade é um aspecto facilmente identificável, também, no dito Cinema Marginal em que Sganzerla se criou. Mas, ao contrário do que os cinemanovistas fizeram nos anos centrais ao seu respectivo movimento, no qual adotam um controle de cena que, na falta de palavra melhor, podemos chamar de “rígido”, Sganzerla toma a via inversa, distanciando-se até mesmo de um projeto anterior de si próprio. Sem essa, Aranha não vai dar continuidade ao choque de imagens outrora experimentado em O Bandido da Luz Vermelha (1968), seu longa-metragem de estreia, mas sim isolar um elemento muito particular da estética ali trabalhada – o uso do plano-sequência com câmera na mão – e fazer dele o conceito basilar deste filme de 1970. Todas as cenas são filmadas assim, acompanhando principalmente as três personagens citadas anteriormente, estejam elas fazendo qualquer coisa de relevante (o que seria, de fato, relevante num filme como esse?) ou não. Muitas vezes estão apenas gritando, reclamando do país ou forçando qualquer ato de caráter altamente grotesco – o exemplo mais célebre disso sendo Helena Ignez forçando o vômito logo no início do filme. É, portanto, uma construção de mise-en-scène que busca seu impacto pelo constante conflito de elementos que se manifestam através de uma câmera que não cessa de vasculhar seus ambientes para colocar em plano uma nova questão, seja ela uma declaração, um ato de irreverência ou apenas a caminhada de um personagem entre um espaço e outro, essa também sempre carregada de intensidade. Surgem daí o caos e a desordem, paradoxalmente organizados e coreografados [2] de modo singular.

O tipo de caracterização mais radical das personagens do filme observado aqui – que Estevão Garcia descreve como desprovida de construções psicológicas e que faz delas seres que vivem unicamente o presente, com uma subjetividade vazia [3] – parece refletir também no modo com o qual ele encara seu momento histórico. Que essas personagens apenas reclamem uma problemática da sociedade, mas sem jamais colocar e contextualizar propriamente nomes ou situações, reflete uma ideia que parece constante no filme: a de um presente que só reconhece a si mesmo, que está em limbo, sem oferecer saída e vislumbre para o país. Tem-se aí, portanto, “[…] a arte do imediato e da pura aparência”[4]. Enquanto houve, no Cinema Novo, uma disposição a indicar os caminhos de revolução, no Cinema Marginal isso parece se esgotar. A forma fílmica aponta, sim, a uma resistência, mas devido ao seu universo representado de forma totalmente alegórica, é uma resistência que vai se dar pelo caminho autorreflexivo da arte, da insistência de sua realização [5], e não pela tomada de uma ação social, política ou de qualquer outro cunho propriamente dita.

Algo central para o modo como o filme se manifesta é a ideia de um “anti-Brasil”, em referência ao momento tenebroso que o país atravessava desde 1964. Ela se dá pelas personagens, que diversas vezes falam de “voltar ao Brasil”, ainda que aparentemente lá já estejam, ou quando buscam encontrar o país no mapa-mundi, para então constatar que ele só pode estar fora dele; um país “fora do mapa”. Essas mulheres, outrora filiadas ao picareta Aranha, se rebelam ao final do filme, assassinam-o e tomam um caminho sem rumo com o artista Luiz Gonzaga e seu grupo musical, justamente após o músico falar do tal momento “anti-Brasil” e demonstrar preocupação por não saber no que isso resultaria. Esse gesto é um grito de Sganzerla rumo à reconciliação do país com sua cultura e identidade popular, é o “anti-Brasil” rechaçado do modo mais brasileiro possível, num momento em que o filme se distancia de sua configuração de narrativa fragmentada e passa a estabelecer um laço efetivo entre diferentes partes – a roda de música (localizada perto do início do filme) e o final, levando desse 1º para o 2º momento, respectivamente, a ideia anteriormente mostrada do escárnio pra cima de Gonzaga (figura central e quase apoteótica da roda) e os populares que o cercavam. Se a personagem de Ignez ficara, durante um longo período do filme (quando ainda sob a tutela de Aranha), gritando e caçoando daqueles que participavam da roda de canto junto a Gonzaga, repetindo frases como “paíszinho de terceiro mundo” ou “sistema solar é um lixo”, enquanto esses solenemente a ignoravam, assassinar a personagem de José Loredo e tomar o caminho dos populares é o modo de virar às costas a enorme mentira elitista que supostamente salvaria o povo e que estava encarnada na figura desse homem, num ato que, contrário à essa dispersão narrativa do filme, exala também uma certa ideia de redenção para as personagens.

Ainda que não contextualize o Brasil em nenhum momento histórico (afinal, novamente: toda a existência daquele universo representado é puramente alegórica), basta olharmos para o ano da realização do filme – meados de 1970 – e notar que toda essa algazarra de mise-en-scène soa também como uma resposta ao que acontecia ao país, na época sob o comando militar. Resgatando a temática machadiana da afinidade diabólica contida em A Igreja do Diabo eexpondo-a através da fala das personagens, tais como a de que o Brasil teria uma “afinidade com o diabo”, que “ele sempre foi com a cara do país” e de que era preciso “pecar ao máximo” para resolver os problemas nacionais, Sganzerla olha, em um só gesto, para o passado (o conto de Machado de Assis) e o presente do país. Ora, se foi a tal Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964, que demonstrou um certo apreço popular de uma parcela da população com os ideais conservadores que seriam colocados em jogo pela ditadura militar que assumiria logo em seguida, Sganzerla raciocina da forma mais intuitiva possível (e, talvez, mais condizente com sua lógica de esculhambação): de que, para livrar o país de uma situação daquele tamanho, só mesmo assumindo a antítese dos valores defendidos por aqueles que bancaram a subida conservadora ao poder. Aí temos pouca preocupação com implicações espirituais e questões de crença; se trata mesmo de evidenciar nesses dois lados os modelos de comportamento antagônicos presentes e postular a favor de um deles: a saber, o da rebeldia, da abjeção, como fica bem claro no plano final do filme, com o pé de uma das atrizes roçando em um crucifixo. Rogério Sganzerla, então, ecoa totalmente Machado: “Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo”. [6]

Sem Essa, Aranha é um filme de gigante ousadia estética, fruto de uma produção independente, que buscou em formas bastante radicais – dada a saturação sentida pelo cineasta dos modelos cênicos anteriores – falar do seu tempo, do Brasil a ele contemporâneo, sem propriamente citá-lo em qualquer momento (de modo similar ao que fez Glauber Rocha em Terra em Transe, situando sua narrativa num país ficcional que espelharia suas insatisfações com a política do momento). E ainda que não tenha conseguido causar o impacto que poderia no momento de sua realização por conta da censura que impediu sua exibição em salas de cinema (e motivou o exílio de Sganzerla, Bressane e cia.), permanece uma obra de entendimento preciso sobre o país e de seu complexo período histórico.

Muito é sabido de uma certa obsessão que Rogério Sganzerla tinha com a ideia da chanchada no cinema brasileiro, tendo ele diversas vezes afirmado se inspirar nelas para realizar alguns de seus filmes: “Estou buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde a chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior do mundo”. Se essa inquietação culmina em Carnaval na Lama (1970), é difícil saber; trata-se de um filme perdido (com um único trecho disponível que, claro, dá pouca ideia do todo) e a associação é mais sugestiva por conta de seu título, alusivo (em tom de deboche) aos dos filmes carnavalescos. O oceano de diferença entre chanchadas e Sganzerla, então, se dá evidentemente no nível do resultado, de onde se consegue chegar a partir da manipulação dessas formas; do que representa, por exemplo, um número musical de um filme carnavalesco e a sequência de Luiz Gonzaga tocando “Boca de Forno” neste filme e do quanto de “popular” se manifesta em ambos os casos. Sem essa, Aranha (e Copacabana, Mon Amour (1970) também entra na equação), através de seus exageros gestuais, seus momentos de grito, de sua combinação de música & dança, de uma natureza essencialmente anti-narrativa, enfim, de todo um repertório antes visto nas chanchadas e que aqui é levado a um limite discrepante, é um exercício em direção ao pleno cumprimento de sua fala, ao menos em nível das similaridades compartilhadas nesses aspectos constituintes da forma rústica (talvez venha daí sua noção de “pior” atribuída às chanchadas e que ele “busca” dar sequência) de ambos os projetos de cinema. É aí, na síntese de um material muitas vezes tido como “disperso”, que se pode atestar a genialidade de Sganzerla.

Davi Braga

NOTAS

[1] A Belair foi uma produtora de cinema independente, que realizou 6 filmes em 3 meses no ano de 1970, utilizando-se de recursos próprios, equipes reduzidas e constantemente reaproveitadas.

[2] Entrevista com Helena Ignez. In: Contracampo, ed. 38, 2002. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/38/entrevistahelena.htm

[3] GARCIA, Estevão. Sem Essa, Aranha. In: Contracampo ed. 58, 2004. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/58/semessaaranha.htm

[4] OLIVEIRA, Rodrigo Cássio. A Síntese Subversiva de Rogério Sganzerla. In: FOCO – Revista de Cinema, 2016-2021. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/jornalsganzerlarodrigo.htm

[5] Nesse sentido, é interessante voltar a pensar na já citada produtora Belair e a produção prolífica da época.

[6] ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. In: Histórias sem Data. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000195.pdf

A Possessão no cinema de William Friedkin

“Moby Dick inteiro é uma das obras-primas de devir; o capitão Ahab tem um devir-baleia irresistível, mas que justamente contorna a matilha ou o cardume, e passa diretamente por uma aliança monstruosa com o Único, com o Leviatã, Moby Dick”

Gilles Deleuze

Síndrome do Mal (William Friedkin, 1986)

I

Nos filmes de William Friedkin, a Possessão pertence à ordem da mudança, do contágio, do desdobramento ou da simbiose. Ela se revela no curso de um confronto físico ou psicológico entre dois vetores de energia, duas forças em relação de domínio ou submissão inconsciente. Deste embate constitui-se um bloco novo, recém-formado, caracterizado pela soma de ambos os polos da equação, em uma espécie de fusão última que pode desembocar na vitória final de uma parte sobre a outra. Apesar de fluida, e apesar de manifestar-se de diferentes formas, a Possessão mantém como fundamento a presença desdobrada, impregnada, de uma força sobre outra, seja em relação de reciprocidade (influência mútua), seja em relação de aniquilamento (geralmente mais perigosa).

De onde nascem, no caso, as Possessões? Da natureza das narrativas. Na maioria dos filmes de Friedkin, um trabalho tortuoso precisa ser realizado a todo custo. Para que este trabalho seja cumprido, no entanto, é preciso que aquele que o leva a cabo esteja em pé de igualdade com o inimigo – por vezes até tornando-se o inimigo (O Exorcista, Parceiros da Noite) –, mesmo que isto implique na corrupção moral (Operação França) ou na autodestruição (Viver e Morrer em Los Angeles, Possuídos, O Exorcista novamente). A moral friedkiana, se moral há, pode ser elaborada nos seguintes termos: é preciso colocar-se em igualdade com o inimigo para sobrepô-lo, mesmo que disto resulte a morte efetiva ou simbólica de si. Caçado é o filme que melhor encena esta moral: Tommy Lee Jones deve manter-se à altura de Benicio Del Toro para conseguir capturá-lo; deve, portanto, colocar-se em relação de mano a mano, em terra firme, disputando de igual para igual. Ele se imiscui na floresta, entre as árvores, para estabelecer com seu duplo um embate justo. Os helicópteros que sobrevoam ou os rifles dos caçadores, porque observam o inimigo do alto, de longe, distantes, nada podem contra ele.

Se colocar-se à altura é um ponto de inflexão, talvez aí possamos compreender a importância do trabalho policial undercover e das perseguições de carro que atingem sua potência formadora (Operação França, Viver e Morrer em Los Angeles, Jade). Os espaços, no caso, são decisivos. Os filmes de Friedkin propõem, à sua maneira, uma topologia da Possessão: o método do cineasta consiste em fazer operar esta captura no seio de um dado espaço físico que será imprescindível para sua consumação. Estes espaços, que podem ser amplos ou restritos, tangenciam cidades inteiras (Los Angeles, Nova Iorque, Portland) ou microuniversos (boates homossexuais, a residência de uma menina possuída, um quarto de motel de beira de estrada). Para retornar ao trabalho dos personagens, suceder em seus ofícios implica em dominar o espaço onde ocorre a Possessão: necessidade, portanto, de encurralar o Diabo ou a entidade demoníaca em seu ambiente de negociação diabólica (quarto gélido, ateliê do falsificador, galpão abandonado, floresta, espaços de pegação, tribunal penumbrado, árvore amaldiçoada…).

II

A obsessão de Gene Hackman por Fernando Del Rey em Operação França (1971) levará o protagonista a romper com todos os limites morais e éticos de sua jornada, nivelando-se, finalmente, ao traficante que persegue. Este, por sua vez, se verá de tal forma enfraquecido pelas incursões obstinadas do policial que será obrigado a ceder espaço, fugir, tornar-se invisível: no desfecho do filme, Del Rey é dado como desaparecido. Na máquina friedkiana, os policiais constantemente dissolvem ou veem dissolver as fronteiras estanques entre Bem e Mal, pois a influência demoníaca dos antagonistas – homens ou mulheres que exercem sobre os protagonistas uma fascinação insidiosa e irreprimível – suprime a linha divisória que demarcaria uma separação bem definida. Do que se depreende que, se Bem e Mal existem nos filmes de Friedkin, eles são forças que se interpenetram e por vezes se correspondem, podendo mesmo atingir um ponto de cruel indiscernibilidade.

No corpo de Linda Blair, em O Exorcista (1973), por exemplo, Bem e Mal coexistem. A relação de correspondência entre estas forças se revela tanto mais evidente quando constatamos que o Mal se instala naquele corpo e naquele espaço doméstico porque uma brecha foi aberta pela crise familiar. Esta brecha, desgastada e traumática, abre-se como uma fenda no corpo do padre Karras quando, nos instantes finais da narrativa, o Diabo lhe possui. Não é porque o padre convida arbitrariamente o Diabo a penetrar em sua carne que a fenda já não se encontrava aberta e pulsante, consequência de seu sentimento de culpa em relação à morte da mãe. Seu gesto final, o suicídio, testemunha que o Bem só pode triunfar, neste caso, ao preço de sua própria aniquilação. Voltarei a este ponto mais adiante.

Em Parceiros da Noite (1980), Al Pacino devém, ele próprio, o assassino de homossexuais que ele inicialmente investigava: dissolução evidente das fronteiras entre Bem e Mal. Procedendo por mimese, no início (infiltrando-se nos bares gays), seu personagem incorre possuído no final. Como em O Exorcista, a fusão demoníaca é absoluta, fazendo coabitar em um mesmo corpo duas personalidades distintas; ao contrário deste, porém, o intruso que se desdobra sobre o corpo possuído não pretende apagar, ao menos em princípio, o sujeito anterior: enquanto a menina é cada vez mais tomada pela entidade diabólica, rumo ao esfacelamento completo, o policial vê coexistir em si dois sujeitos que podem mesmo desenvolver uma relação de cumplicidade: somente uma tal aliança permitiria ao personagem assassinar o vizinho por quem ele se apaixonara e, no dia seguinte, voltar para a casa da namorada, despir-se das roupas do assassino e barbear-se como outrora fazia. O olhar final no espelho é o atestado dessa duplicação interior, dessa Possessão irreversível cuja força é entrevista na simbiose das duas forças implicadas.

Viver e Morrer em Los Angeles (1985) é a síntese inusitada dos três filmes citados. Como em Operação França, uma perseguição policial culmina na Possessão – captura e declínio obsessivo – do protagonista (William Petersen) pelo antagonista diabólico (Willem Dafoe). Esta Possessão acaba por escorrer sobre um terceiro elemento, como ocorre com o Padre Karras em O Exorcista: o parceiro do protagonista, interpretado por John Pankow, será tomado pela entidade e assumirá o posto de Petersen, inclusive vestindo-se como ele, fazendo emergir um corpo múltiplo, atravessado por dois seres e em constante mutação – ecos, portanto, de Parceiros da Noite. Petersen, atualização do personagem de Hackman, é possuído por esse devir-outro (Del Rey, o Diabo ou o assassino de homossexuais) e termina por transferir essa Possessão, após a morte, ao terceiro implicado nesse devir (Pankow). O Mal, neste caso e como em Carpenter, respinga e se metamorfoseia.

Viver e Morrer em Los Angeles (William Friedkin, 1985)

Três filmes menores também investirão, com diferentes nuances e graus de autoconsciência, no tópico da obsessão possessiva. Em Síndrome do Mal (1988), o promotor liberal interpretado por Michael Biehn, depois de confrontado com a presença diabólica do assassino em série de Alex McArthur, desenvolve uma fixação avassaladora que o afasta da esposa e o conduz a uma revisão indigesta de suas posições sobre a pena de morte. A Árvore da Maldição (1990) retoma o tema da Possessão para lhe conferir contornos físicos bem definidos: uma babá demoníaca estabelece um laço diabólico com o bebê para que, surrupiando-lhe do berço, ele seja incorporado à entidade arbórea de onde ela provém. A criança é, portanto, indexada ao trono que, por sua vez, é o corpo natural da babá: captura física do recém-nascido para sua fusão ao corpo do intruso. Por outro lado, em Jade (1995), a obsessão de David Caruso por Linda Fiorentino remete diretamente à autodestruição pessoal que caracteriza o campo de atuação da femme fatale. Em outras palavras, é neste filme escrito por Joe Eszterhas (Instinto Selvagem) que Friedkin aponta diretamente para um dos arquétipos da obsessão autodestrutiva no cinema, reatualizando a fascinação pela mulher fatal como ponte para a ruína do protagonista possuído.

Em Comboio do Medo (1977), o que vemos é uma abordagem singular da Possessão, pois os termos são dispostos em outras configurações. Bem e Mal, neste caso, não são personalizados – e talvez nem se possa dizer que existam –, mas algo naquele cenário infernal dos trópicos toma posse dos personagens: trata-se da captura de seus corpos por uma entidade ancestral, esculpida em pedra, que coincide com o próprio espaço e se alastra em direção à terra, às árvores, às folhas, aos rios e aos relevos montanhosos. O título original do filme, estampado na lataria de um dos caminhões, reporta-se a essa entidade: feiticeira. Os homens tornam-se como figuras enfeitiçadas, não pelo Mal propriamente, mas pelo desejo ilusório de redenção que a narrativa promete. Bruno Cremer, dirigindo um dos caminhões, conta sobre sua esposa que ficou para trás na França; um pneu fura e o caminhão é explodido pelos ares. A Possessão, aqui, tem por nome Destino, força da qual estes homens tentam ilusoriamente escapar.

Comboio do Medo (William Friedkin, 1977)

Em Caçado (2003), a última obra-prima de Friedkin, duas Possessões estão em jogo: na primeira, o fantasma da guerra parecer querer capturar o personagem de Benicio Del Toro, buscando reduzir o sujeito aos seus instintos animais básicos (sobrevivência e proteção de si e dos próximos). Que se tome nota, por exemplo, da semelhança entre uma cena do filme e outra de O Exorcista: Del Toro, em um quarto escuro, é assombrado pelas imagens e pelos sons da guerra; seu rosto na escuridão, recortado por uma luz pontual que ilumina seus traços no breu profundo, remete ao rosto do Diabo que Linda Blair vê surgir em sua consulta no hospital. Na segunda Possessão que o filme tematiza, Tommy Lee Jones desenvolve pelo seu antigo aluno (Del Toro) uma obsessão que, em última instância, aponta para si mesmo. Enquanto um é produto dos ensinamentos do outro, as partes desenvolvem entre si uma correspondência que os afunda em seus próprios seres. Trata-se, então, de uma obsessão que gira sobre o próprio eixo. Jones verá o Mal ser atualizado na forma de um homem cuja conduta é resultado de seus próprios ensinamentos, mas este Mal pertence a alhures: ele percorre os nervos da máquina estatal de Guerra que captura os personagens.

Possuídos (2006), enfim, desloca o tema da Possessão para o domínio do delírio. Capturados pela paranoia, os personagens desenvolvem uma fixação incendiária pela noção de contágio e vigilância política. No interior do surto esquizofrênico, as forças de Possessão são os microrganismos subcutâneos; no contexto mais amplo da narrativa, o que se constata é que os protagonistas se retroalimentam e possuem um ao outro (cf. a cena de sexo): a esquizofrenia de um se alia à paranoia de outro para resultar em uma força cujo vetor aponta para a aniquilação. O traço singular de Possuídos é fazer da influência mútua entre as partes a medida de sua própria autodestruição – onde nos outros filmes a morte (efetiva ou simbólica) decorre da suplantação de uma parte sobre a outra.

A ideia-matriz de um filme como Possuídos é a de que o Mal só é derrotado quando o Bem, inteiro ou em partes, é destruído simultaneamente. As Possessões até podem ser interrompidas ou sabotadas pela vitória do sujeito sobre a parte diabólica – é o caso de A Árvore da Maldição e Caçado –, mas esta não é a regra. Mais frequente, como já se disse, é a dissolução das fronteiras entre o Bem e o Mal – consequência, sem dúvidas, de uma visão pessimista do mundo como máquina infernal. Em Operação França, Hackman verá seus esforços frustrados pelos resultados pífios de suas investigações. A entidade diabólica que se apodera de Petersen em Viver e Morrer em Los Angeles desviará sua trajetória em direção ao parceiro de trabalho do protagonista. O Diabo de O Exorcista, entidade milenar, dificilmente interromperá sua série de possessões após a morte de Karras, como nos indica o olhar do padre para as escadas na cena final. Al Pacino, em Parceiros da Noite, se tornará ele próprio um assassino de homossexuais. O caminhoneiro interpretado por Roy Schneider em Comboio do Medo atravessará o delirante inferno azul da noite americana para depois ser bruscamente assassinado a tiros. Eis o pessimismo friedkiano: no interior da máquina infernal não existe escapatória, salvação ou redenção possíveis.

Possuídos (William Friedkin, 2006)

III

No sistema topológico de Friedkin, triunfar equivale à apreensão das coordenadas do espaço e expulsão (morte) do inimigo. Neste sentido, O Exorcista conduz esta lógica à condição de paradigma: Blair tem seus braços e pernas atados às extremidades da cama para que sua força não influa nos demais cantos da câmara mortuária onde os Padres buscam limitar seu campo de ação. O confronto com o Outro se torna a medida do espaço, e vice-versa: em Operação França, Hackman percorre as ruas imundas e degradadas de Nova Iorque para perseguir seu antagonista e é filmado com uma câmera trêmula que vacila e reconhece as imperfeições do relevo. Al Pacino, em Parceiros da Noite, se infiltra nas casas noturnas através de travellings laterais que caracterizam e fornecem as coordenadas topográficas daquele submundo. As ruas ensolaradas de Los Angeles, em Viver ou Morrer, são vias de trânsito constante: Petersen e Pankow circulam nos espaços de convívio do artista que falsifica dinheiro (a academia, a sauna, o ateliê do mercador de arte) e são eles próprios perseguidos, em determinado momento, pelo FBI. Em Possuídos, enfim, as paredes do quarto de motel são cobertas por papéis-alumínio que supostamente interrompem a “transmissão” dos insetos, e o corpo humano se torna o espaço de disputa primordial (pensar, por exemplo, nos arranhões e cortes na carne). Os espaços dispõem as condições da Possessão e são por ela desdobrados: importância da sujeira, da deterioração e dos vícios que compõem os cenários urbanos de Friedkin. Comboio do Medo, no caso, faz da apreensão e superação do espaço a ideia-motora do filme.

O inimigo a ser futuramente expulso, cuja força é aquela do devir, manifesta seu princípio de aliança diabólica no instante em que um personagem mira um ponto no espaço e neste olhar reconhece seu devir-outro. Neste sentido, um conjunto específico de imagens se repete nos filmes de Friedkin: campo do observador e contracampo da entidade que ele observa. Blair, em O Exorcista, lança seu olhar para o teto da sala hospitalar e vê aparecer, sinalizado na escuridão, o rosto do Diabo. O assassino em série de Síndrome do Mal, diante dos corpos que mutilou, é acometido pela imagem mental de si próprio banhado em sangue num espaço cujo fundo é preenchido pelo leopardo que ele devém (homem-leopardo). Em Comboio do Medo, outra imagem mental: nos instantes que antecedem a viagem através da mata infernal, Fernando Rabal recolhe-se em seus próprios pensamentos. Friedkin, neste momento, performa um zoom sutil na direção de seu rosto envolto em sombras e nos revela, em seguida, a imagem que sua mente forja e que funciona como contracampo ao seu olhar: as chamas que inundam o plano antecipam seu destino trágico. Em Caçado, outro zoom discreto: Tommy Lee Jones, quando procura por Del Toro na cidade, vislumbra um rosto na cascata de água: a câmera descreve um zoom em sua direção e depois no rosto por trás da cascata, mas mais do que a face de seu antagonista, o que ele vê através das águas turvas é o reflexo atualizado de um passado que se tentou, em vão, deixar para trás.

Porque o olho humano não é fisicamente capaz de reproduzir o zoom, este se torna, aqui, o efeito ótico por excelência para sugerir o movimento diabólico da Possessão. Ele está presente, por exemplo, em outras três cenas-chave em que o personagem principal concentra seu olhar em uma coordenada do espaço para melhor encarar seu devir. Em Operação França, Hackman encara o vão de uma porta no galpão onde acontece a última perseguição e, absorto, não olha outra coisa senão um espelho: o vazio que ele contempla é uma imagem de si próprio esvaziado. Por outro lado, o espelho factual em que Al Pacino vê refletida a duplicação de seu ser, em Parceiros da Noite, é uma imagem especular que aponta para a existência de um Outro de si mesmo. Em Possuídos, enfim, o olhar de Ashley Judd em direção ao ventilador de teto funciona como presságio para os helicópteros que, em sua paranoia camicase, sobrevoarão o quarto encardido do motel.

IV

Como se disse, as Possessões nascem da natureza das narrativas, mas o cineasta é consciente da extensão necessária de suas premissas dramáticas. Em outras palavras, a Possessão não se restringe ao argumento da história: ela dispõe as coordenadas necessárias para a organização espaço-temporal do filme, sendo ela, por sua vez, guarnecida por esta disposição. É por esta razão que Friedkin, como Carpenter, sempre fez o mesmo filme e ao mesmo tempo nunca o fez: se a ideia da Possessão percorre a maior parte de seus filmes, ela é sempre retalhada, brutalizada, subvertida, desviada ou metamorfoseada pelo material concreto com o qual ele trabalha. Pelo que se descreve, não estaríamos diante de uma seta apontando para o sentido ontológico do próprio cinema? Se em Friedkin o confronto entre dois sujeitos faz nascer uma entidade inusitada, “que se revela no curso de um confronto físico ou psicológico entre dois vetores de energia”, é também na disputa entre ideia e forma que nasce um filme: presença desdobrada de uma força sobre outra, o cinema é um pacto inevitável, uma impregnação perigosa, uma aliança monstruosa.

Luiz Fernando Coutinho

De um inferno ao outro: “Assault on Precinct 13”, de John Carpenter (1976)

Seria um privilégio se você caminhasse até lá fora comigo.

Ethan Bishop

Eu sei que seria.

Napoleon Wilson

Em sua maioria, os filmes de John Carpenter se iniciam com uma espécie de prólogo, estabelecendo de cara as bases da situação e/ou inimigo que o herói das histórias se deparará. A de “Assault on Precinct 13th” (1976), longa que incorpora ao ambiente urbano a dinâmica do faroeste, introduz uma gangue de bandidos que tentam roubar armas de uma estação da polícia, até que tão logo são mortos pelas autoridades. Em seguida, um outro núcleo do mesmo grupo faz um pacto de sangue, prometendo vingar os finados companheiros. Não se tratam de seres fantásticos ou extraterrestres, como muitos dos de Carpenter, mas isso pouco importa. Talvez esteja nesse ato do juramento, no jarro de vidro repleto de sangue mostrado no começo e mais tarde despejado em frente à delegacia, que resida a misteriosa e quase sobrenatural força concentrada de ódio desse grupo que assola o campo do filme.

Seguida dessa introdução, mais três linhas narrativas surgem: Ethan Bishop, policial em seu primeiro dia de trabalho; um grupo de prisioneiros sendo transportados para o corredor da morte, com destaque para o figurão de Napoleon Wilson; e um pai, Lawson, assustado com a travessia pelo perigoso gueto de Anderson, onde fazia uma visita familiar com sua filha. Os três núcleos, a priori desconexos, convergem para a 13ª DP, estação de polícia que está em seus últimos dias, fechando as portas e se mudando; Bishop é designado para supervisionar o local, sendo praticamente a única autoridade policial ali presente, acompanhado de um outro tira (que logo falece), uma secretária e uma telefonista. O grupo de Wilson é obrigado a desviar do trajeto original por conta de um prisioneiro doente, precisando estacionar na delegacia. Já Lawson entra em conflito com os bandidos, matando um deles após esses assassinarem sua filha e vai buscar socorro lá, se tornando uma figura nula por conta do trauma do evento.

Essa ação ocupa, mais ou menos, quarenta minutos do filme, praticamente sua metade. Talvez menos enérgica, mas certamente não menos interessante, é essa parte do filme, ainda distante da configuração de enclausuramento mais tarde estabelecida, que prepara e justifica toda a situação posterior, na delegacia. Que a segunda seja uma ação mais “truncada”, enclausurada naquele ambiente e com aquelas mesmas figuras o tempo todo, ela só pode assim ser porque todas as características fundamentais para as relações que tomam parte ali dentro (o objetivo dos bandidos, o papel de Wilson e de Bishop) já foram previamente apresentadas, evitando que esse momento se trate de um gigantesco set piece de filme de ação, mas sim um desenvolvimento narrativo camuflado por baixo dessa dinâmica do tiroteio que dita o segundo momento do filme.

Não tarda para que os bandidos, num espetáculo de retaliação, se dirijam também à mesma delegacia e comecem a atacá-la, incitando o princípio vital do filme: a depredação do local, que se dá tanto de fora para dentro (pelos bandidos), quanto de dentro para fora (pela sua própria escassez material, que não sustentaria uma resistência por muito tempo). A 13ª DP se torna, ela própria, um ambiente quase que indistinguível de uma prisão de pequenas cidades de faroeste; mais precisamente, aquela de “Rio Bravo” (“Onde Começa o Inferno”), de Howard Hawks, filme do qual Carpenter sempre admitiu inspiração.

Há um momento dentro da ação na primeira metade que é essencial na construção visual não apenas dos bandidos, mas de todo um sentimento que percorre o filme. No assassinato da filha de Lawson, Kathy, as idas e vindas do grupo de marginais, ainda antes do ataque à delegacia, são vistas através de um retrovisor de um caminhão de sorvete. O sorveteiro até suspeita, ameaça pegar sua arma, mas logo deixa para lá, até que é encurralado. Logo vem a garotinha, transtornada pelo sorvete de sabor errado que lhe havia sido dado (“Hey… this is regular vanilla!”) e é assassinada sem nenhum remorso por um membro do bando, tal como o sorveteiro, em seguida tomando lugar o embate entre Lawson e os assassinos.

É justamente nessa intermitência de suas aparições (mais tarde repetida de forma ainda mais impactante nos planos do estacionamento da delegacia) – que soa como um ensaio de Michael Myers que ora aparece, ora não aparece nos subúrbios de Halloween – que está a peculiaridade da gangue: eles não podem ser vistos. Apesar de toda a natureza de sua violência ser sanguinolenta e destrutiva, um dos objetivos de sua missão é fazer com que nada pareça ter acontecido e que tampouco sobrem vítimas para contar a história: daí as mortes do sorveteiro, da garota, do telefonista (todos vítimas que não fizeram literalmente nada além de terem vislumbrado o bando) e, claro, o esforço descomunal de resgatar os corpos dos próprios membros falecidos em combate na delegacia, deixando a ideia de que o espaço ao redor dos heróis sitiados está imaculado.

É nesse mesmo jogo de opostos que Assault se sustenta. Se antes íamos de um núcleo de personagens para outro, flutuando entre diferentes espaços, agora tudo se concentra num só lugar, com todos eles aglomerados. Já na delegacia, é onde duas forças diametralmente opostas, a policial e a dos prisioneiros, precisam se juntar para a sobrevivência, encarando o grupo cujo modus operandi é hediondo ao extremo – como diz Wells, um dos detentos: “Eles não ligam! Não tem medo de morrer, nenhum deles! Só querem nos aniquilar!”. Também as noções temporais diegéticas do filme recaem na mesma questão; outrora demarcado rigidamente por letreiros ao canto do quadro, que surgiam a cada corte de um bloco de ação para outro, o horário dentro da delegacia vira motivo de aflição e incógnita: o que se passa no começo da noite é filmado de modo a parecer uma longa madrugada de resistência (a predominância do escuro, o silêncio quando os ataques cessam e a falta de comunicação com o resto do mundo), como se cada segundo correspondesse a horas de ação, sustentada pelo empenho imensurável pela sobrevivência – próprio Bishop, em um momento, parece não acreditar que o tiroteio travado com a gangue só tenha durado cerca de 2 minutos. É, portanto, nessa escassez de recursos, tanto de subsistência quanto de comunicação, que reside o fato que torna a 13ª DP um verdadeiro vazio (ou, aproveitando a tradução do título do filme de Hawks, um inferno).

A solução para o grupo, que já vislumbrava um esgotamento das forças para outro confronto armado e falhara na missão de mandar um dos seus (Wells) atrás de ajuda, é se reinventar a partir dos literais restos de recursos que se encontravam disponíveis. Das sobras de explosivos, das últimas balas de munição restantes e de uma enorme placa quebrada pela metade (em que, ironicamente, a mensagem original que se lia era “apoie o seu batalhão de polícia local”), o trio obtém sucesso e segura o avanço derradeiro dos criminosos, ao mesmo tempo em que o restante da força policial finalmente chega ao local.

Pensar nesse gesto triunfante dos protagonistas, o ato de pegar o pouco ali disponível e dele fazer muito, remete também ao movimento de Carpenter, aquele inserido no seio da própria realização do filme. “Assault”, afinal, está localizado ainda no começo da carreira do diretor, sendo seu segundo longa-metragem, realizado sob um orçamento muito baixo. Que não tivesse tanto dinheiro, ou que tivesse à sua disposição atores majoritariamente desconhecidos e que só fosse possível mesmo partir de alguns conceitos e ideias das quais ele admirava em “Rio Bravo” (e em Hawks e faroestes, de modo geral)para, então, realizar algo inteiramente novo é extremamente positivo, pois já demonstra uma certa consciência particular de suas condições de realização, seu contexto e, principalmente, para onde ele deveria concentrar os recursos para realizar um grande filme, o qual “Assault” de fato é.

Neste sentido, se, no filme de Hawks, em que John Wayne e Dean Martin tiveram toda a cidade que viviam sitiada pelo bando que os ameaçava, sempre existia tempo para as tiradas cômicas de Pedro Gonzalez Gonzalez e as investidas românticas de Angie Dickinson, aqui tudo opera numa verdadeira redução: por maior que seja o terror que os bandidos promovam em Anderson, o impacto de sua ameaça se manifesta principalmente quando o ataque é direto à delegacia e tudo, inclusive o amor impossível mas sempre charmoso de Napoleon Wilson, prisioneiro condenado, e Leigh, secretária da delegacia, é feito nesses pequenos intervalos de tensão, momentos tão fugazes quanto as possibilidades de sucesso desse romance – evidentes sempre pelos olhares trocados entre eles, sobretudo aquele de despedida ao final do filme.

Para muito além de pequenas homenagens – o final explosivo, as gotas de sangue que pingam e denunciam o crime – o que fica de “Assault” é a capacidade de ir sempre de um extremo ao outro, de filmar todo o desespero, a violência e a apreensão daquele isolamento. Frequentemente tido como “faroeste urbano” e operando uma bela transposição de alguns elementos do gênero (o melhor personagem do filme, Wilson, é acima de tudo um outsider fora-da-lei, como já se cansou de ver em faroestes clássicos), tal como adequando outros ao seu próprio contexto e tempo (toda a estrutura do filme, as relações que se dão entre os personagens, a dinâmica espacial da câmera pelo ambiente), também vale ressaltá-lo como o primeiro grande filme de John Carpenter, um Carpenter bem mais maduro que aquele de “Dark Star” (1974), e que já apresenta, por meio dessa situação tão cara a muito de seus filmes – o confinamento dos personagens em situações extremas – os primeiros sinais de um trabalho de vigor que viria pela frente.

Davi Braga

A condição híbrida de “Robocop” (1987)

No início dos anos 80, quando o capitalismo, impulsionado por políticas neoliberais em diferentes países do ocidente, começava a consolidar o aspecto onipotente e onipresente que tem hoje, propagando e fomentando a indústria cultural através de uma variedade cada vez maior de mídias comunicativas, tornou-se uma prática comum no meio artístico [1] e mesmo na indústria cinematográfica [2], a ideia de se utilizar o próprio sistema contra ele mesmo – ideia que não chegava a ser nova, afinal desde os anos 60 arte e cultura de massa vinham se contaminando mutuamente, seja com Andy Warhol ou Jean-Luc Godard. É no epicentro desse contexto, nos Estados Unidos governados por Ronald Reagan, que Paul Verhoeven é contratado para dirigir o filme hollywoodiano “Robocop” (1987), sobre um policial que é assassinado e “ressuscitado” como robô controlado por uma corporação corrupta que financia o crime, acabando por se voltar contra a mesma.

O filme anterior de Verhoeven, o fracasso de bilheteria “Flesh + Blood” (1985), já havia sido produzido por um estúdio hollywoodiano, mas será “Robocop” que irá de fato consolidar sua entrada no cinema americano. O título do filme anterior já prescreve aquilo que irá guiar seus filmes americanos: carne e sangue. Se em “Flesh + Blood” temos uma aventura medieval na qual o estupro e a carne contaminada de lepra são elementos centrais na narrativa, “Robocop”, apesar de ser uma ficção científica situada numa Detroit de um futuro próximo dominada por grandes corporações, será também guiado por questões absolutamente materiais; o cinema americano de Verhoeven será um de contrastes entre grandes expectativas e realidades violentas.

A dimensão evidentemente política de “Robocop” não é uma novidade introduzida pelo diretor, visto que o ambiente corporativo, a privatização da polícia, a indiferença do telejornal e a supressão quase fascista do crime cada vez mais intenso numa cidade em vias de gentrificação já estavam prescritos no roteiro de Edward Neumeier e Michael Miner, assim como o tom satírico em meio à narrativa quadrinesca. Se Robocop já era caracterizado como um herói/produto que se volta contra seu criador/corporação, será por conta de Verhoeven que o filme irá agir como um agente infiltrado, subvertendo o cinema de blockbusters dentro de sua própria indústria.

O principal contraste em “Robocop” será, assim, entre esse universo corporativo, que comporta também a “Nova Detroit” gentrificada, e a realidade brutal do crime. O filme começa com a chegada do policial Murphy, o futuro Robocop, na delegacia para onde foi transferido, na qual a situação crítica dos funcionários já é exposta ao lhe designarem o escaninho de outro policial que acabou de se confirmar haver sido assassinado por criminosos – destino que Murphy logo irá compartilhar, sendo brutalmente assassinado após perseguir os mesmos criminosos. Passamos, então, da desordem suja da delegacia à organização acinzentada e homogênea de uma reunião da corporação. Dois mundos que, na verdade, dependem um do outro: a corporação financia o crime que gera a necessidade de intervenção policial, para a qual a corporação irá buscar a “solução” que não necessita de pagamentos de salários ou qualquer “fator humano” – justamente a pauta da reunião inicial.

O primeiro projeto apresentado será do vice-presidente Dick Jones, que introduz o aspecto inventivo da empresa que “conseguiu lucrar em áreas ditas não-lucrativas, como hospitais, prisões e exploração espacial”, junto à telas que apresentam imagens exemplificando essas áreas de atuação junto a legendas como “SPACE”, “ENERGY” “MILITARY”; para a corporação, essas instituições são apenas nomes em telas, tão virtuais como a especulação da bolsa de valores. Jones apresenta, então, sua proposta, “um policial que não precisa comer ou dormir”: o robô “ED-209”, uma grande máquina truculenta que acaba acidentalmente metralhando um dos funcionários, que cai ensanguentado e esburacado sobre a maquete totalmente branca do projeto da “Nova Detroit”; um glitch no robô, justifica Jones, que será o primeiro glitch, também, dessa máquina empresarial. A cena, assim, não apenas introduz a necessidade de um robô mais humanizado, à qual Robocop irá atender, mas já funciona como um prelúdio para o que está por vir, para as falhas produzidas por esse próprio sistema.

É então que outro funcionário da empresa, ansioso por subir de posição na carreira corporativa, apresentará seu próprio projeto, “Robocop”, pronto para ser lançado e à espera, apenas, de um voluntário. Robocop, em sua condição de ciborgue, será um híbrido entre humano e robô constituído a partir de uma combinação de titânio com partes do corpo de Murphy, declarado legalmente morto – o filme deixa em aberto se ele estava de fato “completamente” morto – sobre os quais a corporação tem total direito de intervenção. Esse direito é explicitado pelo funcionário responsável pelo projeto quando estão construindo o robô e os médicos indicam que conseguiram salvar um dos braços do cadáver de Murphy, ao que o ele pede para cortá-lo fora e substituí-lo por uma prótese de titânio. Não apenas a instituição foi privatizada, então, mas também os corpos dos policiais são propriedade da empresa, inclusive para mutilá-los e “remontá-los” a seu dispor; a virtualidade das privatizações exibidas nas telas anteriormente tem, afinal, consequências materiais. No fim, essa hibridez do ciborgue acaba por implicar, também, em seu duplo status a favor e contra a corporação que o criou: ao invés da luta homem x máquina típica da ficção científica, trata-se de homem x grandes empresas, ou ainda policial x corporação, o que circunscreve no filme questões concretas de classe. Afinal, o nome do ciborgue não é “Roboman”, mas Robocop, o que é antes uma marca registrada do que um nome de super-herói.

As telas estão por todos os lados em “Robocop”, seja nas televisões por toda a cidade que parecem sempre exibir o mesmo programa de comédia, onde um homem bigodudo rodeado de mulheres loiras repete seu bordão “I’ll buy that for a dollar” – uma espécie de síntese de uma programação televisiva genérica, reduzida ao absurdo – ou nas notáveis “mediabreaks” que interrompem o filme com noticiários e propagandas. Estas aparecem sem distinção inicial da narrativa central, como se fossem, de fato, intervalos comerciais (Verhoeven afirma ter se inspirado pelas pinturas de Piet Mondrian para essas transições bruscas e diretas) [3], tornando, assim, a própria constituição do filme híbrida como Robocop.

Também o ponto-de-vista de Robocop será mediado por uma tela: acompanhamos os instantes finais da vida de Murphy no hospital através de ocasionais planos pontos-de-vista até a sua morte indicada por uma tela preta, que continua até seu despertar como Robocop e sua visão eletrônica. A sugestão de que há algum resquício de humanidade e subjetividade no ciborgue – de que há alguém lá dentro, junto conosco, neste ponto-de-vista que acompanhamos – já está implícita, portanto, desde sua ativação. A presença dessa subjetividade se confirmará quando lampejos de imagens do assassinato de Murphy – a partir de seu ponto-de-vista – irromperão nas telas que acompanham as câmeras internas de Robocop durante seu sono induzido e observado por técnicos; uma espécie de sonho, de confirmação de que tem uma camada subconsciente, que fará o robô “acordar” e começar a agir como se por conta própria. Como o robô ED-209, Robocop também manifesta um glitch em sua programação, mas nesse caso justamente por haver algo vivo, humano, por detrás de sua armadura de titânio, alguém que carrega uma memória, um passado – como um Frankenstein, um morto-vivo que irá alimentar um desejo de vingança contra seus criadores – e mesmo um nome, Murphy, que será particularmente importante para a recuperação da identidade do robô, que na cena final do filme se autodenomina assim.

Não será apenas em seu subconsciente, em seu interior, que Robocop exibirá sinais de que ainda é Murphy, mas também haverão manifestações externas, como num gesto específico, que é o modo que gira sua arma antes de guardá-la. No início do filme, o policial conta à sua parceira, Lewis, que está treinando o gesto por conta do filho, que assiste a um programa de televisão no qual um personagem gira a arma dessa forma. Já após a sua morte e “ressurreição” como Robocop, na delegacia, depois de uma demonstração da superioridade do robô em relação aos companheiros humanos numa sessão de treinamento de tiros, ele irá repetir o gesto de Murphy, o que não passa despercebido de Lewis, que algumas cenas depois o chamará pelo seu verdadeiro nome – curiosamente, o gesto que denota a subjetividade de Murphy em Robocop provém também de um programa televisivo.

Assim como os assassinos de Murphy fizeram com o policial antes de matá-lo e assim como os médicos fizeram com seu corpo depois de sua morte, durante o seu treinamento Robocop também destrói primeiro completamente o braço do alvo em que atira. O assassinato de Murphy, talvez a cena mais violenta do filme, situada em uma fábrica abandonada  – referente à decadência industrial de Detroit – onde a gangue criminosa explode o braço do policial e então o fuzilam repetidas vezes, rindo, foi pensada por Verhoeven a partir da crucificação de Cristo [4], na qual é descrito, de acordo com o diretor, que os passantes ao redor da cena riam. Verhoeven pensa em Robocop e sua história de ressurreição como um “Jesus Americano”, comentando como o que lhe interessou no roteiro foi a ideia de um “paraíso perdido” para Murphy quando retorna a sua casa como ciborgue e cenas de sua vida passada oscilam entre imagens dos cômodos abandonados [5]. É possível associar também à narrativa bíblica o fato da primeira aparição de Robocop na delegacia – antes o acompanhamos apenas pelos planos ponto de vista – ter um quê de milagroso, onde o robô entra em cena através de um vidro embaçado, chamando a atenção de todos os policiais que saem correndo para vê-lo através das grades em que fica contido.

Mas ainda que o ciborgue apresente, por vezes, uma aura milagrosa, sua constituição é completamente material, a começar por sua armadura pesada – adereço que nas filmagens era, inclusive extremamente desconfortável para o ator. O robô se alimenta, também, de uma gororoba amarronzada, que já indica algo orgânico (talvez humano) em seu interior, bem como aparenta algum tipo de excreção corporal e tem gosto de papinha de bebê, de acordo com um dos funcionários da corporação que a prova – elemento que remete, inevitavelmente, aos croquetes feitos de ração de cachorro em “Spetters” (1980), filme anterior de Verhoeven [6]. Posteriormente será comprovado que sua alimentação se tratava, de fato, de papinha, quando, ao se revoltar contra a corporação, Robocop arruma a comida por conta própria e utiliza as embalagens com rostos de bebê para recalibrar a mira de seu revolver –descalibrado após o robô ser metralhado pelos próprios policiais, a comando da corporação. Além de ser um exemplo dessa violência cômica que rege o tom de grande parte do filme (e da filmografia de Verhoeven), a cena será uma das tantas em que objetos de consumo serão simbolicamente explodidos. Um exemplo emblemático será o carro “6000 sux”, anunciado em uma mediabreak e depois comprado e explodido pelos criminosos; mais enfático ainda, serão as inúmeras telas destruídas ao longo do filme.

A dualidade do filme se apresenta, assim, tanto no constraste entre a esfera corporativa e organizada e a realidade suja e desordenada das ruas quanto na combinação entre esses signos cristãos e o tratamento visceral – por vezes quase escatológico – de certos efeitos, operando sobre algo semelhante àquilo que chamei, em um texto anterior sobre “Spetters”, de “baixo-materialismo” [7]. Assim como “Spetters”, “Robocop” oscila entre um tom trágico e cômico, que vai da mutilação brutal do protagonista do filme à transformação instantânea de um dos criminosos em um monstro distorcido quando entra em contato com lixo tóxico – violência exagerada e bem-humorada que é, nesse caso, também informada pelas histórias em quadrinho que serviram de referência ao roteiro. O embate final entre Robocop e os criminosos será, assim, tanto épico (e até mesmo bíblico) – com Robocop andando sobre a água  – quanto concreto, quando ele será quase vencido por enormes barras de ferro jogadas nele por um trator e os disparos finais serão feitos por todos os personagens caídos sobre uma grande poça de lama, na mesma fábrica abandonada onde Murphy foi assassinado.

É num sentido, assim, tanto simbólico quanto concreto que o filme irá trabalhar essa relação entre alto e baixo: após renascer nas alturas dos arranha-céus corporativos, Robocop desce às profundezas das ruínas industriais, à lama, para enfrentar os vilões. Depois, entretanto, deverá subir novamente na corporação para enfrentar seus próprios criadores, exibindo uma gravação que comprova o envolvimento de Dick Jones com o crime organizado, nas mesmas telas utilizadas na reunião corporativa do início do filme; Robocop não apenas se volta contra seus próprios criadores, mas o faz através do meio de comunicação utilizado por eles para dominação e alienação: as telas.

Paula Mermelstein

Notas:

1 – Desde a arte de cunho mais evidentemente crítico como de Cindy Sherman, Barbara Kruger,  Sherrie Levine ou Richard Prince (a chamada “Pictures Generation”), até a obra mais polêmica de Jeff Koons.

2 – Diferentes filmes dos anos 80 aos anos 90 parecem lidar de maneira mais ou menos crítica com questões que refletem esse contexto dentro de um cinema “espetacular” de efeitos especiais e ação, sejam os Terminators de James Cameron (1984 e 1991), “They Live” (1988) de John Carpenter, “Videodrome” de David Cronenberg (1983) ou “Die Hard” (1988) de John McTiernan.

3 – Entrevista com Paul Verhoeven, “Robocop: the oral history”: https://www.esquire.com/entertainment/movies/a27322/robocop-oral-history/

4 – Idem.

5 – Idem.

6 – https://limiterevista.wordpress.com/2020/12/29/spetters-o-baixo-materialismo-de-paul-verhoeven/

7 – Idem.

As estrelas em “The Misfits” (1961), de John Huston

O western pode ser considerado um dos maiores fenômenos no que diz respeito aos gêneros cinematográficos. Este tipo de filme dominou as produções de Hollywood por aproximadamente quarenta anos (dos anos 20 aos anos 60). O western, por conseguinte, era o gênero cinematográfico mais consumido ao redor de todo o mundo: como algo tão específico e tão particular da historiografia e da cultura norte-americana teve a capacidade de disseminar-se em tão larga escala? Como os espectadores identificavam-se com as histórias de heróis, bandidos e mocinhas naquele ambiente tão árido e inóspito?

Acredito que um dos maiores motivos para essa adesão completa do gênero se deu por conta, principalmente, das questões mitológicas que circundam estas personagens – e, consequentemente, de seus arquétipos e de suas caracterizações, de certa maneira, universais. Peguemos o exemplo do maior ator da história do gênero: John Wayne. A figura de Wayne é quase indissociável de suas personagens, houve uma osmose quase que completa entre a estrela e sua contraparte, isto é, o seu papel. John Wayne é um herói; e John Wayne é John Wayne em qualquer filme em que esteja estrelando, não importa se é Genghis Khan ou Nathan Brittles. Tenho a ideia que o star-system teve um papel importantíssimo para o desenvolvimento do western (sem contar o aspecto mais óbvio, que foi a adesão de grandes realizadores ao gênero, como John Ford e Howard Hawks).

O que acontece, então, quando o western e todos os padrões que dominaram Hollywood durante quarenta anos estão em claro processo de mudança? O que acontece quando um filme faz um retrato da queda de um gênero, e não só: da queda de toda uma filosofia de se fazer cinema, justamente representada pela mudança do paradigma do sistema de estúdios hollywoodiano?

Falarei aqui de um filme realizado por John Huston em 1961, chamado The Misfits. Escrito por Arthur Miller, o filme conta a história da relação de um grupo cowboys em Reno, Nevada, com uma mulher da cidade. Trata-se de uma revisitação do gênero western, tanto pelo local cuja história se desenrola (os westerns, como é óbvio, geralmente ocorrem no oeste dos Estados Unidos), quanto pela cronologia da história (a narrativa do filme é contemporânea a sua realização, ao contrário da maioria dos outros filmes do gênero, que se passam no século 19). Assim, o seu pano de fundo narrativo é justamente a inadaptação das personagens ao tempo em que elas estão destinadas a viver. O saudosismo é algo que percorre todo o filme. Todas as suas personagens têm um ideal de construção de caráter que é inalcançável, justamente por este ideal não pertencer ao tempo em que vivem.

Estas características são ainda mais evidentes tendo em vista os atores escolhidos para interpretar os protagonistas, havendo uma adequação completa do casting com a realidade das personagens. Assim como quando vejo qualquer filme com o John Wayne e vejo na tela materializado o próprio John Wayne, à frente do personagem que interpreta (numa dinâmica que ultrapassa a ficção), também não consigo separar, em The Misfits, Marilyn Monroe e Clark Gable de suas respectivas personagens, em um filme que, curiosamente, marca também o papel derradeiro de ambos, falecidos pouco tempo após o fim das filmagens. Ao contrário dos filmes da Hollywood clássica, que apostam em uma montagem orgânica para sensibilizar o espectador em relação à história, The Misfits faz o caminho oposto, parecendo querer a todo o momento expor a condição de existir enquanto cinema e, junto a isso, expor a condição íntima de seus intérpretes.

O filme conta a história de Roslyn Tabor (Monroe), uma mulher com seus 30 anos, recém-divorciada, que, na cidade de Reno, ao ir beber um copo com sua amiga Isabelle (Thelma Ritter), conhece dois homens: Gay Langland (Gable), um velho cowboy, e Guido (Elli Wallach), um ex-piloto de guerra e atual caminhoneiro. Numa proposta absurda, chamam-na para conhecer o interior de Nevada e todos vão passar um tempo na casa abandonada de Guido, que o homem deixou justamente após a morte de sua esposa. Arrebatado pelo seu falecimento, Guido deixa a casa antes de sua construção ser efetivamente terminada. Então, vemos grande parte do filme desenrolar-se nesta casa incompleta, sempre em construção.

Na casa, todos bebem e dançam em uma cena longuíssima em que a tensão sexual entre Roslyn e os dois homens se desenvolve. Ela, porém, acaba por ficar com Gay, a personagem de Gable, e, por mais absurdo que seja, ambos passam a viver na tal casa em construção de Guido. Há uma elipse temporal e, quando voltamos ao universo do casal, vemos uma rotina completamente estabelecida. Ambos estão felizes. Porém, quando Guido e Isabelle voltam para visitá-los, a vontade de Gay de caçar cavalos selvagens aumenta; afinal, esta é uma das coisas que mais gosta de fazer na vida e a personagem de Gable já havia comentado algumas vezes sobre este desejo anteriormente: além da glória de capturar os tais misfits (atividade que talvez lhe fizesse lembrar de seus dias de glória), a venda dos cavalos selvagens também seria uma maneira de subsistência. Para isso, Guido e Gay devem achar um terceiro elemento para caçar com os dois e, assim, vão a um rodeio encontrando no caminho Perce Howland (interpretado por Montgomery Clift), que eventualmente os acompanha na caça.

É importante deixar claro que, com a inclusão deste terceiro elemento masculino no filme, é estabelecido mais um vértice de desejo pela personagem de Monroe. Roslyn, uma pessoa extremamente sensível, não suporta ver violência contra animais (a primeira discussão de Gay e Roslyn se dá porque o cowboy quer matar um coelho que devora a pequena horta na casa) e, ao longo do rodeio, fica extremamente triste com todas as circunstâncias. No dia seguinte, quando os três homens vão caçar os cavalos selvagens (os misfits, como Gable afirma num determinado momento), Roslyn os acompanha e é neste momento em que o choque cultural da mulher da cidade com os cowboys decadentes se dá por completo.

Ao longo do filme, há um plano que evidencia estes aspectos e é completamente desestabilizante, por sua extrema simplicidade. Após Roslyn e Gay estarem vivendo juntos durante algum tempo, Guido e Isabelle vão visitá-los e então Roslyn começa a mostrar os arredores a Guido, mostrando-lhe as mudanças que havia efetuado na casa. É neste momento em que entramos no quarto de Roslyn e Gay e avistamos uma porta de um armário aberta, com fotos de Marilyn Monroe no auge da fama (fotos que, na diegese do filme, se devem ao fato de Roslyn ter sido uma stripper). Há, neste momento, uma tensão entre Guido, curioso para ver as fotografias, e Roslyn (ou Marilyn?), que permanece envergonhada por estar “sendo observada”. Guido tenta diversas vezes abrir o armário para ver as fotografias, sempre com Roslyn impedindo-o. A mulher permanece toda a cena com um sorriso amarelo, como se estivesse querendo esconder o seu incômodo com as investidas de Guido. Depois de algum tempo, Roslyn finalmente faz com que Guido desista. O homem sai do quarto. Então, o momento mais aterrador deste plano acontece: por uma questão de fotogramas, vemos a mudança de expressão de felicidade do rosto de Roslyn para um desespero quase que completo.

A personagem de Roslyn parece ter vergonha do seu passado, justamente por tentar fechar a porta do armário inúmeras vezes em contraponto às investidas de Guido. Ou será que a personagem sente vergonha da realidade, ou seja, que Roslyn sente vergonha de Marilyn? Ou ainda: Roslyn sentiria saudades de seu tempo como stripper ou é Marilyn que sente saudades de seu tempo como musa absoluta? O filme cria, aqui, uma vinculação direta com a realidade, em uma variação fraturada do que o star-system fazia ao vincular os papéis às suas estrelas.

Em The Misfits há, como já dito, uma inadaptação completa das personagens com o ambiente que as rodeiam: inadaptação de Roslyn, uma mulher da cidade que relaciona-se pela primeira vez com o que pode ser chamado como a vida “simples” do campo (ou, também, pelo fato de ser a única mulher em um ambiente estritamente masculino); inadaptação de Gay, um cowboy que ainda acredita que há algo de belo em seu ofício, por mais que o fim de sua caça não seja nada nobre (o destino dos misfits que serão caçados pelos cowboys é virar ração para cães), por mais que haja pouco o que se caçar.

O personagem de Gable parece estar o tempo todo tentando enquadrar-se em um papel que não é mais seu: o paralelo com o ator é aqui, também, impossível de não ser feito, já que o tempo assola o rosto de Clark Gable em todos os momentos. Os primeiros planos do rosto do ator são assustadores, justamente pelo fato de conseguirmos ver todas as marcas da vida em sua pele. Há este desejo latente de Gay (ou de Gable?) de retornar ao passado ao longo de todo o filme, desejo que culmina na sequência dos cavalos, em que Gay, irritado com o fato de Perce soltar os cavalos por conta das reações de Roslyn, decide derrubar o maior dos cavalos do bando sozinho, usando suas próprias mãos. É no plano final desta árdua batalha que o espelhamento de Gable (ou Gay?) com o pobre cavalo derrubado é evidente: o “herói”, sem forças, deita-se por cima do animal caído: são dois desajustados, um por cima do outro. Mesmo que a luta tendo sido extremamente complicada, quando Gay finalmente consegue derrubar o cavalo, é como se o animal tivesse desistido de lutar – e, consequentemente, como Gay tivesse, também, desistido de tentar fazer parte de um tempo que não o dele. Da mesma forma, Gable é, ele próprio, uma estrela de cinema em decadência, uma estrela “caída”. Vemos em seu rosto que já não é mais um galã. É em The Misfits que encerra sua vida e sua carreira.

Além das quedas das estrelas de cinema e da falência do star-system, The Misfits fala também sobre as estrelas em seu sentido literal. Há pelo menos três momentos marcantes em que as estrelas tomam conta da tela. Em primeiro lugar, é Perce Howland que diz, atordoado após o rodeio, bêbado em um bar: “Oh, I feel funny… I feel like… What was in that injection they gave to me? I… I see the prettiest stars. I’ve never seen stars before. Have you ever seen stars before, Gay?”. Perce diz isto enquanto olha para Marilyn Monroe e, logo depois, dirige sua fala a Gay. É como se Perce estivesse falando deles mesmos, de Monroe e Gable, e dele próprio, Montgomery Clift. As estrelas tomam conta da visão de Perce naquele momento, no bar. Nossa visão, entretanto, está contaminada o filme todo com a presença destas tais estrelas caídas.

O segundo momento é já na parte final do filme, em que, antes de caçar os cavalos, os três homens e Roslyn sentam ao redor de uma fogueira, e Guido começa a falar das estrelas: “And the Milky Way goes over there… That star… That star is so far away… that by the time the light far reaches us here on Earth… Might not even be up there anymore…”. Este segundo momento liga-se imediatamente com o terceiro momento sobre estrelas, justamente quando o filme se encerra: reconciliados, Gay e Roslyn sentam-se um ao lado do outro na camionete. Gable, então, dirige-se a Marilyn e diz: “God bless you, girl”, e continua dirigindo o carro, até que coloca seu braço envolta do corpo de Roslyn. Ela, extasiada, vê os cavalos libertados. Dirige-se a Gay e fala que, ao contrário do que havia dito antes, aceita ter filhos dele. Depois de um breve momento de silêncio, segurando a mão de Gable, Marilyn diz: “How do you find your way back in the dark?”. Então, Gay responde: “Just hit for that big star, straight on”.

Este é o último plano de duas das maiores estrelas da história do cinema: ambas abraçadas, seguindo o caminho de volta para casa, seguindo uma grande estrela que “might not even be up there anymore…”.

Paulo Martins Filho

Glauber Rocha e uma tradição possível

Um problema histórico

A aura de que são cobertos os filmes e os cineastas frequentemente nos impede de ver propriamente aquilo que se dá em suas obras e, precisamente, o que justifica a sua relevância. Frequentemente, eles nos são apresentados apenas como dados históricos, como eventos, documentos de uma determinada época, já morta: trata-se sempre de “o que foi”, como se em cada objeto não houvesse mais a possibilidade de suas qualidades expressivas persistirem. Tomar as obras fundadoras, históricas, como simplesmente documentos de um passado, ignorando que seus efeitos estéticos permanecem vivos e que seu dado originário permanece atuante, prejudica um entendimento a propósito das possibilidades que hoje mesmo podemos desenvolver, pois o olhar que se nega ao passado ignora também as possibilidades imprevistas do presente.

 É neste sentido que o cinema brasileiro sofre do grave problema da falta de uma tradição cinematográfica bem definida, por terem sido pouquíssimos, até hoje, aqueles que buscaram um caminho particular e, principalmente, raríssimas as experiências que encontraram continuidade a partir do trabalho de outros cineastas. Desde os seus primórdios, o cinema brasileiro viveu de empreitadas travadas, de pequenas aventuras comerciais que procuravam emular modelos narrativos e representacionais de filmes estrangeiros, havendo pouco, aqui, nas primeiras décadas de nossa produção, o desenvolvimento de filmes com um caráter mais experimental e particular, estando entre as raras exceções os filmes de Humberto Mauro e o “Limite” (1931) de Mário Peixoto.

Mauro, desde os seus primeiros longas-metragens, no ciclo de Cataguases, até os seus curtas para o Ministério da Educação, apresentará um cinema que transitará com naturalidade da ficção de pretensões artísticas e marcado caráter popular ao documentário educativo institucional, caracterizando-se sempre por sua grande economia criativa e adaptação às condições materiais de filmagem, sendo reconhecido décadas mais tarde como um dos pais do cinema brasileiro. Peixoto, em “Limite”, absolutamente distanciado desta cultura popular e aproximado às experiências vanguardistas realizadas na Europa na mesma época, de inspirações que vão de Jean Epstein à F. W. Murnau, representará por este alinhamento imprevisto e inexistente na filmografia brasileira um objeto isolado, distante das outras produções feitas aqui, e considerado como uma obra “genial” a partir, principalmente, de uma declaração de Sergei Eisenstein – que mais tarde foi revelada ter sido escrita pelo próprio Mário Peixoto, ajudando a promover seu filme quando originalmente exibido.

“Limite”, como um dos raros filmes a alcançar aqui resultados estéticos tão eloquentes quanto os de filmes vanguardistas europeus, constituirá, assim, por muitas décadas, um mito dentro da filmografia brasileira – mito que parece ter intimidado até mesmo Mário Peixoto, que nunca mais voltou a realizar longas-metragens, após uma segunda experiência frustrada. Logo, esta consideração se popularizou, mas o filme permaneceu oculto, devido às suas condições precárias de conservação, que impossibilitavam a sua exibição, tornando-se um filme muito falado, porém pouco visto pelas novas gerações. Assim, mesmo que inicialmente tenha sido recebido com enorme entusiasmo (demonstrado particularmente por Octávio de Faria na revista “O Fan”), “Limite” não foi capaz de produzir uma influência decisiva na produção brasileira imediatamente posterior, sofrendo com uma falta de diálogo e de inserção que fez com o que o mito crescesse e o filme se tornasse cada vez mais inatingível, distante de novas experiências análogas.

Limite (Mário Peixoto, 1931)

Em 1963, o primeiro de dois textos dedicados a “Limite” é publicado pelo jovem crítico e cineasta Glauber Rocha em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, texto que questiona o “idealismo” do projeto estético de Mário Peixoto, a sua “moral burguesa” e a obscuridade em que o filme se perdeu devido a impossibilidade de exibição – que impediu o próprio Glauber de então assistí-lo:

“Deduzo que Mário Peixoto usou um processo de montagem fundado sobre um exercício de imagens belas, e montou uma sinfonia estesiante que, se na época deslumbrava, hoje pode ter apenas um interesse histórico, formal. Para o novo cinema brasileiro, Limite não pode interessar, a não ser como exemplo. Segundo Octavio de Faria, é arte pela arte, não está interessado em mensagens, é cinema puro. Arte pela arte, cinema puro, é idealismo. O cinema não pode, ainda mais pela condição de sua própria força, deixar de manter um diálogo com a realidade. E nem com o homem.” [1]

No ano seguinte, Glauber Rocha realizará o seu “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme que surpreende toda uma geração de cineastas, atores, críticos e espectadores brasileiros, e, com apenas vinte e quatro anos de idade, se afirmará como figura central do Cinema Novo então insurgente. Mesmo que na crítica do ano anterior Glauber não concordasse com as ideias expressas em “Limite”, será em “Deus e o Diabo” que se encontrará, pela primeira vez no Brasil, uma relativa continuidade ao caráter de experimentação com a linguagem cinematográfica que se vê no filme de 1930 e, ao mesmo tempo, uma enorme ruptura com o cinema praticado em seu contexto imediato, gerando uma expectativa igualmente grande ao seu redor. Tal como ocorreu ao filme de Mário Peixoto, esta expectativa também tornará Glauber um “monstro sagrado” pelas décadas em diante, pois embora sua filmografia tenha se prolongado e houvesse maior disponibilidade de acesso aos seus filmes, seu caráter permaneceu “impenetrável” devido ao distanciamento criado por este mito e o estigma da “genialidade” que se atribuiu ao cineasta.

Um novo mito

O primeiro filme realizado por Glauber Rocha, “Pátio” (1959), havia sido já um curta-metragem de forte experimentação formal, que se aproxima esteticamente de filmes experimentais já então conhecidos, como os de James Broughton e Maya Deren, bem como demonstra a influência da montagem de Eisenstein. Em um espaço definido pelas formas geométricas de um pátio quadriculado, dois personagens isolados realizam ações que sugerem um ato sexual, em ambiente artificial circunscrito pela natureza, cujo gesto mais simbólico de interação com ela é quando o homem urina numa planta nos momentos finais, tal como uma metáfora de sua ejaculação. Seu filme seguinte, “Barravento” (1961), é a sua estreia em longas-metragens e marca também a primeira relação do Glauber cineasta com a cultura popular, em uma narrativa sobre as relações estabelecidas em uma comunidade de pescadores na Bahia.

Se em “Pátio” a representação tendia a uma significação abstrata, em “Barravento” o registro documental das ações dos pescadores, a tipagem dos personagens e o conflito dramático a propósito das condições sociais desta comunidade marcam um filme que, em suas muitas irregularidades e um resultado formal bastante discreto, apresenta um cineasta completamente diferente do que foi visto em seu primeiro curta; diferença de tom e intenções manifesta desde o princípio pelo acompanhamento sonoro dos filmes: no primeiro, o uso da música concreta, no segundo, os ritos do candomblé. Em comum, “Pátio” e “Barravento” demonstram um excesso de preocupação com a composição geométrica do quadro, em uma deliberada esquematização dos eventos que acontecem dentro da tela que aponta, sobretudo, a um momento iniciático de afirmação deste realizador, em que ele procurava a organização e o domínio dos elementos formais do filme (mesmo à força e em desajeito, em alguns momentos).

Em seu segundo longa-metragem, três anos depois, há uma nova mudança de tom, mas que é também, de certa maneira, o desenvolvimento desta experiência anterior. Se antes Glauber dialogava com o cinema experimental então conhecido e em “Barravento” se aproxima do neorealismo de Cesare Zavattini, em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), Glauber explorará o realismo da narrativa de uma maneira mais atenta à materialidade de seu registro, voltando-se à presença física de seus atores no espaço e desenvolvendo um modelo de representação que se inspira, a princípio, em Roberto Rossellini. Alguns anos depois, em um texto sobre Jean-Luc Godard, Glauber referenciará ao cineasta italiano por palavras que podemos reconhecer no projeto estético desenvolvido em “Deus e o Diabo”:

“Rossellini, Cinema Aberto sem literatura, sem estúdio, sem dramaturgia, sem ator, sem maquillage, sem técnica: apenas o homem, o mundo, o realismo sem ligações com a pintura, poesia visual descomprometida com regras de composição e iluminação, narrativa desligada das pretensões poéticas, texto ignorando tradições teatrais – novo realismo, “neo-realismo”. A solidão de Roberto continuou pois o neo-realismo foi traído, oficializado, teorizado, mediocrizado e comercializado. Roberto, o grande criador, ficou à margem.” [2]

“Deus e o Diabo”, então, traça um retrato histórico do sertão nordestino, enfatizando principalmente os fenômenos do beatismo e do cangaço a partir da narrativa de Manoel e Rosa, casal de camponeses pobres que, em sua peregrinação, dão testemunho a personagens, mitologias e conflitos de uma sociedade na qual são as figuras mais oprimidas, seja pelo coronel, pelo cangaceiro Corisco ou pelo líder religioso Sebastião – pelo poder econômico, militar ou religioso, respectivamente. A estes personagens se soma a figura de Antônio das Mortes, jagunço que, a serviço do poder local, será responsável por perseguir e assassinar Corisco e seus cangaceiros, aos quais Manuel e Rosa haviam se juntado depois de sua estadia com Sebastião.

É precisamente a partir do início desta perseguição, marcando a passagem para a segunda parte do filme, que se vê um Glauber diferente de todo o anterior. Aqui, a montagem rápida dos filmes anteriores se substitui por um elogio do plano-sequência, disposto pela movimentação dos atores, pela eloquência do gesto, pela presença física da câmera em relação a cena e, principalmente, pelo monólogo em que Corisco relata ao Cego Júlio, violeiro que leva Manuel e Rosa até o cangaço, o último diálogo que teve com Lampião. Monólogo, portanto, em que Corisco interpreta duas vozes: a sua e a de Lampião, alternando a gravidade do gesto e da fala de acordo com cada um que interpreta por vez, em um único plano, no qual é suspenso todo o desenvolvimento narrativo anterior.

A partir da descoberta de um mesmo ator, que, enquanto personagem, representa duas figuras ao mesmo tempo, implicando uma representação dentro da representação, Glauber institui um outro modelo de relato, muito mais sofisticado do que o flashback que, ainda na preparação do roteiro,  havia considerado para esta cena [3], e que constituiria simplesmente em uma solução convencional para este mesmo problema dramático. Glauber, assim, traz o mito de Lampião, encarnado por Corisco, e nisto inaugura uma modernidade cinematográfica jamais vista anteriormente, na qual a teatralidade das interpretações, comumente dada como uma “impureza” do cinema, é assumida como um elemento expressivo da representação. Da mesma forma, também o aspecto literário que se introduz a partir do cordel musical neste filme desempenha um papel fundamental para o desenvolvimento da narrativa, funcionando de maneira muito mais profunda do que apenas como acompanhamento sonoro. Ampliando a descrição dos personagens, auxilia a câmera e os atores, completa o sentido das cenas que se apresentam, apreende o sentido das suas elipses, se impõe como uma nova matéria, determinante à compreensão do todo expressivo, sob uma forte economia dramática. Mesmo o caráter mais literário deste filme, dado através das canções aqui presentes, não se submete à ação, mas a implica, a determina, fazendo a narrativa avançar [4].

No desenvolvimento de “Deus e o Diabo”, se acompanha o desenvolvimento também do cineasta, na mudança de seus procedimentos estéticos, no caminho pelo qual o seu estilo se torna cada vez mais pessoal, superando as referências e inaugurando algo novo, pelo fim e pela totalidade do filme. Isto é, se no fim encontramos um estilo que diz respeito somente a Glauber, nunca antes visto na cinematografia brasileira e mundial, é porque pouco a pouco, na realização do próprio filme, este estilo amadurece e se afirma, deixando de lado seja o realismo à maneira de Rosselini (como nas sequências do Monte Santo, no registro que ressalta o esforço físico de Geraldo Del Rey em carregar a pedra subindo a montanha) ou a montagem à Eisenstein (quando Antônio das Mortes assassina os fiéis, numa emulação das escadarias de Odessa de “Potemkin”) – sendo também a manifestação deste percurso no filme, por si mesmo, uma de suas características estéticas decisivas.

A sensibilidade presente em “Deus e o Diabo” é absolutamente distinta de seus colegas de geração, que em sua maioria realizam apenas uma adaptação dos preceitos da Nouvelle Vague (então a “vanguarda” mais operante no cinema mundial) à já conhecida (e superada) tradição do neorealismo italiano, na “modernização” de uma linguagem convencional. Neste sentido, é curioso pensar que se em “Barravento” Glauber trazia ainda a referência de Eisenstein, já então distante historicamente, e não estava ainda consciente da novidade dos procedimentos de representação da Nouvelle Vague, em “Deus e o Diabo” ele imediatamente ultrapassa as ideias previstas pelos jovens cineastas europeus, revelando uma elaboração formal que antecipa em alguns anos características que serão muito caras a geração seguinte do cinema europeu, a Pós-Nouvelle Vague de Marguerite Duras, Jean-Marie Straub, Jacques Rivette, Manoel de Oliveira, Carmelo Bene e outros cineastas de destaque.

Se o cinema da Nouvelle Vague trata ainda de narrativas ordinárias, prosaicas, de casos que acontecem no interior das cidades grandes europeias, libertando-se do sistema dos estúdios, das limitações da artificialidade pré-planejada e buscando uma espontaneidade do registro das aparências reais, este cinema pós-Nouvelle Vague se voltará, em grande medida, novamente ao artifício, porém colocando-o sempre em evidência e em questão: se estabelecerá com frequência uma dialética entre esta artificialidade da representação e o desejo ontológico do próprio registro cinematográfico. Assim, o que Glauber aponta, pela sua radicalidade formal, pela teatralidade do seu gesto, pela sua defesa de um cinema de limitações materiais, toma as lições deste primeiro movimento e as radicaliza em um sentido completamente imprevisto, dotando o cinema de uma alta reflexividade crítica a propósito de si mesmo, de seus meios de produção e de representação, como ainda não se havia atestado em experiências anteriores.

Esta mudança tratará de um diálogo com outras artes, principalmente com o teatro, tomado como uma matéria primordial para o jogo de construção dramática do filme, seja isto feito em respeito a unidade cênica ou a sua ruptura absoluta e sem compromissos – pela continuidade ou pela fragmentação, a forma fílmica se impõe de maneira decisiva, jamais indiferente. Acima de tudo, o que se implica a partir deste “teatro” é um desejo de ficção, estando nisto implicado a redescoberta da narração, na invenção da representação de acordo com a personalidade e as disponibilidades materiais que se oferecem aos seus realizadores, em uma dialética entre esta artificialidade da representação e o desejo ontológico do próprio registro cinematográfico, características que se encontram em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e o tornam também um filme tão isolado das experiências ao seu redor, no cinema brasileiro, quanto “Limite” foi ao seu tempo.

Morte de Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, 1964)

Um diálogo

Logo, porém, estes preceitos que o filme demonstra, e que terão continuidade na obra de Glauber, poucos anos mais tarde também se farão presentes no cinema de Rogério Sganzerla e de Júlio Bressane, cineastas ainda mais jovens, que iniciarão a sua produção de longas-metragens de uma maneira mais consistente a partir do final dos anos sessenta. Em 1968, ambos ainda procuravam um caminho para se afirmarem esteticamente, como farão em suas produções do ano seguinte, “O anjo nasceu” e “Matou a Família e Foi ao Cinema” de Júlio Bressane, e “A Mulher de Todos” de Rogério Sganzerla, e a concretizarão no ano de 1970 através das produções da Belair, produtora que em três meses produziu seis longas-metragens, três de cada um.

“Câncer”, filmado em 1968 e montado em 1972, é, efetivamente, na filmografia de Glauber, a marca mais importante de uma aproximação aos ideais estéticos destes dois cineastas citados, outros grandes expoentes da cinematografia brasileira deste período. Ainda que a realização “Câncer” tenha sido antecipatória à ruptura destes cineastas, a finalização do filme apenas quatro anos depois faz com que o filme de Glauber se aproxime apenas posteriormente deste conjunto, que de parte dos jovens cineastas já contava com mais de uma dezena de filmes que refletem sobre os mesmos problemas estéticos de “Câncer”: essencialmente, o plano sequência, a economia de meios de produção e a improvisação dos atores.

Glauber esclarece a feitura de “Câncer” em sua voz off que acompanha toda a sequência inicial do filme, sobre as imagens de uma conferência no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. “Quatro dias para filmar e quatro anos para montar”, é o que ele diz. Filmado em 1968, mas concluído apenas em 1972, o processo que leva a finalização “Câncer” se apresenta na filmografia de Glauber sob o recorte das produções “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1970), “Cabezas Cortadas” (1970) e “Der Leone Have Sept Cabezas” (1970), estes dois últimos já filmes realizados em seu exílio; que demonstram que Glauber não se dedicou estes quatro anos exclusivamente à montagem de “Câncer”, mas este tempo talvez tenha sido necessário para que houvesse a maturação a propósito de como organizar e estruturar seu material.

O que se vê, no fim, é um filme estruturado sob planos longos, explorando o tensionamento da duração temporal de uma ação que se prolonga até se desgastar quase completamente, levando aos limites a continuidade do desenvolvimento dramático no interior de cada bloco cênico, em que os atores parecem livremente estabelecer o seu diálogo conforme a sua performance progride, interrompendo uns aos outros, procurando novas soluções por si mesmos para uma determinada linha geral proposta, enquanto a câmera os observa de maneira frontal e objetiva. Em sua estrutura, “Câncer” não apresenta mais do que uma dúzia destes diálogos, alguns deles chegando a quase dez minutos, ou a totalidade de uma bobina de filme, operando entre cada um deles uma elipse indefinida que é fundamental para a composição do filme.

Nele, existe a centralidade de Antônio Pitanga, interpretando uma personagem que apenas em uma cena deixa escapar o seu nome (“José”) e que deseja sair da marginalidade ao encontrar um trabalho, deixando a vida de crime. As oportunidades, entretanto, lhe são negadas pela personagem de Rogério Duarte, que o humilha, logo na primeira cena em que Pitanga é apresentado. Personagem ingênua, é em poucos momentos é capaz de ter verdadeiramente uma atitude ativa em relação ao que acontece ao seu redor, sem forças para mudar a situação em que vive. Logo, volta a praticar alguns furtos, que divide com o malandro interpretado por Hugo Carvana – que, por sua vez, tem também uma namorada, interpretada por Odete Lara.

Ao retratar a condição miserável de José, “Câncer” apresenta por vezes o diálogo de Antônio Pitanga com pessoas comuns, nas ruas do centro do Rio de Janeiro, em que lhes pede desesperadamente por emprego. Ao redor da cena, que por vezes parece se desenvolver sem a consciência destes interlocutores a propósito da representação, por outras com uma deliberada interpretação de sua parte, outras pessoas param, observam e também se dispõem frente a câmera, curiosos a propósito do que aquilo se trata e do porquê aquele registro se faz. Assim, as experiências de improvisação deste filme são tensionadas também em uma cena na qual Glauber, de fora do quadro, grita com a um ator (que interpreta o personagem ao qual Pitanga e Carvana tentam vender um objeto roubado) que sua mãe “pariu mais de quarenta filhos” que se impõe uma maneira de desestabilizar a própria atuação e o desempenho daquele que tem de, ao mesmo tempo, responder a Glauber e aos outros personagens dentro da cena, estado dentro e fora desta representação ao mesmo tempo.

A degradação do negativo de som ao longo dos anos em que o filme esteve em montagem, distorção irrecuperável na voz de seus atores, criou em diversos momentos uma textura distinta para as falas, alterando o sentido de apreensão de determinadas cenas e afastando “Câncer” de qualquer naturalismo. Neste sentido, a cena final, em que Antônio Pitanga toma uma arma das mãos de Hélio Oiticica e finalmente mata a personagem de Rogério Duarte, abarca de sua própria maneira particular uma realidade cotidiana extremamente dramática por um modelo de representação muito distinto de qualquer tipo de realismo, mas que, partindo do caráter lúdico das provocações entre os personagens, chega a um gesto que sintetiza toda a violência presente ao longo do filme e exacerba a natureza de toda esta representação, quando Pitanga se volta em direção a câmera e grita repetidamente “Eu quero matar o mundo!”, momento de desespero após o qual a câmera se perde no espaço vazio e o filme se encerra de maneira trágica, sem qualquer tipo de redenção.

Se as irregularidades que antes haviam em “Deus e o Diabo” e “Terra em Transe” (1967), filme que procede a este outro, incomodavam o desenvolvimento de um projeto estético que até então se pretendia, em certa medida, ainda fechado e homogêneo, em “Câncer” o que se verá será justamente a incorporação destas irregularidades como um dado fundamental de sua composição formal, num filme aberto às contingências materiais, à improvisação dos atores e à intervenção do realizador atrás das câmeras.

Uma tradição possível

A partir de “Câncer”, Glauber parece fazer um esforço para romper com o mito anterior criado ao redor de si, radicalizando as suas experiências em um sentido completamente distinto daquilo que havia realizado até “Terra em Transe”, em filmes que ressaltam cada vez mais o seu aspecto formal de composição. A heterogeneidade de sua produção dos anos setenta tem a ver com o que acontece na trajetória exposta a respeito de “Deus e o Diabo”, com a diferença que Glauber já não preza mais o desenvolvimento narrativo realista e sequencial, mas se dedica à elaboração das imagens valendo-se de um outro tempo, onírico, para conduzir a sua representação, gerando momentos de suspensão, de imprevisibilidade do que deve vir a seguir. Filmes feitos como cadernos de esboços, tomando partido das liberdades oferecidas pelo financiamento dos produtores estrangeiros, em que seu principal interesse parece estar nas possibilidades de descoberta do próprio cinema, de investigação formal, de inquietude.

Cada um destes filmes é como a síntese de determinadas inquietações e experimentos formais que levaram a ele, nos quais Glauber demonstra um gosto pelo inacabado, pela exploração das ideias e a recusa da articulação do todo. Filmes em vias de se formar, fragmentários estética e narrativamente, mas que parecem a sedimentação do que deve se afirmar após voltar do exílio europeu, quando realiza mais dois filmes que estarão entre os mais importantes de toda a sua filmografia, “Di” e “A Idade da Terra”, um curta e um longa-metragem, respectivamente, que esteticamente se apresentam de maneira extremamente complementar, em sua exploração da montagem, da textura das imagens, da exposição de uma narrativa através de uma multiplicidade de matérias e personagens distintos, de um uso inventivo do som.

Entre eles, em 1978, é publicado o segundo texto de Glauber Rocha sobre “Limite”, no qual revisa as posturas declaradas quinze anos antes, após ter agora, finalmente, visto o filme pela primeira vez e assume, mesmo que indiretamente, uma identificação com o projeto estético de Mário Peixoto que é fundamental para se compreender também a mudança no percurso do cineasta, podendo dizer que:

“Mário Peixoto aos 19-20 anos realiza tudaquilo que os Kyneaztas desejam: Fluz-Imag-AZÂ-criar Emoção (comunication…) através montage de células vizuayz […] ’Limite’ é uma revolucionáriaula de Montage para tantos Kyneaztas incompetentes. Porque nossos filmes são Literários e Teatrais. Pornográficos, não pelo sexo, mas pelo MAU GOZT: os Kyneaztas são ideologicamente pré-Romanezcux, daí a permanente burrice do Realyzm.” [5]

Neste sentido, aquilo que podemos depreender tanto das considerações que Glauber faz a respeito de “Limite”, como das experiências realizadas em suas obras mais tardias, é que ambos se encontram em sua busca por novos modelos de representação, recusa ao realismo e dedicação à linguagem cinematográfica, aproximação que abre a obra de Glauber para novas análises e relações, propondo a continuidade de uma tradição. Glauber Rocha, afinal, não é importante simplesmente como uma personagem central no cinema brasileiro e menos ainda como um exemplo isolado e distante, mas a sua importância se justifica exatamente pelo fato deste cineasta ser o elo de uma vertente específica dentro da cinematografia nacional, sendo uma peça-chave para relacionar os polos distintos de uma tradição possível, a ligar todos estes realizadores aqui comentados.

Tomando, enfim, as características em comum entre Humberto Mauro, Mário Peixoto, Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, pode-se definir um cinema de uma diminuição dos seus recursos materiais e de uma frontalidade da câmera em relação aos seus objetos: um “anti-cinema”, oposto às exigências estéticas convencionais, mas que se volta diretamente às expressões fundamentais de sua realização, em uma atitude de contraposição que lhe restituiria um vigor por apresentar aquilo que é o seu contrário, explorando características que permaneciam então em negativo, revelando o verso da moeda já tão conhecida e gasta. Certamente poderiam haver outros nomes, mas estes são os que fundamentalmente designam os processos mais importantes de superação estética (e histórica) dentro do cinema brasileiro, após os quais não houveram quaisquer rupturas ou novidades.

Todos estes cineastas são ilhas, exceções, e, se fizeram os filmes que fizeram, foi antes por seu mérito, do que pelo “cinema brasileiro”, como instituição que deles se serviu. Sua consideração em relação somente ao grosso da produção nacional, frequentemente, apenas cria mitos e mal-entendidos, nomes inquestionáveis que são, por isto mesmo, marginalizados em meio a uma produção que nada lhe tem em comum, como uma maneira de castigar aqueles mesmos que são chamados de “gênios”. Embora sejam estes os nossos cineastas mais reconhecidos internacionalmente, e os que efetivamente representam a “bandeira do cinema brasileiro” sob uma dimensão histórica mundial, ainda não se foi capaz aqui até hoje de compreender em amplo sentido e divulgado a natureza dos seus filmes e como cada um deles, de maneira bastante particular, explora novas possibilidades de realização. Assim, não se deseja afirmar um cânone simplesmente (mesmo porque este seria já um cânone bem conhecido), mas pensar que, somente por um olhar atento às suas obras, que perceba os seus defeitos ou qualidades sem preconceitos ou monumentalizações é que hoje se poderá encontrar novos caminhos para entender a sua lição e o seu legado, constituindo uma base de referência mais consistente para um cinema que seja feito ou analisado por aqui.

Matheus Zenom

NOTAS

[1] ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.66.

[2] ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.366.

[3] AVELLAR, José Carlos. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

[4] Idem.

[5] ROCHA, Glauber. Crítica Esparsa. Org. Mateus Araújo Silva. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2019, p.37-38.


A teatralidade em “Le soulier de satin” (Manoel de Oliveira, 1985)

“O cinema só pode fixar. Se houvesse outro ponto de vista, a unidade perdia-se […]. O cinema não pode ir além do teatro, só pode ir sobre o teatro”

Manoel de Oliveira

Quais são as relações possíveis entre o cinema e o teatro? Em seu texto de 1966, “Film and Theatre”, Susan Sontag elenca as mais diversas aproximações e contrastes entre estas duas formas de representação. Sontag inicia o texto afirmando que, em determinadas concepções da história do cinema, estudiosos enxergam a evolução da arte cinematográfica como a constante emancipação das formas teatrais. Desta maneira, podemos entender que para quem enxerga a história do cinema desta forma, os primeiros cinemas estariam mais perto das formas do teatro e, conforme o cinema desenvolve-se ao longo do tempo, estas semelhanças entre as duas artes estariam cada vez mais esparsas. A “evolução” do cinema seria, consequentemente, um afastamento gradual deste tipo de representação, um afastamento gradual da teatralidade.

E o que seria a teatralidade no cinema? Segundo Sontag, em relação aos primeiros anos do cinema, poderíamos afirmar que seria justamente a presença constante de uma frontalidade e rigidez da câmera (a câmera parecia buscar uma imitação da sensação de se estar sentado em uma fileira na sala de teatro) e de uma atuação repleta de gestos “exagerados”. Contudo, resumir a teatralidade a estas características seria extremamente reducionista, visto que as conexões entre estas duas artes são muito mais complexas do que estas características do primeiro cinema. Até porque, se pensarmos nos filmes dos Lumière, dificilmente encontraríamos a tal da câmera posicionada no fosso teatral. Não dá para afirmar que todo o cinema, em seus primórdios, possui este tipo de ligação com o teatro. Agora, se pensarmos no cinema de Georges Méliès, podemos encontrar aos montes estas duas características apontadas por Sontag.

Inclusive, interessante é pensar na dicotomia seminal ente Lumière-Méliès. Poderíamos considerar os filmes dos dois em diâmetros opostos do início da arte cinematográfica. O cinema de Méliès, como já dito, estaria muito mais próximo do teatro por estar focado no artifício; Lumière, por sua vez, faria um cinema que nada teria de teatral, justamente por não buscar o desenvolvimento de um artifício, e sim de uma espécie de documentação da realidade. Aí está outra diferença fulcral entre as duas formas de arte. Difícil é pensar em atos que não sejam encenados no teatro, ousaria dizer que é praticamente impossível. O teatro nunca teve a pretensão de captar a “transitoriedade da realidade”. No cinema, por outro lado, a não-encenação é um dos pontos principais de uma ontologia cinematográfica, caracterizada pela ideia da câmera estar captando eventos do mundo. O cinema dos Lumière, por estar focado nesta documentação do mundo, seria, portanto, menos teatral do que o cinema de Méliès?

É impossível, novamente, realizar esta generalização, pois existem filmes dos Lumière que são compostos por uma encenação, como por exemplo em L’Arroseur Arrosé (Louis Lumière, 1895), um dos primeiros filmes cômicos da história. É impossível afirmar que os Lumière estariam preocupados, aqui, em documentar os eventos do mundo real. Eles estariam preocupados, justamente, em desenvolver uma gag, em compor uma encenação que provocasse o riso do espectador, ou seja, seria um filme preocupado com o artifício, tal qual Méliès, apesar dos resultados completamente diferentes entre si. Poderíamos considerar L’Arroseur Arrosé um filme teatral por buscar algo diferente do documento? Ou sua teatralidade estaria no fato de ter a tal “rigidez da câmera” e um certo “exagero nos gestos”?

A designação do cinema como uma arte preocupada com a realidade e a do teatro enquanto uma arte focada no artíficio é completamente frágil: ambas as formas de arte possuem características tanto de documentação quanto de artificialidade. Não seria, portanto, somente a partir desta dicotomia que caracterizaríamos as diferenças entre o cinema e o teatro. Podemos, inclusive, ver como estes dois tipos de arte se retroalimentam desde a criação do cinema. Não seria possível pensar em como todas as formas de arte se influenciam umas às outras? A intermedialidade entre as artes seria um de seus elementos essenciais.

Sontag afirma que pode enxergar duas posições radicais em relação à arte: uma delas estaria buscando pela arte total, a quebra da fronteira entre os media, uma amálgama completa; a outra, por sua vez, delimitaria rigorosamente todos os tipos de artes, isto é, a música deve fazer aquilo que pertence à música, o cinema aquilo que pertence ao cinema, o teatro aquilo que pertence ao teatro… Estas posições seriam, portanto, irreconciliáveis. Sontag afirma: “What’s important is that no definition or characterization of theatre and cinema, even the most self-evident, be taken for granted.”

Esta aproximação entre os mais diversos media e, no caso deste texto, entre cinema e teatro, é inerente à existência destes tipos de arte. Contudo, há obras de arte em específico que buscam conscientemente uma aproximação do seu media de preferência com outro em específico, que buscam uma relação com outro tipo de representação, que pensam a intermedialidade como o cerne na construção de suas obras de arte.

Tendo a pensar que poderíamos afirmar que um filme é “teatral” somente se ele estiver conscientemente buscando esta aproximação, se o filme acredita que a teatralidade seja essencial para a construção de sua realidade fílmica: Manoel de Oliveira é um belo exemplo. É um cineasta que ao longo de sua carreira sempre relacionou-se profundamente com o teatro. A intermedialidade, em Oliveira, parece ser um desejo constante: esta ligação com o teatro existe em vários de seus filmes, como por exemplo em Acto da Primavera (1963), Benilde ou A Virgem Mãe (1975) e Mon Cas (1986). No caso especial de Benilde, João Bénard da Costa afirma que “é sobretudo a partir de Benilde que Oliveira reflete o seu famoso axioma sobre a inexistência do cinema ou o da sua exclusiva existência como meio-audiovisual para fixar o teatro”.

A radicalidade do estilo de Oliveira chega a englobar, segundo Bénard da Costa, o conceito de inexistência do cinema em contrapartida a fixar o teatro cinematograficamente. O cinema seria uma representação que se dá, prioritariamente, por meios teatrais. Apesar de anteriormente, em sua carreira, já ter investigado as fronteiras entre cinema e teatro, é em Benilde que esta discussão começa a se complexificar. Oliveira, a partir deste filme, parece querer fixar o teatro de maneira mais incisiva. A maneira como o filme começa diz muito respeito à ligação intermedial que Oliveira irá estabelecer com o teatro, depois, ao longo de toda a sua obra. Na introdução do filme, exploramos os interiores de um cenário de peça de teatro, revelando justamente o que há por trás da encenação que acompanharemos ao longo da da obra:

Frame de “Benilde ou A virgem mãe” (Manoel de Oliveira, 1975)

Enquanto os genéricos acontecem, a câmera, ao longo do percurso, comporta-se pelo espaço de maneira absolutamente investigativa, buscando expor a construção do cenário através de seus meandros. É assim que Oliveira começa a explicitar de maneira contundente a conexão do cinema com o teatro: há ainda o travelling para trás que encerra o filme, que expõe, mais uma vez, o que há por trás do cenário.

Além de ligações com o teatro, há filmes nos quais Oliveira cria um vínculo intermedial entre cinema e literatura, como por exemplo Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981) e, ainda, um filme como Os Canibais (1988), construído a partir de uma conversa com a ópera. Qualquer um destes filmes seria interessante para pensar nas aproximações realizadas por Oliveira com estes respectivos modos de representação, mas a relação estabelecida com o teatro em “Le soulier de satin” me parece o caso de intermedialidade mais complexo da carreira do diretor, justamente por esse diálogo ser tão essencial às características principais da obra.

A adaptação da peça “Le soulier de satin” parece vir de um desejo de buscar a aproximação existente entre o cinema e o teatro, em um desejo puramente intermedial da parte de Oliveira, de tentar transmitir para o cinema características que lhe fascinaram na peça de Paul Claudel: “achei interessante fazer um filme com uma enorme riqueza de texto; riqueza que não toquei, já que filmamos na língua original, em francês, pois Claudel era um escritor extraordinário, com uma linguagem riquíssima, muito particular, eu diria quase impossível de traduzir para o português”.

A opção de manter o texto original de Claudel evidencia ainda mais o desejo de manter o espírito da obra original em sua adaptação. Oliveira opta por realizar o filme em sua língua original, o francês, sem dublagens de nenhum tipo. Inclusive, a ideia seria justamente não realizar somente uma adaptação, mas uma obra que estivesse inexoravalmente ligada ao texto e às formas teatrais, justamente por acreditar que a transposição desta obra para o cinema seria somente possível através deste vínculo. Sobre isso, Oliveira afirma:

Fui correndo buscar uns exemplares do romance, e a livraria Lello, do Porto, tinha apenas três. Exatamente o que me convinha. Comprei os três livros. Guardei um deles intacto e rasguei página a página dos outros dois, colando-as num bloco de folhas tamanho “A4”: a frente numa folha e o verso em outra, até terminar. A família Claudel dizia-me: “Aceitamos ceder os direitos de imagem, mas com uma condição: ver a decupagem”. E eu respondi: “A decupagem já vocês têm em casa, é o livro do vosso pai, como tal”. Porque eu segui o livro, e tudo quanto estava no livro passou a ser dito no filme, o que o levou a ficar com sete horas de duração”.

Não há, em Oliveira, uma subtração de aspectos da história para enquadrá-la na forma fílmica, como é tão comum em adaptações para o cinema. A materialidade da obra de Oliveira com o texto original é essa: a decupagem é feita a partir das páginas do livro, nada a mais, nada a menos. Essencial pensar no gesto de Oliveira de “reconstruir” o livro de Claudel, rasgando-o e depois colando em folhas A4. Há uma ideia de “reconstrução” da obra original que seria justamente o motivo central da criação do filme “Le soulier de satin”, em sua busca por concretude, ao colar literalmente as páginas do livro às páginas do roteiro.

Neste sentido, a partir do caráter integral da transposição do texto original para o cinema, a passagem do tempo, essencial para pensarmos a fruição da obra pelo espectador, chama a atenção em “Le soulier de satin” por sua longuíssima duração, dada por esta mesma integralidade de transposição, reforçando o vínculo do cinema com o teatro.

Oliveira estabelece, logo no início do filme, a ligação diegética entre a sua obra e a obra de Paul Claudel, de maneira muito contundente. A cena inicial de “Le soulier de satin” (assim como a introdução de “Benilde“) é essencial para entendermos como esta ligação se estabelece em seu início e permanece existente ao longo das sete horas de duração do filme. Na verdade, a câmera funciona de maneira muito similar nos dois filmes: vasculhando, com curiosidade, o espaço que retrata. É uma câmera que deseja entender o que está filmando, indo em travelling para frente e para trás, em panorâmicas para um lado e para um outro e para cima e para baixo (“a câmera traça […] o Sinal da Cruz”), investigando a arquitetura da cenografia (no caso de “Le soulier“, da entrada, das escadarias, do palco e da sala onde a peça de teatro ocorre; em Benilde das partes ocultas do cenário da peça, do que há por trás), buscando entender as partes constituintes destes espaços específicos do teatro: a câmera cinematográfica e sua busca para entender o teatro; a câmera de cinema e sua tentativa de fixar a arquitetura do teatro na linguagem fílmica. Sobre este desejo e especificamente o papel de “Le soulier de satin“, Oliveira afirma:

“Eu desejava sublinhar o poder que uma arte tem sobre a outra, e fixar um registo impossível no teatro e que constitui a força específica do cinema. Recriar uma arte viva e material, como é o teatro, noutra, que é a últimas das artes, imaterial e fantasmagórica; sugere a aparência do real, no registo onírico, é o ponto de concretização de todas as artes. Aproximar cinema e teatro, que, de um ponto de vista material, são abissalmente diferentes. O teatro é matéria viva; é físico, está presente. O cinema é o fantasma desta matéria, da realidade física, mais real, contudo, que a realidade em si mesma, na medida em que esta, uma vez que é efémera, nos escapa a cada instante, enquanto o cinema, se bem que impalpável e imaterial, aprisiona por um certo tempo, à falta de para sempre. De facto, o cinema chegou depois de todas as outras artes e fixa-as no imponderável. É a sua preciosa riqueza continua na sua própria forma de abstrair a realidade. Desde o Amor de Perdição que esta ideia, bastante paradoxal, me acompanhava. Prosseguia-a com Francisca, até chegar àquele “excesso” que é Le soulier de satin.”

A história da peça de Paul Claudel se trata, resumidamente, da história de um amor impossível (tema tão caro a Manoel de Oliveira, basta pensarmos em Amor de Perdição) entre Doña Prouhèze (interpretada pela pouco conhecida Patricia Barzyk) e Don Rodrigo (interpretado por Luís Miguel Cintra, em seu primeiro papel da extensa colaboração com Oliveira), apesar de também retratar diversos enredos secundários. A história se passa ao longo do séc. XVI, por diversos países: estamos em Espanha e Portugal e as personagens falam francês. João Bénard da Costa, em seu texto Pedra de toque, explica que “Claudel disse que o tema do O sapato de cetim era o de uma lenda chinesa, que fala de dois amantes estelares que, todos os anos, após longas peregrinações, se conseguem ver frente a frente. Mas, separados pela Via Láctea, jamais conseguem se reunir”. O cerne da narrativa é, mais uma vez, a distância entre dois amantes.  

O filme se inicia com os créditos iniciais, num fundo vermelho ao som de um burburinho de pessoas falando. Então, a câmera revela esta sala, que parece ser a entrada de um teatro. Um homem se dirige à câmera e apresenta a peça de Paul Claudel ao espectador. O início do filme se dá na chave do distanciamento, ou seja, uma exposição transparente de alguns de seus processos de feitura: neste caso, o processo de composição da peça por parte de Paul Claudel. Vemos as sombras das pessoas, do lado de fora da sala. O homem faz dois sinais e trompetes começam a tocar. Vira-se em direção à porta, e num outro sinal, sinaliza para que abram a porta. Neste momento, começa uma enxurrada de pessoas, que se adentram. Junto às pessoas, a câmera faz um movimento de grua para cima. Os créditos começam a passar. Nisto, um travelling inicia-se e a câmera adentra cada vez mais no prédio, realizando o mesmo movimento que esta enxurrada de pessoas. O título do filme, LE SOULIER DE SATIN, se dá sob os corpos destas pessoas, destes espectadores, que estão preparando-se para assistir à peça.  As trombetas continuam tocando e o burburinho das pessoas também. Finalmente, as pessoas entram na sala de teatro e começam a se sentar nas fileiras.

No momento em que as pessoas se sentam, a câmera realiza outro movimento de grua, e desta vez revela, num camarote do teatro, um grupo de pessoas do séc. XVII, saídas diretamente das páginas da peça de Paul Claudel. As personagens da peça estão misturadas à plateia que assiste à peça. A figura central deste grupo, vestida de vermelho, dá meia volta e sai do camarote. Neste momento, a câmera, num movimento de grua desta vez descendente, retorna à posição nos corredores por entre as fileiras de cadeiras. A figura da peça de Paul Claudel aparece novamente, desta vez no corredor, mais misturada ainda aos espectadores da peça.

Da mesma maneira que o teatro e o cinema estão completamente conectados, a “ficção” e a “realidade”, na diegese do filme, misturam-se a partir da presença destas personagens na plateia. Este homem de vermelho, então, começa a andar e a câmera acompanha-o numa panorâmica, até que se posicione em cima do palco. O homem, neste momento, passa a olhar para a plateia (a câmera, pela primeira vez, ocupa o ponto de vista de alguém sentado nas fileiras). Olhamos para a personagem como se estivéssemos naquele espaço determinado, como se tivéssemos acabado de entrar naquele lugar junto àquelas pessoas. A personagem não só observa a plateia, como materialmente interfere nas ações desta plateia, ao pedir silêncio. Bate seu cajado no chão algumas vezes, e grita algumas outras, até finalmente conseguir o silêncio necessário para a peça se iniciar. Vemos, na parte debaixo do quadro, alguns músicos se preparando. Então, as cortinam abrem-se.

O que é revelado é um ecrã, e não uma peça. A tela de cinema está no meio do palco do teatro. A personagem vai explicar, então, o que será mostrado neste ecrã (serve como uma espécie de prelúdio à peça de Claudel, como inclusive toda este momento do teatro no filme). Enquanto a personagem fala, a câmera lentamente se aproxima. Eventualmente, há um corte e a câmera aparece mais distante, mas ainda centralizada no espaço. Começa novamente a se aproximar. Então, o ecrã passa a ser iluminado com uma projeção, de um barco. A câmera continua a se aproximar até estar completamente imersa no ecrã. Vemos Luís Miguel Cintra amarrado ao mastro do navio, tal qual Odisseu. Contudo, o ator não está interpretando o protagonista, e sim outra personagem, desta vez um padre jesuíta. Há um longo monólogo da personagem, até o momento em que um corte acontece (o monólogo continua) e o que é revelado, agora, é o aparelho que realiza a projeção que estávamos assistindo (o qual, agora, escutamos).

Afinal, o que as pessoas que entraram neste teatro estão assistindo, a uma peça ou a um filme? A câmera, depois de filmar o projetor, realiza um movimento de grua descedente, muito similar ao movimento realizado ao mostrar as personagens da peça no camarote. Há uma equivalência destes movimentos de gruas e daquilo que está sendo retratado: as personagens da peça de Claudel e um projetor cinematográfico. É o mesmo universo. Eventualmente, quando a câmera termina de descer, vemos os rostos das pessoas sentadas nas fileiras sendo iluminados pelo ecrã.

Nesta abertura, há um estabelecimento exemplar da conversa entre as formas teatrais e as formas cinematográficas, ainda mais se pensarmos nos movimentos de câmera com a grua, equivalentes entre si, que nos mostram o projetor e as personagens. Oliveira estabelece a intermedialidade de seu filme desde o princípio, unindo a projeção aos espectadores, as personagens de Paul Claudel às pessoas que assistem à peça, o ecrã ao palco. Sobre a relação de palco e ecrã, acredito que seja importante levarmos em conta uma história contada por Oliveira sobre o início da carreira cinematográfica de Eisenstein, enquanto ainda trabalhava no teatro:

Há o caso de Eisenstein, que começou como encenador de teatro e quis fazer uma cena onde introduzia uma projeção de cinema numa tela colocada na peça de teatro. Então convidou Dziga Vertov para fazer essa cena, mas este não quis fazê-la, Eisenstein viu-se obrigado a fazer ele mesmo a cena que pretendia, e este foi, em boa hora, o início de sua carreira cinematográfica.“

Oliveira parece inspirar-se nesta anedota para compor a cena inicial de “Le soulier de satin“, com a incursão da tela no meio da encenação teatral (que por si já faz parte da diegese de um filme). A curiosidade do diretor com esta história, que diz respeito justamente ao arranque da carreira cinematográfica de Eisenstein, parece-me notável. Curioso é pensar como um cineasta como Eisenstein possui um vínculo totalmente intermedial com o teatro, realizando uma de suas primeiras cinematográficas dentro da diegese de uma peça de teatro; Oliveira, em “Le soulier de satin“, realiza uma peça teatral dentro da diegese fílmica. Esta peça encenada dentro do filme possui, em sua própria diegese, uma projeção em um ecrã (Luis Miguel Cintra amarrado), que acaba por nos transportar a mais uma destas muitas camadas intermediais, onde finalmente o enredo do filme transcorre.

Ao longo do filme, ficamos inebriados pela história de amor entre Prouhèze e Rodrigo; ao mesmo tempo, fascinante é também a falta de cenas entre as duas personagens, delimitando a ausência como a fonte do amor entre as duas personagens principais. Prouhèze e Rodrigo amam-se porque procuram-se. As cenas são construídas quase sempre através de longuíssimos monólogos (tal qual, é claro, o texto de Claudel). Somos cativados pela história, cremos nos acontecimentos retratados, por mais que haja determinadas decisões dramatúrgicas que estão longe do “realismo” (justamente características que são consideradas “teatrais”, como por exemplo o exagero no gesto e o discurso recitado), decisões que teoricamente nos distanciariam deste fluxo narrativo. Contudo, isto não acontece. Ao longo do desenrolar da história, entretanto, há cenas que pontuam uma espécie de distanciamento de maneira mais contundente e que, curiosamente, também apontam mais contundentemente as relações intermediais entre cinema e o teatro.

Após acompanharmos uma série de nobres conversando acerca da compra de tecidos vermelhos, enquanto as personagens que compunham a cena saíam de cena, um personagem vestido de branco entra rapidamente em quadro, sem esperar todas elas saírem totalmente. É acompanhado por um outro homem com um tambor. Começa a dizer para irem rápido e uma série de homens, vestidos de azul, passam a entrar a desmontar o cenário, passando com refletores, expondo desta maneira a feitura da peça/filme, o que há por trás daquele cena. Ao expor esses elementos de feitura, o espectador passaria a estar consciente da formulação farsesca da peça de teatro. Neste caso, do filme. Com o desmontar do cenário há, também, um evidenciamento das características artificiais e teatrais daquela cena, ainda mais com a intromissão desta curiosa personagem, que se dirige à câmera constantemente e comanda a desconstrução do cenário.

Ao expor os “trabalhadores” por trás da construção daquele cenário, Oliveira está expondo também a conexão nerval entre seu filme e determinadas convenções do teatro, como neste caso o distanciamento brechtiano. É claro que estes tais “trabalhadores” são, eles próprios, atores encenando. Mas há, aqui, uma interrupção clara do enredo do filme para que este distanciamento aconteça e essa aproximação aguda com as formas teatrais aconteça. Entretanto, é quando a personagem de branco corre em direção à câmera que esta aproximação fica ainda mais aguda.

Oliveira dá a esta personagem a voz que estabelece explicitamente a relação intermedial de cinema e teatro em seu filme, tão explicitamente quanto a abertura de “Le soulier de satin“. Ao proferir que “teatro e cinema […] dá tudo na mesma”, esta personagem está materializando através do discurso esta relação, cristalizando-a ainda mais. A personagem, inclusive, diz que deveria estar de figurino, mas “estava sem paciência de estar preso neste quartinho onde o autor me trancou”. Mas, por não se sujeitar, a personagem escapou e veio distanciar-nos da história de Prouhèze e Rodrigo, veio explicitar-nos um caráter formal essencial, a tal da intermedialidade. O poder desta personagem é intensificado ainda mais ao longo da cena, com diversos cenários sendo trocados e personagens aparecendo e desaparecendo de acordo com seu discurso, até finalmente a história prosseguir.

Contudo, não é somente através do distanciamento que Oliveira assinala a ligação de seu filme com o teatro. Há um aspecto que acredito que seja essencial, que é justamente a composição dos olhares das personagens. Os olhares, no cinema, são essenciais para a composição de uma montagem coerente. Um campo/contracampo minimamente aceitável deve ter as personagens olhando “para os lugares certos”. Em “Le soulier de satin“, como na maioria dos filmes de sua carreira, Oliveira não está muito preocupado em construir estes tais raccords de olhares para a coesão da montagem e da construção do campo/contracampo, simplesmente porque não constrói seus filmes a partir da utilização deste recurso. Na maior parte das vezes, os diálogos acontecem em blocos de texto corrido, com Oliveira privilegiando o plano-sequência. Estes planos-sequência poderiam muito bem ter as personagens olhando-se, mas Oliveira decide optar, ao longo dos diálogos do filme, por um olhar congelado no horizonte. É um olhar que lembra o olhar dos atores em uma peça de teatro, que olham para a escuridão que esconde a plateia. É como se as personagens em “Le soulier de satin” estivessem olhando para esta escuridão ao longo de todo o filme.

Há, ainda, um comentário intradiegético sobre a questão dos olhares das personagens do filme. A cena em questão é secundária, e estamos acompanhando Musique, a irmã de Prouhèze, acampando com seu namorado, depois de haverem fugido. Esta é, salvo engano, a última vez que a personagem de Musique aparece. Ela e o namorado estão, desde o começo da cena, durante um diálogo extremamente apaixonado, sempre olhando para o horizonte. Num determinado momento, Musique olha para seu namorado, que permanece com os olhos congelados na escuridão da plateia.

O rapaz, então, decide virar-se para olhar a sua amada nos olhos (esta ação seria caso raro ao longo do filme, por conta do fato das personagens estarem quase sempre com estes tais olhos congelados), porém, ao perceber o que o seu amado está fazendo, Musique toma um susto e vira o seu rosto para o outro lado. Impressionado com a reação de Musique, o rapaz pergunta-lhe: “Eu machuquei você?” (um olhar, portanto, seria suficentemente capaz de machucar alguma pessoa?). Musique então responde: “Meu coração parou” (somente com a possibilidade de olharem-se nos olhos). O rapaz, então, pergunta:


E não há respostas por parte de Musique: pelo menos, não imediatamente. A personagem da menina afirma algo como estar fazendo isto para se proteger. Porém, nós que assistimos ao filme sabemos que sim, é proibido o rapaz olhar para Musique. É proibido porque, se as personagens descongelarem seus olhos da escuridão da plateia e deixarem suas paixões imperarem, não estaríamos no campo da teatralidade radical proposta por Oliveira. E esta “proibição do olhar”, que impera ao longo das quase sete horas de filme, é essencial para a investigação da teatralidade proposta por Oliveira.

Finalmente, gostaria de fazer alguns apontamentos sobre a utilização das sombras por Oliveira no filme, incluindo talvez uma das passagens mais celebradas de toda a obra, comentada de maneira brilhante por João Bénard da Costa em seu texto “Pedra de Toque”. Para aí chegar, gostaria de antes apontar o exemplo do texto “Pré-cinema e desejos de teatralidade”, que aponta uma ligação do cinema com as formas teatrais antes mesmo do cinema existir, isto é, nas invenções que eventualmente ajudaram a evolução das formas cinematográficas a acontecer: mais especificamente a utilização das sombras nas câmeras escuras, nas “lanternas mágicas” e nos espetáculos de fantasmagoria. A ligação com o teatro estaria já aí, antes do cinema propriamente existir: poderíamos, portanto, considerá-la uma ligação de certa forma seminal. Oliveira vai ao pré-cinema e a este tipo específico de “teatralidade das sombras” para construir duas passagens belíssimas de seu filme. Uma delas, a primeira que irei comentar, serve como preâmbulo à outra.

Don Rodrigo, querendo encontrar Prouhèze, vai até a porta da sua casa. Lá, encontra o seu rival e também atual marido de sua amada, Don Camillo. Ambos, então, conversam. Na parede, estão suas sombras sendo projetadas. Don Camillo começa um discurso ao dizer que Prouhèze encontrava-se atrás daquela cortina. Don Rodrigo, no entanto, não o responde. Don Camillo reclama da falta de resposta. Então, Don Rodrigo o responde: olho para a minha sombra na parede. Rapidamente, o seu rival aproxima-se de seu corpo e de sua sombra, dizendo: “ah, então deixe associar-me a ela!”. Desta maneira, as duas sombras, Don Rodrigo e Don Camillo, pretendente e marido, tornam-se uma coisa só: representam o mesmo homem, o que deseja Prouhèze, apesar de um deles a ter consigo e o outro a procurá-la.

O diálogo entre os dois continua, Rodrigo grita o nome de Prouhèze e, então, sua sombra aparece. Mas não Prouhèze, propriamente. Os dois apaixonados não podem compartilhar o mesmo espaço, nunca: estamos no campo das projeções, das sombras, dos desejos, do imaterial. É sobre isto, então, que opera a segunda passagem do filme que utiliza a “teatralidade das sombras”: sob a muralha de Mogador (em que boa parte do filme acontece), uma sombra permanece gravada nos muros. A trilha sonora começa e, com ela, um sutil zoom in, em direção à sombra. Ela passa a ocupar quase todo o plano. O vento passa e a muralha balança (não passa de um lençol). De repente, passamos a ouvir em uníssono as vozes de Prouhèze e Rodrigo: “Eu acuso este homem e esta mulher de terem me feito na terra das sombras, uma sombra sem dono”. A sombra na muralha se transforma em outra sombra, a sombra de um ser, que depois se revela como sendo a sombra do casal:

“De todas as efígies que desfilam sobre a parede que ilumina o sol do dia ou da noite, não há ninguém que não conheça o autor e que não retrate fielmente o seu contorno. Mas eu, de quem se dirá que eu sou a sombra? Não deste homem ou desta esposa, separados, mas ambos, de uma só vez, um e outro em mim foram submersos neste novo ser feito de informe escuridão”, dizem as vozes unidas, enquanto as sombras de Prouhèze e Rodrigo caminham pelos muros de Mogador até se beijarem. Estão unidos, finalmente. Mas este não é o mundo concreto e sim o mundo das sombras, das projeções. O destino do casal, no mundo prático, é a separação. Somente neste mundo de sombras, ideal, é que eles podem estar verdadeiramente juntos, somente “ao longo deste muro violentamente golpeado pela lua”.

Sobre esta passagem, João Bénard da Costa escreve: “Em O sapato de cetim – súmula da tetralogia e ultrapassagem dela – as sombras dos dois amantes – Rodrigo e Prouhèze — fundem-se num dos mais belos momentos de toda a história do cinema, quando se encontram na noite de Mogador. Essas sombras são um só corpo com dois sexos. ‘Deus é andrógino’, disse Oliveira em poderosa metáfora. ‘É aquela velha história de Platão: antes da criação, homens e mulheres eram unos e depois foram separados como duas metades de uma laranja, mas querem voltar a unir-se. Encontrar a outra metade da laranja. O sexo apela ao encontro da outra metade. O sexo apela ao andrógino’”.

A sombra do casal se manifesta, também, como sombra da composição fílmica: uma ideal união das formas do teatro com as formas cinematográficas. Teatro e cinema acabam, em “Le soulier de satin“, tendo a mesma união platônica “das duas metades de uma laranja”, a mesma união das sombras do casal na muralha de Mogador: respiram ao mesmo tempo e discursam em uníssono. É quase impossível distinguir as formas umas das outras.

Paulo Martins Filho

BIBLIOGRAFIA

BAECQUE, Antoine; PARSI, Jacques. Conversas com Manoel de Oliveira, Lisboa: Campo das Letras, 1999

OLIVEIRA, Fernanda Areias; BIASUZ, Maria Cristina Villanova; SILVA, Marta Isaacsson de Souza, Pré-cinema e desejos de teatralidade. Pós: Belo Horizonte, v.6, n. 12, p. 24-34, novembro, 2016

OLIVEIRA, Manoel de; CAKOFF, Leon; ARAÚJO, Inácio; BÉNARD DA COSTA, João, org. MACHADO, Álvaro: Conversas com Manoel de Oliveira. São Paulo: Cosac Naify, 2005

SONTAG, Susan. Film and Theatre. The Tulane Drama Review, Vol. 11, Nº1 (Autumn, 1966), p. 24-37

O visível e o invisível em “O Joelho de Claire” (1970)

Os filmes de Éric Rohmer são como experimentos científicos: partindo de algumas premissas pré-estabelecidas, hipóteses, o realizador testa possibilidades narrativas em um trabalho de campo que permite e mesmo abraça as contingências do fazer fílmico em seu contato com a realidade, com o mínimo de intervenção aparente possível (ainda que sob todo o controle necessário). A diferença para um experimento científico factual, evidentemente, é que em seus filmes não se busca um resultado objetivo, e sim o registro do próprio experimento. 

O que eu chamo aqui de experimento, o próprio Rohmer chama de “máquina eletrônica”: “No que diz respeito aos meus Contos Morais, considero que estão compostos como numa máquina eletrônica. Na suposta ideia de ‘contos morais’, se coloco ‘conto’ de um lado da máquina e a ‘moral’ do outro, se desenvolvo tudo o que é implicado por conto e tudo o que é implicado por moral, a situação já estará praticamente estabelecida, pois não sendo um conto moral um conto de aventuras, será necessariamente uma história a meias-tintas, portanto uma história de amor.” [1]

Se a premissa já está estabelecida em teoria em seus Contos Morais – e o mesmo poderia ser dito das premissas implicadas em suas “Comédias e Provérbios” ou “Contos das Quatro Estações”, ainda que estes sejam filmes mais “soltos”, mais abertos às contingências -, ela se torna realmente interessante quando executada na prática cinematográfica, na verdade do espaço e do tempo: “A verdade que me interessou até aqui é a do espaço e do tempo: a objetividade do espaço e do tempo” [2]. Para Rohmer, o cinema, “menos um fim do que um meio” [3], é uma maneira de organizar narrativamente essa verdade, uma maneira tão esquemática quanto é simples – se seu processo criativo se assemelha ao de uma “máquina eletrônica”, esta seria uma máquina rudimentar, um computador primitivo. Entretanto, seus filmes não sucumbem a essa organização esquemática sobre o qual são elaborados, justamente devido à realidade prosaica que escolhe filmar.

“O Joelho de Claire” (1970), quinto filme da série de contos morais, é um exemplo emblemático desse equilíbrio entre teoria e prática que irá permear todos os filmes do realizador. Como em toda a sua filmografia, os conflitos do filme são estabelecidos pelos personagens através de diálogos que irão constituir a maior parte de sua duração. Pois não apenas as narrativas de Rohmer operam como experimentos científicos, mas seus personagens estão sempre a testar suas próprias teorias; o que é filmado é o embate interno (na sobreposição de voice-overs) e/ou externo entre essas teorias (no diálogo, propriamente). Este debate nunca será internalizado na forma fílmica: ele é sempre exposto pelos personagens, sua tensão será sempre abstrata, sua presença sempre invisível, tornada presente apenas pela fala. 

Para Rohmer, afinal, é sempre “mais interessante suscitar o invisível a partir do visível do que intentar inutilmente visualizar o invisível” [4], e será assim que, curiosamente, seus filmes condicionados pela verdade do espaço e do tempo serão conduzidos por elementos invisíveis. No caso de “O Joelho de Claire”, o protagonista, Jérôme, um diplomata, será conduzido, como o próprio coloca, por “um desejo real e, no entanto, indefinido, mais forte por ser indefinido. Um desejo puro. Um desejo de nada.” [5]. Um desejo invisível, que encontra sua manifestação visível, seu ponto focal, ao se concentrar na forma física, mundana, do joelho de Claire: de acordo com Jérôme, o “imã de seu desejo”, por ser o ponto mais vulnerável da jovem. 

Este desejo só se manifesta a partir da metade do filme, quando Claire entra em cena, e estabelece-se, então, como ponto focal não apenas para o personagem como para a narrativa que passa a conduzir; antes, havia uma espécie de ensaio para esse desejo, nos experimentos induzidos por uma romancista amiga de Jérôme, Aurora, que incita-lhe a ter um caso com outra jovem, Laura, meia-irmã de Claire. Se na primeira metade do filme, assim, o personagem tem total controle (ou ao menos afirma ter, mas a brincadeira com essa ambiguidade já está presente) sobre seus flertes “inocentes” com Laura, esse controle será abalado – ainda que aparentemente nunca perdido – com Claire e seu desejo vazio. É curioso, aqui, que há uma espécie de inversão de Rohmer em relação a seu filme anterior, “A Colecionadora” (1967), no qual o protagonista já começa buscando um vazio, “praticando o nada”, como o próprio coloca, e é interrompido pela entrada da jovem Haydée.

Nos filmes de Rohmer, e especialmente no caso dos Contos Morais, será justamente o encontro entre as convicções e ilusões dos personagens com a realidade concreta que estará em jogo: “Minhas personagens não são seres puramente estéticos. Possuem uma realidade moral que me interessa tanto quanto a realidade física.” [6]. Em “O Joelho de Claire”, a personagem da romancista, Aurora, opera como fomentadora e mesmo arquiteta dessas ilusões – um tipo de personagem frequente também nos outros filmes, como a etnógrafa em Conto de Verão ou a jovem em Conto de Primavera que tenta impulsionar um romance entre seu pai e sua amiga. Há uma cena em que Aurora e Jêrome observam um mural com uma ilustração de Dom Quixote que há na casa do diplomata: Dom Quixote tem seus olhos vendados enquanto os homens em volta fomentam suas ilusões com apetrechos improvisados. Como no mural, O Joelho de Claire não apenas mostra um homem iludido ou suas ilusões, mas revela a construção de suas ilusões, organiza e performa sua própria ficção.

A história do filme, afinal, já estava prevista na narrativa semelhante que Aurora estava escrevendo e conta para Jérôme, sobre um diplomata que observa meninas jogarem tênis até que uma bola cai perto dele, que a esconde e joga em outro gramado. A atitude antes aparentemente “inocente” de observá-las, torna-se maliciosa quando ele de fato interfere no decorrer das ações. Após acariciar o joelho de Claire, Jérôme também acredita (ou finge acreditar) que seu pequeno ato malicioso foi uma boa ação – uma escolha diplomática? – pois o faz após revelar à jovem que seu namorado havia lhe traído: o gesto poderia ser mascarado, por isso, ao menos para Claire, como puro consolo. Jérôme afirma acreditar que, com sua revelação, livrou Claire de um mal relacionamento. Não bastasse a contradição interna do personagem, que evidentemente não revelou a traição à Claire com o mero intuito de abrir-lhe os olhos, no plano final do filme vemos a menina reencontrando o namorado, no que parece ser uma reconciliação. A aparente boa ação de Jérôme, assim, independente de suas intenções, foi inútil. Como na maioria dos filmes de Rohmer, não há consequência no final, nada muda; não há uma “moral da história”, mas um conflito entre morais, um tensionamento de crenças.

Num sentido semelhante ao dessa tensão entre as ilusões dos personagens e a realidade concreta operam as fotografias observadas no filme, seja a fotografia da noiva do protagonista observada tanto por Laura quanto por Aurora, ou a fotografia de Claire, que Aurora mostra para Jérôme antes da jovem chegar na casa. Se por um lado suscitam certas expectativas – no caso da noiva, de uma promessa que impõe certos limites a esse personagem, no caso de Claire, como prenúncio do que está por vir no filme – por outro lado enfatizam a ausência de ambas as personagens nos dados momentos. Ao mesmo tempo que estabelecem a presença ativa de um mundo exterior a esta narrativa, sublinham essa exterioridade; o que importa é apenas, efetivamente, o que está presente naquele tempo e espaço.

O filme se utiliza, assim, tanto do visível (a verdade do espaço e do tempo) quanto do invisível (tudo aquilo que é suscitado), oscilando entre momentos de diálogo em que os personagens expõem suas teorias ou, no caso de Aurora, incita suas cobaias a agirem, e brevíssimos momentos de ação, de teoria posta em prática, demarcados como pequenos blocos narrativos por cartelas que indicam os dias se passando. Cartelas do mesmo tipo estão presentes na maioria dos filmes de Rohmer, e enfatizam a condição contingente de todas suas histórias; não existem títulos ou comentários em nenhuma delas, simplesmente as datas, os dias passando, nenhuma ideia é imposta à imagem à priori. Em “O Joelho de Claire”, mais do que demarcações temporais, as cartelas funcionam como interrupções lúdicas das cenas, como se participassem do jogo de sedução praticado pelos personagens. Há um momento, por exemplo, em que Jérôme se deixa cair e apoiar a mão no joelho de Claire e no meio do gesto corta-se para outra cartela, o que ao mesmo tempo omite a continuidade da cena e enfatiza o aspecto dramático deste gesto.

Este breve instante flertoso torna-se ainda mais interessante quando consideramos o outro momento em que Jérôme toca o joelho de Claire, cena mais emblemática do filme, quando, numa pequena cabana protegida pela chuva, enquanto a jovem chora, Jérôme acaricia seu joelho por alguns longos segundos. Ainda que previamente discutido entre os personagens e completamente orquestrado pela produção do filme, esta cena, seja pela combinação de chuva e choro, seja pela duração ininterrupta e mesmo desconfortável do gesto, parece exalar uma vitalidade que escapa a qualquer controle, algo próximo, talvez, àquilo que Georges Méliès quis dizer quando comentou que nos filmes dos irmãos Lumière “as folhas se mexem”  [7] [8]. Após os diferentes falatórios dos personagens, sempre tentando exprimir sentimentos imprecisos, suscitar algo invisível, definir o indefinível, temos um momento em que tudo não apenas se faz presente, mas exala sua presença na contingência do momento. Evidentemente, logo após esse momento, voltaremos ao falatório entre Jérôme e Aurora, no qual o diplomata narra o ocorrido: a ambiguidade, a atmosfera e a imprecisão do momento são reformuladas oralmente, em um relato sob sua percepção subjetiva da cena. Em um experimento científico, esse relato seria o resultado apresentado: no filme de Rohmer temos o fato e sua interpretação, a prática e a teoria, a realidade e a ficção.

Paula Mermelstein

NOTAS

[1] Entrevista com Rohmer, “O Antigo e o Novo”. Cahiers du Cinéma nº 172, novembro 1965. Disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO3/rohmer.htm.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Jean-Claude Brialy em diálogo de “O Joelho de Claire”.

[6] “O Antigo e o Novo”.

[7] Sobre esse “efeito de realidade” dos filmes dos Lumière, Jacques Aumont, em seu texto “Lumière, o último pintor impressionista”, salienta três aspectos: o impalpável, o irrepresentável e o fugidio.

[8] Momentos como esse, nos quais a maior ação é aquela do silêncio, em evidente contraste com os falatórios, que transbordam tudo aquilo antes contido, antes apenas evocado, antes invisível, ainda que sejam momentos totalmente prosaicos, desprovidos de qualquer espetacularização, estão presentes em quase todos os filmes de Rohmer, seja a rápida investida rejeitada de Maude em Minha Noite com Ela (1969), o encontro entre marido e mulher à tarde em Amor à Tarde (1972), o momento em que Délphine vê o Raio Verde em Raio Verde (1986), ou primeiro instante do dia observado por Reinette e Mirabelle em Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle (1987).

30/03/21